quinta-feira, 25 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


O país visto por um canudo

“Desta vez, isto mexeu comigo”, comenta uma pessoa que nos últimos meses se tem dedicado a escrever teses em troca de dinheiro. O “isto” é a forma como a última cliente não se deu sequer ao trabalho de recolher a informação necessária para a tese de um MBA daqueles que se pagam a peso de ouro e que tornam dourado qualquer currículo. “Acho que devias começar a incluir no CV as notas das várias teses que já fizeste”, brinco, quando me conta que até já teve um 17, apesar de nunca ter frequentado aulas de MBA nem ter qualquer formação em Gestão. “Ou então guardas o dinheiro que te pagam e usas para pagar as propinas. Fazes isso com uma perna às costas”, insisto perante o desânimo de quem se vê metido numa fraude com que precisa de compactuar para ganhar dinheiro e que sabe que nunca chegará ao número de zeros com que ficarão os clientes nos seus ordenados depois de recebidos os canudos.

As universidades transformaram-se em fábricas de mentiras. O espírito crítico é visto com a desconfiança que causa a subversão a quem está mais interessado em métricas de empregabilidade. O conhecimento é um conceito obsoleto para quem acha que o Ensino Superior serve para “desenvolver competências”. A curiosidade fica substituída por um empreendedorismo dócil às regras do mercado, encaixotada em conceitos vagos e sexy como “pensar fora da caixa”.

Ainda sou do tempo em que era preciso produzir licenciados. Mas depois inventou-se Bolonha, para tornar os mestrados praticamente obrigatórios e, com esse truque, ir buscar propinas mais caras, para ajudar a financiar universidades cada vez mais à míngua de financiamento público. Agora, são todos mestres ou doutores, assim por extenso, mesmo que já ninguém os escreva nesse extenso que cheira a mofo e não condiz com a modernidade.


O que a modernidade quer é anunciar “a geração mais bem preparada de sempre”, embora não se saiba ao certo em que consiste essa preparação, quando são cada vez mais os que mal conseguem articular uma ideia. Pessimismo a mais? Olhem para os números: segundo um estudo da OCDE, 46% dos portugueses com idades entre os 25 e os 64 anos só conseguem compreender textos muito curtos e simples. Sim, está aqui a prova do que eu já intuía sempre que me vejo obrigada a explicar uma e outra vez uma notícia a quem não consegue ir além do título ou quando recebo emails de alunos de mestrado e doutoramento a pedirem-me para participar em inquéritos e o português é de tal maneira mau que tenho de os ler várias vezes até os decifrar.

E, não, este texto não é um manifesto elitista de quem acha que o Ensino Superior devia ser reservado aos iluminados e que o grande problema dos nossos tempos é que não vale a pena estudar História nem Filosofia porque se vai acabar na caixa de um supermercado. O conhecimento devia ser valorizado como um bem em si mesmo. Qualquer cidadão beneficia de saber como era o Estado Novo ou de conhecer as teses de Kant e de Platão ou de perceber o que por cá andou a fazer o Rousseau.

Pensar é uma ferramenta essencial à vida. Ou, pelo menos, devia ser. E era isso que as universidades deviam fazer: dar instrumentos a cidadãos que lhes permitissem avaliar o mundo e tomar decisões com base no conhecimento. Não vale a pena fazer do Ensino Superior um espaço de “aquisição de competências” e isso é ainda mais verdade num mundo em acelerada mutação. As tecnologias do momento mudam, os eixos do pensamento não: são coordenadas vitais. Qualquer universitário devia ter uma cultura sólida de Literatura, História e Filosofia, para lá de todas as competências mais específicas, em relação às quais o mais certo é vir a precisar de formação ao longo da vida.

O que é mais extraordinário é que, ao mesmo tempo que se desiste de usar o Ensino Superior para criar uma elite pensante, com as universidades curvadas perante o peso das cadeiras financiadas por empresas com agendas ideológicas, volta o discurso bafiento do Ensino Superior como “privilégio”. Aquilo que a democracia apresentou como um direito volta agora a ser uma regalia reservada aos que podem pagá-la.

Os dados, mais uma vez os dados, mostram como este ano voltou a cair o número de alunos carenciados a chegar ao Ensino Superior e há relatórios que garantem que o abandono escolar neste nível de ensino é tanto maior quanto mais baixa é a condição social. Não são só as propinas que pesam. É a habitação que esmaga as possibilidades de escolher um curso longe de casa. É o custo de vida que empurra alguns para trabalhos que depois não são compatíveis com os estudos. E, sim, também é esta ideia de uma sociedade que não valoriza o saber e de uma economia que não premeia o conhecimento. Para quê o investimento se o mais certo é andar o resto da vida a ganhar pouco mais de mil euros por mês?, perguntam-se alguns.

Enquanto isso, quem tem dinheiro na conta paga propinas milionárias de cursos pomposos com nomes em inglês, muitas vezes lecionados numa língua que faria o Shakespeare ranger os dentes e que me faz lembrar o latim de cordel de algumas personagens do Gil Vicente. É tudo uma farsa, mais ou menos engendrada pelo ChatGPT ou por alguém pago para escrever teses em modo takeaway, pronto a comer.

Andamos todos a comer gelados com a testa. Embevecidos com títulos académicos que não querem dizer nada. Embrutecidos pela ideia da eficácia e das “skills”. Iludidos com o mérito, que deixa sempre à porta os mais pobres. Estupidificados pela idolatria da tecnologia. Esmagados pelos mercados e a religião que nos impõem e não pode ser questionada. E enganados, acima de tudo, enganados por quem nos quer assim, cheios de canudos, mas dóceis, mestres e doutores, mas manipuláveis, altamente qualificados, mas completamente explorados.

A hora para partir ossos

Nas redes sociais corre há anos uma história que foi publicada na revista Forbes e se refere à famosa antropóloga norte-americana Margaret Mead. Reza a lenda que, quando questionada por um aluno sobre qual o mais antigo indício da civilização humana, respondera: “O registo fóssil de um fémur curado com 15 mil anos.” Estávamos na Idade do Gelo e para os homens primitivos, nómadas, um fémur partido significava a morte, uma presa fácil sem possibilidade de ele próprio caçar ou fugir. Um fémur curado significa que alguém cuidou daquele ser humano, teve empatia por alguém mais vulnerável, sentiu amor. “É aí que a civilização começa”, terá concluído Mead.

A História é comovente, mas provavelmente falsa, de acordo com outros antropólogos, que não encontraram provas de que Margaret Mead tenha dito tal coisa. Aliás, entre os académicos, parece estranhíssimo que seja esta uma prova da civilização humana, já que a Ciência nos tem mostrado o mesmo tipo de comportamento entre outros animais. O altruísmo não é uma característica meramente humana, os grandes primatas também a têm, por exemplo, mas é certo que não existe Humanidade sem altruísmo.

Os tempos que vivemos fazem-nos perder a fé na Humanidade. Tudo o que construímos após a II Guerra Mundial, os direitos humanos, o Estado social, o caminho para a igualdade entre homens e mulheres, tudo isso sobreviveu à ultraindividualista e gananciosa cultura yuppie dos anos 80, mas sobreviverá à “modernidade líquida” anunciada pelo filósofo Zygmunt Bauman e que parece estar a atingir o seu máximo esplendor na era das redes sociais?


O que poderá levar 150 mil pessoas às ruas de Londres para se manifestarem contra um grupo social altamente vulnerável como os imigrantes? O protesto aconteceu no sábado e foi liderado pelo ativista de extrema-direita Tommy Robinson e a multidão moveu-se contra o que diz ser o “apagamento e a substituição da cultura britânica”. Houve um contraprotesto (na foto), mas não juntou mais de cinco mil pessoas.

Para quem se esquece com frequência dos cinco milhões de portugueses que vivem no estrangeiro, convém relembrar que eles são imigrantes também e, obviamente, os que estão no Reino Unido ficam incluídos entre os visados nesta marcha de ódio. Estas pessoas – e muitas outras por toda a Inglaterra – não os querem lá, por muito que o primeiro-ministro Keir Starmer reafirme que não aceita que “cidadãos se sintam intimidados nas ruas por causa da sua origem ou da cor da sua pele”.

O protesto da direita radical teve outra particularidade. A polícia foi atacada por projéteis e houve vários agentes agredidos. Elon Musk, um imigrante a viver nos Estados Unidos da América que tinha apoiado a manifestação, avisou a partir da sua rede social: “A violência está a caminho.”

A violência sempre esteve entre nós. Característica de todo o reino animal, não é o que nos distingue enquanto Humanidade. No caso de Charlie Kirk, o ativista influencer de 31 anos assassinado a tiro na Universidade de Utah Valley, a violência é gasolina numa fogueira muito perigosa. Kirk fazia campanhas contra a vacinação e negava as alterações climáticas – era uma força da ultradireita americana na catequização dos mais jovens.

A direita radical portuguesa aparece agora em primeiro lugar numa sondagem, algo inédito no País. Ao aceitarem e interiorizarem um discurso que quase sempre é de ódio, os portugueses escolhem partir fémures, não curá-los. O altruísmo fica para outra hora, para um novo início da civilização.

Criminosos Seriais

Começam a ser condenados os chefes da grande quadrilha — perdão, orcrim, nome mais moderno que substitui o termo usado desde o século XIX derivado do quattuor latino talvez pela raridade de quadrilhas de só quatro bandidos. Bem, esse nome era realmente recente para designar coisa antiga. Nome por nome, havia bando, maffia, tríade, yakuza, cartel, bratva, comando, falange, cangaço, tudo reunião de bandidos — este derivado de bandire, banir, por bandito — ou de criminosus,a,um — quem fez um crime. Crime, por sua vez, vem de crimen,inis, o acusado. Vamos e venhamos, temos muita palavra para uma coisa muito frequente, que é a violação da lei. Depois de Beccaria, lei penal, pois separou-se um ramo do direito para explicitar o que é sujeito a punição pelo Estado, o que é agressão do indivíduo à sociedade.

Retomo: foram condenados os chefes da grande organização criminosa que se formou em 2018, por iniciativa do general Vilas Boas, que cooptou como chefe do bando o famigerado Bolsonaro, velho criminoso que conseguia escapar de todas as punições pela sua capacidade de se metamorfosear de vilão em vítima. A organização tinha por objetivo implantar no Brasil uma ditadura fascista. O primeiro não tinha condições de saúde para ocupar ele mesmo a chefia do bando, mas não deveria ter sido omitido no inquérito da Polícia Federal: sua participação fica clara em inúmeros atos, inclusive na presença de sua mulher na concentração do Forte Apache, porta voz e escudo contra a ação policial, mas, sobretudo, pela palavra do genocida ao agradecer sua eleição a ele e dizer que sua “conversa ficará entre nós”.


Com estas condenações, se enfraquece a quadrilha, mas engana-se quem crê que ela está extinta ou controlada. Um dado recente foi a necessidade de se fazer um novo inquérito para investigar a coação no curso do processo, coação feita inclusive com o uso de traição — ao pedir a colaboração de governo estrangeiro — e com a ocupação da Câmara dos Deputados e do Senado Federal. Já é evidente, no inquérito aberto, que o líder continua sendo o mesmo, com papéis relevantes para o perigoso elemento Silas Malafaia, para Eduardo Bananinha, Arthur Lyra, Sóstenes Cavalcanti, Rogério Marinho e uma corja de delinquentes-parlamentares, além do experiente e ativo grupo de operadores de fake-news, objeto de um terceiro inquérito — o mais antigo — ainda inconcluso.

Do mesmo modo com que se faz no combate a organizações criminosas ordinárias que operam drogas etc., a orcrim que opera política tem que ter seus mecanismos podados: as fontes financiadoras, a comunicação e suas ligações com laranjas inseridos nas mais diversas posições da sociedade. Os presídios de segurança máxima foram feitos para essas eventualidades dos grandes e perigosos chefes e principais sequazes. É para onde, agora, indubitavelmente, devem ir os recém-condenados.

Durante o julgamento, os ministros juízes fizeram questão de ressalvar que não falavam das corporações em si, mas de elementos nelas inseridos, manifestando grande admiração pelas forças armadas etc. Infelizmente algumas falhas estruturais entregaram essas corporações a criminosos, de maneira que a exceção não é quem nelas é criminoso, mas quem nelas não é criminoso.

A opção dos militares brasileiros pelo crime é antiga. Luís Alves de Lima e Silva instituiu a prática da “pacificação”, em que são executados todos os adversários considerados perigosos e, depois, se concede anistia para os crimes cometidos pelos mais fortes. Deste tipo foi a última grande anistia brasileira, a da Lei 6.683/1979, excluía os condenados pelos instrumentos de exceção, mas procurava abrigar os torturadores et caterva — na realidade autores de crimes contra a humanidade, não anistiáveis e imprescritíveis. Devemos fugir das pacificações como o diabo da cruz.

O caso da política é similar. Desde o império até nossos dias a política teve a participação de um número elevado de bandidos. Corrupção e violência andaram a par e passo. Mas elas não são inevitáveis. A maior parte do tempo houve maioria ou minoria significativa que detestava os dois tipos de crime e procurou combatê-los. Afonso Arinos assinalou que o sistema eleitoral brasileiro levaria cada vez mais à eleição de parlamentares pelos interesses corporativos e/ou pessoais. Foi o que aconteceu, até que esses interesses dominaram o parlamento.

Dos interesses às organizações políticas estabelecidas com a finalidade de cometer crimes, portanto orcrim, foi um pequeno passo. Raros partidos hoje não pertencem (não uso aspas, é literal) a uma ou umas poucas pessoas. É o caso do PL, propriedade do senhor Valdemar da Costa Neto. É um negócio que começa com a entrega anual aos partidos de cerca de 5 bilhões de reais — um quinto para o PL — para administração e campanha eleitoral, naturalmente em condições muito vantajosas. A rotina tem sido de quintuplicar o valor da proposta orçamentária. Passa depois pelas emendas, nome dado à apropriação de recursos destinados a ações essenciais da União pelos bandidos-parlamentares, que terão o valor de 84 bilhões, a ser dividido entre os donos dos diversos partidos. Não é de admirar que se tenha tantos partidos. Não é preciso lembrar a venda de emendas-jabutis e/ou projetos de lei, que rendem valores difíceis de imaginar.

O mais urgente é investigar e punir os crimes cometidos pelos membros da organização ainda chefiada diretamente por Bolsonaro, que não estão só no PL. Comece-se com os que, nos primeiros dias de agosto, cometeram o crime de tentativa de abolição violenta do Estado de Direito (impedindo e restringindo o funcionamento dos Poderes Legislativo e Judiciário). Não se espere ação da Câmara e do Senado, não só porque eles nada farão, mas porque a iniciativa da ação é evidentemente do Procurador Geral da República e o processo deve correr no Supremo Tribunal Federal (art. 53 § 1º; art. 102 Ib).

Trata-se de organização criminosa para cometer crimes em série. Serial killers do Estado de Direito. Só se resolve com prisão em regime fechado.

A História nos julgará

Não é fácil e muito menos consensual definir qual é o lado certo da História. Mas há algo de que não devemos duvidar: um dia, todos nós, sem exceção, seremos julgados pela História, seja ela grande ou pequena, com repercussão pública ou acanhadamente privada. Isso não se deve a algum sentido determinístico associado à ideia de destino traçado, mas antes à forma como, para o bem e para o mal, seremos recordados ou até simplesmente ignorados – que é também uma forma de a História ajustar contas com aqueles que, no seu tempo, pensaram ser importantes e relevantes… mas perderam rapidamente o seu “prazo de validade”.

O julgamento da História é também, como sabemos, muitas vezes cruel. E, sem que nada o fizesse prever, a imagem de alguém com uma carreira abnegada e irrepreensível em defesa do bem público pode, de repente, ficar manchada por causa de um erro de cálculo, por uma má decisão ou até uma asneira. Com consequências para sempre.

Ninguém sabe como é que, daqui a umas décadas, se vai olhar para este tempo em que vivemos, nomeadamente para a forma sistemática com que a população da Faixa de Gaza tem sido submetida, há quase dois anos, a uma carnificina prolongada e brutal. Sabemos, no entanto, como olhamos para todos aqueles que, na II Guerra Mundial, viraram as costas às denúncias do holocausto dos judeus, nos campos de extermínio da Europa oriental – e não os desculpamos. Também sabemos como encaramos aqueles que, na guerra da ex-Jugoslávia, ignoraram os sinais que poderiam ter evitado o massacre de Srebrenica – e não os perdoamos.


Mas seremos sempre assim tão severos? De todo. Só isso explica porque, ainda hoje, se aceite olhar para o morticínio do povo cambojano nos temíveis killing fields, como a obra de um ditador louco, ignorando a forma como esse mesmo Pol Pot foi apoiado e até defendido por americanos e chineses, apenas e só por razões geopolíticas da Guerra Fria.

O reconhecimento do Estado da Palestina pode não ter nenhum efeito prático no imediato, mas ajuda a definir o lado em que queremos ser recordados na História. E isso, só por si, já é um avanço moral considerável: significa que, pelo menos no tempo simbólico, sabemos escolher o caminho certo, sem estarmos presos aos meandros diplomáticos dos interesses do realismo político. É inconsequente? Não obriga o governo extremista de Israel a mudar os seus planos militares? Pode ser tudo verdade, mas há momentos em que já não se pode suportar o silêncio prolongado, o virar de costas, como se tudo aquilo que se tem passado em Gaza não tivesse a ver connosco, seres humanos.

A forma como este movimento diplomático se desenrolou, numa coordenação entre França, a Arábia Saudita e o Reino Unido, pode ser o indicar de um novo caminho para a diplomacia. E, acima de tudo, para um separar de águas que, mais do que nunca, é prioritário na política internacional: entre os países que, mesmo com todos os seus problemas e defeitos, continuam a respeitar a Carta das Nações Unidas e a lutar por ela, e outros, como Israel e os EUA, que cada vez mais se afundam numa deriva totalitária, sem respeito pelos outros e apenas preocupados consigo.

A memória não pode ser curta. Noutros tempos, também Portugal votou quase isolado nas Nações Unidas, ao arrepio do resto do mundo. E isso aconteceu não só nas lutas das décadas de 1960 e 1970 com as resoluções sobre o direito dos povos à autodeterminação, como nos votos a condenar o tenebroso regime do Apartheid, na África do Sul – que só terminou devido à ação persistente da comunidade internacional.

Neste estranho tempo em que vivemos, os isolados de Washington e Telavive têm os dedos nos botões do poder. E é inadmissível como, ao mesmo tempo que vai liquidando a democracia americana, Donald Trump ainda se dá ao luxo de abusar da sua qualidade de anfitrião para gozar nitidamente com as Nações Unidas. O modo como Washington impediu a presença física do líder da Autoridade Palestiniana no palco da Assembleia Geral das Nações Unidas – onde vai ser obrigado a discursar por vídeo –, enquanto abre os braços para um show de Benjamin Netanyahu no mesmo plenário deveria receber a condenação geral de todos os países. Seria, outra vez, uma forma de escolherem como querem ser julgados pela História.

Estratégia geotech

A Comissão Europeia anunciou, a 3 de setembro, uma multa recorde aplicada à Google por práticas anticoncorrenciais. O valor, por si, é impressionante – quase três mil milhões de euros. Mas será? E terá a capacidade de alterar comportamentos, da Google e demais big tech? Dificilmente.

Caso consideremos o free cash flow da Google, em 2024 (divulgado nos seus relatórios públicos), o valor da multa representa cerca de 17 dias de atividade. O mercado parece considerar a multa insignificante. As ações da Google foram transacionadas, no dia 2 de setembro a 211,35 dólares, e no dia 3 – dia do anúncio da multa – a 230,66 dólares. Nos dias seguintes, foram transacionadas sempre acima dos 230 dólares.

Igualmente, não existiu nenhuma notícia a pôr em causa o conselho de administração da Google, nem nenhum acionista de referência publicou a intenção de desinvestir.


Aliás, a empresa valorizou-se significativamente, quando, no dia 5 de setembro, um tribunal americano deliberou que a Google era uma empresa monopolista e tinha violado a lei, mas não obrigou a vender parte do negócio (no caso, o Google Chrome e Android), como era requerido pelo regulador.

Ou seja, o mercado não acredita que o Estado americano e a União Europeia estejam dispostos a aplicar a legislação anticoncorrência de forma a alterar o modelo de negócio monopolista que garante lucros astronómicos. Pelo menos, no curto prazo.

E o mercado não costuma enganar-se…

As big tech são, aliás, transparentes na sua estratégia. Apoiam Trump e a sua Administração. E esta apoia as big tech. Na negociação das tarifas, procurou um acordo com a Comissão Europeia para que esta revisse a legislação dos serviços digitais e Inteligência Artificial (nomeadamente, a responsabilidade por danos provocados) e ameaça com novas tarifas caso a União Europeia avance com um imposto sobre as plataformas digitais.

A Comissão Europeia afirma que não irá alterar a legislação, mas o imposto sobre serviços digitais, cujos trabalhos se iniciaram em 2018, ainda não foi criado. Um imposto de 5% sobre as receitas geradas no espaço europeu permitiria uma receita de 37,5 mil milhões de euros em 2026, ou seja, um valor equivalente a 19% do orçamento da União Europeia em 2025 (de acordo com um estudo publicado pelo CEPS). Atualmente, a carga fiscal das empresas digitais é de apenas 9,5%, quando a economia tradicional paga uma taxa média de 23,3%. Um imposto digital é essencial para garantir este equilíbrio e assegurar que o orçamento europeu (e o dos Estados-membros) tem capacidade para responder aos múltiplos desafios que enfrenta (da defesa à emergência climática).

As big tech sabem que o momento é crucial e o apoio político da Administração Trump, fundamental. É a Administração que controla a interposição e a eventual desistência de ações judiciais anticoncorrência – uma vez que estas são promovidas pelo Departamento de Justiça e pelo regulador, a Federal Trade Commission, cujos dirigentes são nomeados pelo Presidente Trump. Acresce que o apoio da Administração e, como tal, do Partido Republicano, impede a aprovação de qualquer alteração legislativa no regime da responsabilidade das plataformas pelos conteúdos distribuídos ou produzidos pelos LLM.

Aquando do lançamento das redes sociais e do YouTube, com o scrolling e o feed de conteúdos, o regulador poderia ter tomado uma de duas opções: fazer equivaler as plataformas digitais a uma companhia de telecomunicações e, como tal, serem imunes aos danos provocados pelos conteúdos disponíveis ou responsabilizar as plataformas pelos conteúdos distribuídos.

Nos EUA e na Europa optou-se pela imunidade e, como tal, captar a nossa atenção pelo máximo tempo possível – ainda que com conteúdos nocivos ao indivíduo e à sociedade – tornou-se a base do negócio. No processo, o algoritmo passou a dominar as nossas vidas, o espaço social e político.

Agora, que o legislador – ainda que timidamente – apresentou, na Europa, a primeira regulação (face à evidente degradação da democracia e aos efeitos nefastos na saúde mental), as big tech estão dispostas a tudo para impedir o fim do seu império.

Nunca foi tão importante a pressão social para que a Comissão Europeia não se demova e aplique a legislação de forma efetiva. Tal implica que este tema, nas suas várias dimensões, seja parte do debate público, discutido ativamente em vários fóruns e não apenas nos corredores políticos. Só assim será possível garantir que os nossos representantes políticos reconheçam a importância deste momento e atuem em consonância.

Na vida de Bolsonaro, o pior dos dias é qualquer dia

Não existia para Bolsonaro um dia pior do que a sexta-feira 18 de julho de 2025, em que foi posto pela primeira vez em prisão domiciliar. Embora ainda pudesse sair de casa entre as 6 horas da manhã e as 7 da noite, ele passou a fazê-lo algemado a uma inseparável tornozeleira eletrônica, suprema humilhação.

Até que chegou a segunda-feira, 4 de agosto. Por descumprir medidas cautelares da Justiça, Bolsonaro foi definitivamente proibido de acessar as redes sociais e de pôr os pés na rua, a não ser para atendimento médico e sob escolta policial. Ou então para comparecer ao seu julgamento. Não compareceu.


O domingo 7 de setembro até foi um bom dia para Bolsonaro. Na Avenida Paulista, 42 mil pessoas sob a batuta do pastor evangélico Silas Malafaia e do governador Tarcísio de Freitas pediram anistia para ele e xingaram o Supremo Tribunal Federal. Mas aí veio a quinta-feira 11 com a sua pesada condenação.

Surpresa alguma para Bolsonaro, salvo o tamanho da pena: 27 anos e três meses de prisão em regime fechado. Ao cumprir a pena integralmente, sem anistia ou indulto presidencial, ele ficará inelegível até quase os 80 anos de idade. Talvez mais porque ainda será julgado por outros crimes. Fim de linha.

Diante disso tudo, nada poderia acontecer de pior, mas aconteceu. No último domingo, depois de um intervalo de 20 anos, a esquerda ocupou as ruas de todas as capitais do país, e de dezenas de médias e pequenas cidades, e tomou da direita o discurso da luta contra a corrupção. Que dor sentiu Bolsonaro em ver aquilo.

Finalmente, o inimaginável: a falta de uma menção ao seu nome, por mais breve que fosse, no discurso de Donald Trump na abertura da Assembleia Geral da ONU. E, não bastasse, a menção simpática feita por Trump ao nome de Lula, com quem ele trocou um abraço pouco antes de ingressar no recinto.

Sequer um abraço Trump deu em Bolsonaro quando os dois se cruzaram no mesmo lugar em 2019. Humildemente, Bolsonaro esperou que Trump passasse por ele para dizer em voz alta e em inglês macarrônico: “Eu te amo”. Cercado de assessores, Trump não ouviu ou fingiu não ouvir. Se ouviu, não correspondeu.

Pois é, caros leitores. Rei morto, viva o novo Rei da direita a ser escolhido. Bolsonaro está sendo velado à distância por todos os que o exaltavam. Apesar de dependerem do seu voto para disputar as próximas eleições, eles temem herdar sua rejeição que só faz aumentar. Os efeitos da rejeição poderão ser mortais.

Trump era sua última esperança. Daqui para frente, todo dia será o pior deles para Bolsonaro.

Donald Trump: o presidente da decadência norte-americana

Durante os últimos 107 anos, desde o final da Primeira Guerra Mundial, os Estados Unidos têm ocupado uma posição central na política internacional, resultado de uma conjugação de vários fatores: capacidade de atrair capital e mão de obra, economia pujante, forte poderio militar e contínuo desenvolvimento tecnológico.

Ao longo de décadas, as principais personalidades das áreas do conhecimento foram atraídas pelos EUA, com algumas das melhores universidades do mundo. Mais, o país criou um sistema industrial com capacidade para desenvolver e comercializar inovações, mesmo que as surgidas em outras geografias, apesar de, economicamente, estar ancorado em energias sujas, como o petróleo e seus derivados e o carvão, matérias-primas que têm em abundância.

Acontece que o mundo, hoje, vive uma mudança de paradigma tecnológico, com a descarbonização da economia. Energias renováveis, utilização de produtos recicláveis e a redução do uso industrial do carvão são algumas das marcas do novo tempo.

As novas tecnologias voltadas para a preservação do meio ambiente dependem, contudo, na maior parte das vezes, de apoios públicos até atingirem a maturidade. Mesmo a Tesla, considerada uma das primeiras empresas de sucesso de automóveis elétricos, teve apoio de 465 milhões de dólares do Governo Obama, sem os quais não teria conseguido decolar.

Toda a mudança de paradigma tecnológico possibilita o surgimento de novos protagonistas tanto no âmbito empresarial quanto de regiões que antes produziam menor quantidade de riquezas. Nesse mundo novo, porém, estruturas consolidadas podem ficar para trás, devido a escolhas equivocadas.

Trump, dentro do que é geralmente chamado de política transnacional, aliou-se a setores que estão do lado contrário da inovação, para tentar frear as mudanças. Juntou-se às empresas de petróleo, ao setor do carvão, bombardeia as normas que exigem a redução da emissão dos gases de efeito estufa para favorecer os grupos que o financiam e ao seu grupo político.

Os Estados Unidos têm capital suficiente para, como têm realizado desde que se tornaram centrais no sistema econômico, comprar os direitos das inovações tecnológicas e atrair talentos, oferecendo-lhes melhores condições para o avanço de pesquisas, mas a opção tem sido por bombardear a política migratória.

Em termos de mão de obra, o Governo norte-americano ataca o setor da saúde, ao reduzir o financiamento público a programas como o Medicare e o Medicaid, o que deixa sem tratamento milhões de norte-americanos com menos recursos, além de desestimular e desinvestir em vacinas, provocando o ressurgimento de doenças que estavam praticamente erradicadas no país.

Na área da educação, a retirada de livros de bibliotecas e o dirigismo nos currículos das disciplinas, que passam a estar voltados para a louvação de uma visão deturpada da grandeza americana, ignoram, intencionalmente, a escravidão, o racismo e as desigualdades sociais e minam a criação de um sentido crítico, fundamental para o desenvolvimento de qualquer país.

Apenas duas áreas são estimuladas, mas que pouco contribuem para o desenvolvimento do país. A inteligência artificial, que o Governo Trump propõe que seja completamente desregulada, o que facilita a difusão de desinformação, e a cripto economia, que vive em uma zona escura da legalidade, valhacouto de ganhos do tráfico de drogas, da sonegação fiscal, do tráfico de pessoas e de outras atividades para as quais a transparência representa uma ameaça.

Não só: Trump censura aqueles que discordam de suas posições, destruindo os pilares daquela que ainda é considerada a maior democracia do mundo. Nem mesmo o humor está escapando dessa visão autocrática.

Dentro de alguns anos, ao ser feito o balanço da atual presidência norte-americana, os dados vão mostrar que Donald Trump foi administrador da transferência da centralidade econômica para outras geografias — mais provavelmente, por ter entregado a dianteira para a China, que diz combater
Jair Rattner