terça-feira, 18 de dezembro de 2018

Trapalhadas na transição

Jair Bolsonaro completou três décadas de vida no Legislativo, o dobro do tempo que serviu nos quartéis. Aos 63 anos e com a experiência de oito eleições vencidas, pode ser considerado um político profissional do tipo demasiadamente velho para se permitir ilusões na travessia do Congresso para o Palácio do Planalto. No entanto, está surpreendendo aliados pelo amadorismo na transição de governo.

Assume em duas semanas um governo sob curadoria de antigos companheiros militares da reserva —grupo coeso até no perfil pontuado pela indisciplina na caserna.

No novo governo, o primeiro círculo do poder será composto pelos onipresentes e indemissíveis Bolsonaro: Jair, pai-presidente, e os filhos eleitos para o Legislativo.


O protagonismo já assumido pelo trio de parlamentares formata uma nova, inédita, instância de poder. O presidente terá uma linha direta, familiar, no Congresso. Logo vai se descobrir se este será um canal de soluções ou de problemas institucionais.

Na transição, até agora, prevalece improviso em algumas áreas-chave do futuro governo. Filhos-parlamentares anunciam supostas decisões e são desmentidos pelo pai-presidente. E todos se mostram surpresos com a bruma de transações mal explicadas na gestão dos próprios gabinetes no Legislativo.

Observa-se uma opção preferencial pela retórica sobre decimais e polissílabos na política externa. No caso dos médicos cubanos, por exemplo, a precipitação discursiva custou mais caro ao país e criou um vácuo na Saúde em um terço dos municípios.

Trapalhadas resultaram no “desconvite” aos presidentes de Cuba e da Venezuela para a festa da posse. Como se sabe, só é possível “desconvidar” quem já estava convidado.

Mais graves foram as ameaças à China, maior cliente de 12 estados exportadores; aos 52 países islâmicos que compram US$ 6 bilhões ao ano em carnes; e à Argentina, destino de 80% dos manufaturados. A imprudência se amplia nos anúncios sobre acordos de imigração, do clima, do Mercosul e com a União Europeia.

Bolsonaro flutua no autoengano, como Lula. Um dia, talvez, descubra que o espaço de tolerância ao seu governo é bem menor do que imagina.

Mais rica, mais forte e ainda autoritária: China comemora os 40 anos da reforma

China
Nesta terça-feira a China completa 40 anos do início do Gaige Kaifang, ou Reforma e Abertura, processo de reformas empreendido pelo país sob a liderança de Deng Xiaoping a partir de 1978 para repudiar o maoísmo e começar a se abrir ao mundo. Essas mudanças, que se anteciparam à Glasnost e à Perestroika de Mikhail Gorbachev na União Soviética, lançaram as bases para a espetacular reviravolta do país, que passou de uma economia empobrecida para se tornar a segunda potência em tempo recorde. Se depois da morte de Mao o PIB da China representava 1,75% da economia mundial, em 2018 foi multiplicado por 82 e é responsável por 15% da riqueza global, ou 12,24 trilhões de dólares (cerca de 47,95 trilhões de reais). A expectativa de vida passou de 65,8 para 76,4 anos. Mais de 800 milhões de pessoas saíram da pobreza.

Mas na monumental exposição oficial Grandiosa Reforma, que acontece no Museu Nacional de História – um dos principais eventos com que a China não poupou esforços para marcar o aniversário – Deng, o pai dessas reformas, ocupa apenas um papel secundário. Como no resto das pompas, os grandes protagonistas das comemorações são Xi Jinping, o líder cada vez mais autocrático da China há seis anos, e sua “nova era”.

Uma nova era na qual, segundo denunciam seus críticos, Xi desmantelou sistematicamente a maior parte do legado de Deng. Foram eliminados os limites temporais impostos pelo “pequeno timoneiro” ao mandato presidencial, pensados para evitar que um líder se perpetuasse no comando; o segundo plano em política externa recomendado pelo veterano dirigente é coisa do passado; na economia, o setor público ganha terreno novamente em relação a um setor privado que foi o motor do crescimento nas últimas décadas, enquanto as reformas anunciadas há seis anos não foram postas em operação.

“Unidos ao redor do líder Xi Jinping, núcleo do Partido Comunista”, diz uma enorme faixa que recebe o público que lotou a exposição esta semana: grupos escolares, turistas de outras províncias, militantes do partido em visitas organizadas. No interior, sala após sala dedicada às realizações da China ultramoderna (e do Partido Comunista): a China que chegou à Lua, que implantou a maior rede ferroviária de alta velocidade, a que inova em robótica e inteligência artificial.

E imagens e mais imagens do presidente chinês. Todas elas sempre alguns centímetros maiores ou mais altas do que o resto dos elementos da exposição. Deng aparece como apenas mais um dos líderes que precederam Xi: seu retrato é do mesmo tamanho do que os dos outros líderes, Hu Jintao e Jiang Zemin. Na sala dedicada à história, o espaço ocupado por todos eles é a metade daquele dedicado ao atual chefe de Estado.

“Deng Xiaoping deve estar se revirando no túmulo”, diz o professor Willy Lam, da Universidade Chinesa de Hong Kong. “Quase todas as suas reformas foram abandonadas: a liderança coletiva e a proibição do culto à personalidade; a separação do Partido e do Estado; na economia, ênfase no mercado e bom tratamento aos empresários privados e aos capitalistas estrangeiros...”.

Apesar disso, dentro da China a situação é menos monolítica do que a exposição – e o Governo chinês – querem apresentar. O aniversário, que deveria ser uma apoteose das realizações do sistema, chega em meio a mais dúvidas do que o previsto. A economia chinesa não está crescendo como em anos anteriores. A guerra comercial com os Estados Unidos que a China inicialmente pensava que poderia resolver aumentando suas importações, se transformou em algo mais profundo e se espalhou a outras áreas da relação bilateral, a tal ponto que em Pequim já se considera o início de uma guerra fria. A Europa compartilha muitas das críticas que Washington faz sobre as práticas chinesas. E nos últimos dias, a prisão no Canadá de Meng Wanzhou, diretora financeira do gigante das telecomunicações Huawei, foi recebida como uma bofetada em Pequim.

Ninguém, dentro ou fora da China, duvida de que Xi mantenha um controle total do poder. Mas nos últimos meses foram ouvidas vozes dissidentes que pedem mais reformas econômicas para recuperar o caminho das reformas pró-mercado que Deng definiu.

Em outubro, foi o filho do “pequeno timoneiro”, Deng Pufang – homem com enorme ascendência moral dentro do sistema chinês – que fez críticas. As mudanças impostas por seu pai “na estrutura social, na divisão de interesses e no modo de pensar são fundamentais, históricas e irreversíveis”. “Temos de continuar neste caminho, sem regressões e sem hesitar durante cem anos”, insistiu em um discurso que os meios de comunicação oficiais não divulgaram. Outros representantes do clã reformista – os filhos do ex-secretário geral do partido, Hu Yaobang; o general Liu Yuan, filho do ex-presidente Liu Shaoqi – também fizeram comentários críticos.

E talvez como resultado das pressões externas e das vozes dissonantes internas, parece que algumas mudanças podem estar chegando. “De certo ponto de vista, podemos dizer que Trump está forçando Xi a voltar aos ensinamentos de Deng”, especialmente na ênfase no mercado, no tratamento não discriminatório às empresas estrangeiras e no tom mais baixo na política externa, aponta Lam.

O chefe de Estado chinês fará um discurso na terça-feira sobre o aniversário, no qual poderia anunciar algumas medidas de aprofundamento do Gaige Kaifang; ou de conciliação na guerra comercial, como são interpretadas em alguns setores.

“Há alguns sinais de tentativas de que um novo impulso para as reformas está sendo planejado”, indica a consultoria Capital Economics. A China, como adiantou o The Wall Street Journal, poderia modificar seu plano Feito na China 2025, pelo qual quer se tornar líder em tecnologia nesse época, e permitir uma maior participação estrangeira.

Mas também, acrescenta a consultoria, as novas medidas anunciadas podem significar pouco mais que uma tentativa de salvar as aparências para evitar mais tarifas e ganhar tempo. “Embora alguns funcionários em Pequim vejam as reformas baseadas no mercado como uma solução para as tensões comerciais e os problemas estruturais mais amplos que afetam o crescimento econômico, outros veem as pressões dos EUA como uma reivindicação das posições atuais”, lembra.

E depois do caso Huawei no Canadá, a China respondeu prendendo dois cidadãos canadenses por supostas “atividades prejudiciais à segurança nacional”. Um passo que em geral provocou tanto apoio entre a população chinesa quanto preocupação no exterior.

Na exposição no Museu Nacional de História, o público, por sua vez, continua tirando fotos ao lado de uma maquete inteligente da Barragem das Três Gargantas, de uma locomotiva do trem de alta velocidade ou do robô policial. “Como me sinto vendo isso? Me sinto rico”, ri um jovem.

Imagem do Dia

Syaifullah Maulana

A corte é a corte, é a corte...

Quando algum acidente de percurso permite que se ponha um olho sobre a vida que realmente leva o funcionário público brasileiro da baixa nobreza para cima, para além do que consta no seu holerite, você fica certo de que está sendo roubado.

E está mesmo. Só que por dentro da lei.

O que se desvia de dinheiro público para bolsos privados por fora da lei é um troco comparado ao que “o sistema” nos toma usando a Constituição, a lei, as “medidas administrativas” e as decisões judiciais que todos os dias e cada vez mais escreve para si mesmo. Dia 8 passado Modesto Carvalhosa, velho guerreiro do povo brasileiro, expos nesta página alguns desses recursos no detalhe. O artigo 37, inciso XI da constituição, que estabelece que o teto do funcionalismo é o que ganham “por dentro” os juízes do STF fura ele próprio, no parágrafo 11, o dique que foi escrito para erguer ao afirmar que esse teto não vale quando for de “verbas indenizatórias” que se tratar. Para estas não ha limite e – suprema cara de pau! – “não incide imposto de renda”. Não demorou nada e o rabo passou a abanar o cachorro. O Impostobot que, com algumas interrupções, apresentava-se no Twitter nos últimos dois ou três anos expondo, dia após dia, um salário por dia dos marajás dessa nossa republica de araque mostrou que saques mensais de 300, 400, 500 mil e mais ocorrem a granel e, com frequência acachapante, também os de plurais de milhões. Modesto apontou ainda, no mesmo artigo 37, o “dever de eficiência” que deve ser “exigido com rigor” do funcionalismo … que no entanto é indemissível, quer dizer, não pode ter sua eficiência cobrada. Mas só por conta da menção proliferaram como praga os “adicionais de eficiência” para funcionários do país inteiro, pagos até mesmo – pode crer o otário leitor! – para os aposentados. E as vendas de férias? Punidas com prisão aqui fora são a norma na corte onde essa “conversibilidade” levou a uma explosão. Ha quem tenha quatro meses por ano para vender ao estado, o que rende 16 proventos a cada 12 meses, fora o 13º que, no caso, passa a ser o 17º…


Agora, depois de revelado o “rachid” entre membros das famílias Bolsonaro e Queiroz, vemos exposta mais uma modalidade das práticas que, todos sabemos, são a regra e não a exceção desde, pelo menos, o translado da corte de Lisboa para o Rio de Janeiro. São centenas os dispositivos do gênero que, mortos o 1º e o 2º Reinados, o Império, a República Velha, a ditadura Vargas a “ditadura militar”, a Republica Nova e seis constituições inteiras, enfiaram-se com descaramento inédito nesta sétima de que os nossos mais doutos juízes e tribunos proprietários de “dachas” nas capitais europeias ou nas praias do Sul dos Estados Unidos dizem que depende a liberdade, a segurança e essa cada vez mais palpitante “felicidade” do povo brasileiro.

Os holerites do serviço público não passam de álibis emitidos pelo próprio estado para enganar o povo e àquela mesma Receita Federal que, tonta e docinha com eles, responde ao contribuinte plebeu sempre com um rugido do mesmo implacável supercomputador que a Nasa usa para por um homem em Marte com que eles vigiam a nossa miséria.

Tudo isso congela-se, na sua expressão mais aguda, nas contas da previdência porque o funcionário se aposenta no primeiro minuto da idade limite de 50 anos com o ultimo e maior dos salários da carreira – frequentemente um que nunca chegou a receber na ativa porque é de bom tom entre “colegas” darem-se mutuamente promoções de ultima hora para colher esse efeito. De 36 a 1 surram os nédios senhores de meia idade do Brasil Oficial aos velhinhos paupérrimos do Brasil Real que não se aposentam nunca. E mesmo assim hesita o presidente Bolsonaro que se elegeu brandindo “a verdade” em sequer afirmar a necessidade de uma reforma da Previdência profunda o bastante para por no horizonte a igualdade de direitos entre nobres e plebeus do país cujo estado patrocina a mais violenta distribuição de dinheiro de pobres para ricos de que o mundo tem notícia hoje. Sobre as boladas que nos arrancam pelo caminho com a lei, então, nem se fala. Contra essas nem mesmo o paladino Sérgio Moro e seus indignados mosqueteiros do Ministério Público têm qualquer coisa a opor. É que eles são a corte e a corte não vive no Brasil. Suas diferenças com as dinastias anteriores estão no glacê e não no bolo. Nem a imprensa de herdeiros, sem direção nem foco, está empenhada em iluminar essa cegueira. E o liberalismo embarcado na boléia do governo, se permanecer emudecido como segue, vai apenas gerenciar a procastinação para no final ser culpado pelo que não vai ser feito.

O Brasil nunca rompeu com a velha ordem aristotélica na qual o senhor e o escravo estão previstos, cada um “no seu devido lugar”. Nunca passou à ordem iluminista onde todos nascem e permanecem iguais perante a lei. O sistema corporativista, onde o Judiciário assume o lugar do Imperador para atribuir a cada um os seus “direitos especiais” (a negação em termos do conceito de direito democrático) é a criação diabólica do gênio português para “mudar sem que nada mudasse” diante da onda democrática que varreu a Europa no século 19. A nossa revolução democrática está por ser feita. A “democracia direta”, que está longe de ser a que Bolsonaro imagina deter com suas manipulações do whatsapp e seus críticos tratam de exorcizar brandindo a ameaça de uma “ditadura da maioria” em plena vigência da miserabilizante ditadura da minoria de sempre, ainda está por se instalar aqui com o povo armado de recall, referendo, iniciativa e eleições de retenção de juízes mandando e o governo inapelavelmente constrangido a obedecer.

Se algo não fizer cair a ficha da falência iminente do “sistema”, Jair Bolsonaro, que surfou a onda de uma “libertação” que a censura não permite que o povo brasileiro chegue a definir com precisão, entrará para a História apenas como o protagonista de mais uma troca de dinastias no nosso anacrônico sistema feudal.

Vaga noção do submundo

O povo brasileiro – eu, você, nós, eles – contempla sem grande esperança o que acontece no palco, sem saber dos suspeitos bastidores: do espetáculo, financiado pelo nosso bolso, temos apenas uma pálida noção
Lya Luft

O filho mais poderoso

Desta vez foi Eduardo Bolsonaro que obrigou o presidente eleito a socorrê-lo. Em entrevista ao jornal O Globo, Eduardo defendeu a possibilidade de aplicação de pena de morte para traficantes de drogas e autores de crimes hediondos. É assim nas Filipinas do ditador Rodrigo Duterte, visitada por Eduardo no ano passado. Ele voltou de lá deveras impressionado.

A Constituição brasileira não admite pena de morte, a não ser em caso de guerra externa. É cláusula pétrea. Que quer dizer: um artigo que não pode ser mudado. Eduardo disse ao jornal que sabia disso, sim, mas que se poderia abrir uma exceção. Horas depois, pelo twitter, é claro, Bolsonaro ensinou ao filho: cláusula pétrea é imexível. E “não se discute mais isso”.

Eduardo está deslumbrado com o poder recém-adquirido. Reeleito deputado federal com o maior número de votos da história de São Paulo, comporta-se como se fosse o porta-voz do pai para assuntos internacionais. Quer mais e mais que o Brasil se alinhe aos interesses comerciais dos Estados Unidos. Quer também que copie o modelo econômico do Chile.

Com a pretensão de exercer de fato a função de chanceler, Eduardo já é uma dor de cabeça para o futuro ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo. Na prática, o deputado disputa com os irmãos Carlos, vereador, e Flávio, senador, a condição de o mais poderoso filho do presidente. Carlos emplacou um afilhado na chefia da Secretaria de Comunicação do governo. Quanto a Flávio…

Onde está Queiroz, o ex-assessor de Flávio desaparecido há mais de uma semana? O Ministério Público suspeita que Queiroz foi o administrador do caixinha do gabinete de Flávio na Assembleia Legislativa do Rio, alimentado com uma parte dos salários devolvida pelos demais funcionários. Enquanto Queiroz não se explicar e convencer que tudo está O.K., Flávio seguirá de cabeça baixa.

A família Bolsonaro promete fortes emoções.

Brasil de morte


Imprensa, autocrítica urgente e propositiva

Retomo, caros leitores, o tema de dois artigos recentes publicados neste espaço opinativo: Imprensa, recados de uma eleição e Lufada conservadora. A razão é simples e direta: sinto, com inquietante angústia, que o tempo da autocrítica e da mudança estratégica propositiva da mídia se encurta de modo acelerado. A eleição de Jair Bolsonaro escancarou uma virada cultural profunda, que sacode os alicerces do jornalismo tradicional. A imprensa, no entanto, parece estar paralisada pela síndrome da negação. De costas para as mudanças que estão gritando na nossa frente, na queda da circulação, na diminuição das audiências, aferra-se a um passado que não voltará mais.


As empresas de conteúdo, éticas e independentes, são essenciais para a democracia. Mas precisam se reinventar. E parte importante dessa mudança, urgente e necessária, passa por uma autocrítica sincera, que não briga com a realidade e com a força dos fatos.

Muitos foram os recados dessa eleição disruptiva. O presidente eleito soube captar o pulsar profundo da sociedade. O Brasil real estava algemado pela interdição da ideologia. Sua mensagem – na política, na economia, na segurança pública, na defesa da família e dos valores – foi ao encontro de um sentimento latente na alma nacional. Isso explica boa parte do seu desempenho. Sem dinheiro, sem partido, sem televisão e sem apoio midiático, Bolsonaro transformou-se num fenômeno eleitoral.

As redes sociais, por óbvio, tiveram papel decisivo. Bolsonaro falou diretamente com o eleitorado. Rompeu, como nunca antes se tinha visto, a intermediação das empresas de comunicação. E a coisa está pegando. Mas não cola por acaso. O fenômeno de desintermediação teve, creio, precedentes que poderiam ter sido evitados, não fosse o distanciamento da mídia dos seus leitores, sua incapacidade de entender o alcance das novas formas de consumo digital da informação e, em alguns casos, sua falta de isenção informativa e certa dose de intolerância ideológica.

Em longo artigo na revista Veja, José Roberto Guzzo, jornalista sênior e competente analista, traçou um brilhante roteiro do processo de autofagia da imprensa, do seu distanciamento ideológico da realidade, de suas fraturas no dever de isenção e, consequentemente, do seu crescente afastamento dos consumidores da informação.

Guzzo, armado de uma retórica afiada, lança uma saraivada de indagações procedentes: “Por que a mídia ignorou a lista de desejos, claríssimos, que a maioria da população estava apresentando aos candidatos? Por que não tentou, em nenhum momento, entender por que um número cada vez maior de eleitores se inclinava a votar em Jair Bolsonaro? Durante meses seguidos, os comunicadores brasileiros tentaram provar no noticiário que coisas trágicas iriam acontecer para todos se Bolsonaro continuasse indo adiante – mas nunca pensaram na possibilidade de que milhões de brasileiros estivessem achando que essas coisas trágicas, justamente essas, eram as que consideravam as mais certas para o país”.

“A mídia, na verdade, convenceu a si própria de que não estava numa cobertura jornalística, e sim numa luta do bem contra o mal. Em vez de reportar, passou a torcer e a trabalhar por um lado da campanha, convencida de ter consigo a ‘superioridade moral’. Resultado: disputou uma eleição contra Jair Bolsonaro e perdeu, por mais de 10 milhões de votos de diferença. Não é função dos órgãos de comunicação disputar eleições”, concluiu Guzzo.

Escorregamos na largada da cobertura. Assumimos, sem senso crítico, a estratégia petista de que Lula era candidato à Presidência da República em 2018. Não apenas isso, a mídia, contra o sentimento da maioria da população, garantia que o ex-presidente, cumprindo pena por corrupção e na contramão da Lei da Ficha Limpa, era favorito disparado para ganhar. Entramos de cabeça numa hipótese muito pouco provável. Nossas manchetes, apoiadas na abstração dos institutos de pesquisa, asseguravam que Lula era imbatível. Em nenhum momento desmontamos a fábula petista.

Quando o próprio Lula, finalmente, anunciou que não era candidato, e os institutos mudaram o foco, entramos em cheio na segunda fase da estratégia petista: Fernando Haddad era a bola da vez. O poder eleitoral de Lula, transferindo milhões de votos de sua cela em Curitiba, elegeria o poste. Mas não paramos aí. Entramos, mais uma vez, na roubada dos institutos: Bolsonaro perderia de “todos os outros candidatos” no segundo turno, em “todas as pesquisas”. Lembram disso? Pois é. Deu-se o exato contrário. Perigosos desvios de rota levaram a mídia a um porto inseguro.

Estamos de costas para a sociedade real. Não se trata, por óbvio, de ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhecer e, mais que isso, confrontar permanentemente o sentir das suas audiências.

A verdade, limpa e pura, é que frequentemente a população tem valores opostos aos nossos. É, por exemplo, a favor da polícia, que a imprensa considera inimiga dos pobres, e contra os bandidos, que os jornalistas consideram vítimas da injustiça social.

O jornalismo precisa fazer a leitura correta e isenta dos acontecimentos. É preciso informar com objetividade. Esclarecer os fatos sem a distorção das preferências e dos filtros ideológicos.

A internet, o Facebook, o Twitter e todas as ferramentas que as tecnologias digitais despejam a cada momento sobre o universo das comunicações mudaram a política e mudarão o jornalismo. Queiramos ou não.

A imprensa de qualidade, séria e independente, é essencial para o futuro da democracia. E tudo isso, tudo mesmo, depende da nossa coragem e humildade para fazer a urgente e necessária autocrítica. Não bastam medidas paliativas. É hora de dinamitar antigos processos e modelos mentais ideológicos. A crise é grave. Mas a oportunidade pode ser imensa. A todos, feliz Natal!

Cadê o Fabrício Queiroz?

Jair Bolsonaro lidou com a primeira crise do seu governo com uma mistura de onipotência e ingenuidade. Diante de um problema no qual ele e o filho Flávio (eleito senador) não são investigados ou acusados de coisa alguma, transformaram o silêncio em suspeita.

O suboficial Fabrício Queiroz, da PM do Rio, amigo do presidente, motorista, segurança e assessor de Flávio, movimentou R$ 1,2 milhão em 12 meses. Fez 176 saques (cinco num só dia) e recebeu 59 depósitos, todos em dinheiro vivo. Sete funcionários que estavam ou passaram pelos gabinetes do deputado estadual Flávio e de seu pai fizeram depósitos na sua conta. Dois eram parentes de Queiroz. Outro era um tenente-coronel PM que trabalhou por 18 meses com Flávio e durante esse período viveu 248 dias em Portugal.

Queiroz pediu demissão do gabinete de Flávio Bolsonaro no dia 16 de outubro, uma semana depois do primeiro turno. Ele teria feito isso para cuidar de sua passagem para a reserva. No mesmo dia, foi afastada sua filha Nathalia, que trabalhava com Jair Bolsonaro na Câmara dos Deputados. (Fernando Haddad, derrotado na disputa pela Presidência, levantou a suspeita de que a surpresa do Coaf tenha chegado ao conhecimento de Bolsonaro, “no máximo, em 15 de outubro”.)



Durante uma semana os Bolsonaro reiteraram sua confiança em Queiroz, e o senador eleito informou que ouviu dele “uma explicação plausível”. Apesar da plausibilidade do que ouviu o senador eleito, Queiroz manteve-se em silêncio e, pelo que se sabe, pretende falar ao Ministério Público nesta semana.

Deixando-se de lado o piti do futuro chefe da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, que interrompeu uma entrevista ao ser questionado sobre o assunto, Bolsonaro foi onipotente e ingênuo ao supor que o silêncio de Queiroz poderia ser compensado por suas breves declarações. Tanto ele como o filho repetiram que estão fora da investigação e quem tiver feito algo errado deverá pagar. Até hoje, a questão é só uma: cadê o Queiroz?

As bizarrices apontadas pelo Coaf nas finanças do amigo dos Bolsonaro serão estudadas pelo Ministério Público e a ele caberá decidir se há o que pagar.

Noves fora a disseminação do “Cadê o Queiroz?”, a malversação do episódio produziu um efeito colateral. Apareceram os “generais preocupados”. É conhecido o desconforto do vice-presidente Hamilton Mourão, mas os generais anônimos são um fator de verdadeira preocupação para paisanos e fardados.

Bolsonaro é um exímio manipulador do que seria o pensamento de militares. Até sua eleição esse fator ventou a seu favor. Agora, poderia soprar contra. Para quem não gosta do presidente eleito, a brisa pode até ser motivo de alegria. O problema é que quando esse vento sopra, seja qual for a direção, arrasta tudo, inclusive a disciplina militar.

O marechal Castelo Branco denunciou, faz tempo, as “vivandeiras alvoroçadas, (que) vêm aos bivaques bolir com os granadeiros e provocar extravagâncias do Poder Militar”.

A turma de Bolsonaro ergue o estandarte da “volta do PT” sempre que ouve alguma coisa contra seu chefe. O espantalho pode ser conveniente, mas quem está na pista costurando sua candidatura é o futuro governador de São Paulo, João Doria.
Elio Gaspari

A gigantesca fonte de CO2 que está por toda parte

O cimento é o material feito pelo homem mais amplamente usado que existe. Ele só perde para a água como recurso mais consumido no planeta.

Sua forte presença ajudando a moldar construções, porém, também tem um efeito colateral sobre o clima: seu processo de produção é visto como uma gigantesca fonte de dióxido de carbono (CO2) - um dos gases responsáveis pelo aquecimento global.

E possíveis soluções para minimizar o problema estão na pauta de discussão agora.

Xangai (China)
Segundo o instituto de pesquisa britânico Chatham House, o cimento é fonte de aproximadamente 8% das emissões mundiais de CO2. Se sua indústria fosse um país, seria o terceiro maior emissor desse gás, no mundo, atrás apenas de China e Estados Unidos.

Em outra comparação, suas emissões superam as do combustível de aviação (2,5%) e não estão muito atrás das geradas pelo agronegócio global (12%), por exemplo.

Com emissões nessa proporção, o assunto esteve entre os que foram discutidos na conferência da ONU sobre mudança climática, a COP24, encerrada no sábado na Polônia.

Durante o evento, representantes do setor debateram formas de atender aos requisitos do Acordo de Paris - um compromisso mundial para reduzir a emissão de gases na atmosfera.

Para que o acordo seja cumprido, as emissões anuais do cimento deverão ser reduzidas em pelo menos 16% até 2030.

A produção de cimento envolve a extração e o esmagamento de matérias-primas, principalmente calcário e argila.

Elas são trituradas e misturadas com outros materiais - como minério de ferro ou cinzas - e, na etapa seguinte do processo, introduzidas em grandes fornos cilíndricos e aquecidas a cerca de 1.450 ° C.

O processo de calcinação - como é chamada a reação química de decomposição térmica, usada para transformar o calcário em cal virgem - divide o material em óxido de cálcio e CO2.

Esse processo dá origem a uma nova substância, chamada clínquer. Trata-se não só do principal componente do cimento, mas do material cuja produção emite a maior quantidade de CO2 nessa indústria.

No formato de pequenos grãos com tonalidade acinzentada, o clínquer é resfriado, moído e misturado com gesso e calcário. Em seguida, pode ser transportado para fabricantes de concreto.

Em 2016, a produção mundial de cimento gerou cerca de 2,2 bilhões de toneladas de CO2 - o equivalente a 8% do total mundial. Mais da metade disso teve origem no processo de calcinação.

Juntamente com a combustão térmica, 90% das emissões do setor poderiam ser atribuídas à produção de clínquer.

Como principal material de construção da maioria dos prédios de apartamentos, de estacionamentos, pontes e barragens, o concreto tem seu uso em grande escala marcado por muitas das principais empreitadas arquitetônicas do mundo.

No Reino Unido, contribuiu para a onda maciça de desenvolvimento pós-Segunda Guerra Mundial em várias das principais cidades do país, como Birmingham, Coventry, Hull e Portsmouth, em grande parte definidas pelas estruturas de concreto típicas da época.

A Sydney Opera House, na Austrália, o Templo de Lótus, na Índia, o Burj Khalifa em Dubai - o maior arranha-céu do mundo - bem como o magnífico Panteão de Roma, que ostenta a maior cúpula de concreto sem suporte do mundo, tudo deve sua forma a esse material.

Mistura de areia e cascalho, um aglutinante de cimento e água, o concreto é amplamente adotado por arquitetos, desenvolvedores e construtores por ser um material de construção mais acessível, mas também com outras vantagens.

"Ele é econômico, pode ser produzido em praticamente todos os lugares e tem todas as qualidades estruturais adequadas para a construção de um prédio durável ou de uma obra de infraestrutura", diz Felix Preston, vice-diretor de pesquisa do Departamento de Energia, Meio Ambiente e Recursos da Chatham House.

Tais atributos do concreto, considerados incomparáveis, ajudaram a impulsionar a produção global de cimento a partir dos anos 50, com a Ásia - e, particularmente, a China - respondendo pela maior parte do crescimento a partir dos anos 90.

A produção aumentou em mais de trinta vezes desde 1950 e em quase quatro vezes desde 1990.

A China usou mais cimento entre 2011 e 2013 do que os Estados Unidos durante todo o século 20.

Mas, com o consumo chinês se estabilizando, a expectativa é de que a maior parte do crescimento futuro da construção aconteça nos mercados emergentes do Sudeste Asiático e da África Subsaariana - impulsionados pela rápida urbanização e pelo desenvolvimento econômico.

A área construída no mundo deve dobrar nos próximos 40 anos, segundo os pesquisadores da Chatham House, exigindo que a produção de cimento aumente em um quarto até 2030.