As empresas de conteúdo, éticas e independentes, são essenciais para a democracia. Mas precisam se reinventar. E parte importante dessa mudança, urgente e necessária, passa por uma autocrítica sincera, que não briga com a realidade e com a força dos fatos.
Muitos foram os recados dessa eleição disruptiva. O presidente eleito soube captar o pulsar profundo da sociedade. O Brasil real estava algemado pela interdição da ideologia. Sua mensagem – na política, na economia, na segurança pública, na defesa da família e dos valores – foi ao encontro de um sentimento latente na alma nacional. Isso explica boa parte do seu desempenho. Sem dinheiro, sem partido, sem televisão e sem apoio midiático, Bolsonaro transformou-se num fenômeno eleitoral.
As redes sociais, por óbvio, tiveram papel decisivo. Bolsonaro falou diretamente com o eleitorado. Rompeu, como nunca antes se tinha visto, a intermediação das empresas de comunicação. E a coisa está pegando. Mas não cola por acaso. O fenômeno de desintermediação teve, creio, precedentes que poderiam ter sido evitados, não fosse o distanciamento da mídia dos seus leitores, sua incapacidade de entender o alcance das novas formas de consumo digital da informação e, em alguns casos, sua falta de isenção informativa e certa dose de intolerância ideológica.
Em longo artigo na revista Veja, José Roberto Guzzo, jornalista sênior e competente analista, traçou um brilhante roteiro do processo de autofagia da imprensa, do seu distanciamento ideológico da realidade, de suas fraturas no dever de isenção e, consequentemente, do seu crescente afastamento dos consumidores da informação.
Guzzo, armado de uma retórica afiada, lança uma saraivada de indagações procedentes: “Por que a mídia ignorou a lista de desejos, claríssimos, que a maioria da população estava apresentando aos candidatos? Por que não tentou, em nenhum momento, entender por que um número cada vez maior de eleitores se inclinava a votar em Jair Bolsonaro? Durante meses seguidos, os comunicadores brasileiros tentaram provar no noticiário que coisas trágicas iriam acontecer para todos se Bolsonaro continuasse indo adiante – mas nunca pensaram na possibilidade de que milhões de brasileiros estivessem achando que essas coisas trágicas, justamente essas, eram as que consideravam as mais certas para o país”.
“A mídia, na verdade, convenceu a si própria de que não estava numa cobertura jornalística, e sim numa luta do bem contra o mal. Em vez de reportar, passou a torcer e a trabalhar por um lado da campanha, convencida de ter consigo a ‘superioridade moral’. Resultado: disputou uma eleição contra Jair Bolsonaro e perdeu, por mais de 10 milhões de votos de diferença. Não é função dos órgãos de comunicação disputar eleições”, concluiu Guzzo.
Escorregamos na largada da cobertura. Assumimos, sem senso crítico, a estratégia petista de que Lula era candidato à Presidência da República em 2018. Não apenas isso, a mídia, contra o sentimento da maioria da população, garantia que o ex-presidente, cumprindo pena por corrupção e na contramão da Lei da Ficha Limpa, era favorito disparado para ganhar. Entramos de cabeça numa hipótese muito pouco provável. Nossas manchetes, apoiadas na abstração dos institutos de pesquisa, asseguravam que Lula era imbatível. Em nenhum momento desmontamos a fábula petista.
Quando o próprio Lula, finalmente, anunciou que não era candidato, e os institutos mudaram o foco, entramos em cheio na segunda fase da estratégia petista: Fernando Haddad era a bola da vez. O poder eleitoral de Lula, transferindo milhões de votos de sua cela em Curitiba, elegeria o poste. Mas não paramos aí. Entramos, mais uma vez, na roubada dos institutos: Bolsonaro perderia de “todos os outros candidatos” no segundo turno, em “todas as pesquisas”. Lembram disso? Pois é. Deu-se o exato contrário. Perigosos desvios de rota levaram a mídia a um porto inseguro.
Estamos de costas para a sociedade real. Não se trata, por óbvio, de ficar refém do pensamento da maioria. Mas o jornalismo, observador atento do cotidiano, não pode desconhecer e, mais que isso, confrontar permanentemente o sentir das suas audiências.
A verdade, limpa e pura, é que frequentemente a população tem valores opostos aos nossos. É, por exemplo, a favor da polícia, que a imprensa considera inimiga dos pobres, e contra os bandidos, que os jornalistas consideram vítimas da injustiça social.
O jornalismo precisa fazer a leitura correta e isenta dos acontecimentos. É preciso informar com objetividade. Esclarecer os fatos sem a distorção das preferências e dos filtros ideológicos.
A internet, o Facebook, o Twitter e todas as ferramentas que as tecnologias digitais despejam a cada momento sobre o universo das comunicações mudaram a política e mudarão o jornalismo. Queiramos ou não.
A imprensa de qualidade, séria e independente, é essencial para o futuro da democracia. E tudo isso, tudo mesmo, depende da nossa coragem e humildade para fazer a urgente e necessária autocrítica. Não bastam medidas paliativas. É hora de dinamitar antigos processos e modelos mentais ideológicos. A crise é grave. Mas a oportunidade pode ser imensa. A todos, feliz Natal!
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