quinta-feira, 25 de setembro de 2025

O país visto por um canudo

“Desta vez, isto mexeu comigo”, comenta uma pessoa que nos últimos meses se tem dedicado a escrever teses em troca de dinheiro. O “isto” é a forma como a última cliente não se deu sequer ao trabalho de recolher a informação necessária para a tese de um MBA daqueles que se pagam a peso de ouro e que tornam dourado qualquer currículo. “Acho que devias começar a incluir no CV as notas das várias teses que já fizeste”, brinco, quando me conta que até já teve um 17, apesar de nunca ter frequentado aulas de MBA nem ter qualquer formação em Gestão. “Ou então guardas o dinheiro que te pagam e usas para pagar as propinas. Fazes isso com uma perna às costas”, insisto perante o desânimo de quem se vê metido numa fraude com que precisa de compactuar para ganhar dinheiro e que sabe que nunca chegará ao número de zeros com que ficarão os clientes nos seus ordenados depois de recebidos os canudos.

As universidades transformaram-se em fábricas de mentiras. O espírito crítico é visto com a desconfiança que causa a subversão a quem está mais interessado em métricas de empregabilidade. O conhecimento é um conceito obsoleto para quem acha que o Ensino Superior serve para “desenvolver competências”. A curiosidade fica substituída por um empreendedorismo dócil às regras do mercado, encaixotada em conceitos vagos e sexy como “pensar fora da caixa”.

Ainda sou do tempo em que era preciso produzir licenciados. Mas depois inventou-se Bolonha, para tornar os mestrados praticamente obrigatórios e, com esse truque, ir buscar propinas mais caras, para ajudar a financiar universidades cada vez mais à míngua de financiamento público. Agora, são todos mestres ou doutores, assim por extenso, mesmo que já ninguém os escreva nesse extenso que cheira a mofo e não condiz com a modernidade.


O que a modernidade quer é anunciar “a geração mais bem preparada de sempre”, embora não se saiba ao certo em que consiste essa preparação, quando são cada vez mais os que mal conseguem articular uma ideia. Pessimismo a mais? Olhem para os números: segundo um estudo da OCDE, 46% dos portugueses com idades entre os 25 e os 64 anos só conseguem compreender textos muito curtos e simples. Sim, está aqui a prova do que eu já intuía sempre que me vejo obrigada a explicar uma e outra vez uma notícia a quem não consegue ir além do título ou quando recebo emails de alunos de mestrado e doutoramento a pedirem-me para participar em inquéritos e o português é de tal maneira mau que tenho de os ler várias vezes até os decifrar.

E, não, este texto não é um manifesto elitista de quem acha que o Ensino Superior devia ser reservado aos iluminados e que o grande problema dos nossos tempos é que não vale a pena estudar História nem Filosofia porque se vai acabar na caixa de um supermercado. O conhecimento devia ser valorizado como um bem em si mesmo. Qualquer cidadão beneficia de saber como era o Estado Novo ou de conhecer as teses de Kant e de Platão ou de perceber o que por cá andou a fazer o Rousseau.

Pensar é uma ferramenta essencial à vida. Ou, pelo menos, devia ser. E era isso que as universidades deviam fazer: dar instrumentos a cidadãos que lhes permitissem avaliar o mundo e tomar decisões com base no conhecimento. Não vale a pena fazer do Ensino Superior um espaço de “aquisição de competências” e isso é ainda mais verdade num mundo em acelerada mutação. As tecnologias do momento mudam, os eixos do pensamento não: são coordenadas vitais. Qualquer universitário devia ter uma cultura sólida de Literatura, História e Filosofia, para lá de todas as competências mais específicas, em relação às quais o mais certo é vir a precisar de formação ao longo da vida.

O que é mais extraordinário é que, ao mesmo tempo que se desiste de usar o Ensino Superior para criar uma elite pensante, com as universidades curvadas perante o peso das cadeiras financiadas por empresas com agendas ideológicas, volta o discurso bafiento do Ensino Superior como “privilégio”. Aquilo que a democracia apresentou como um direito volta agora a ser uma regalia reservada aos que podem pagá-la.

Os dados, mais uma vez os dados, mostram como este ano voltou a cair o número de alunos carenciados a chegar ao Ensino Superior e há relatórios que garantem que o abandono escolar neste nível de ensino é tanto maior quanto mais baixa é a condição social. Não são só as propinas que pesam. É a habitação que esmaga as possibilidades de escolher um curso longe de casa. É o custo de vida que empurra alguns para trabalhos que depois não são compatíveis com os estudos. E, sim, também é esta ideia de uma sociedade que não valoriza o saber e de uma economia que não premeia o conhecimento. Para quê o investimento se o mais certo é andar o resto da vida a ganhar pouco mais de mil euros por mês?, perguntam-se alguns.

Enquanto isso, quem tem dinheiro na conta paga propinas milionárias de cursos pomposos com nomes em inglês, muitas vezes lecionados numa língua que faria o Shakespeare ranger os dentes e que me faz lembrar o latim de cordel de algumas personagens do Gil Vicente. É tudo uma farsa, mais ou menos engendrada pelo ChatGPT ou por alguém pago para escrever teses em modo takeaway, pronto a comer.

Andamos todos a comer gelados com a testa. Embevecidos com títulos académicos que não querem dizer nada. Embrutecidos pela ideia da eficácia e das “skills”. Iludidos com o mérito, que deixa sempre à porta os mais pobres. Estupidificados pela idolatria da tecnologia. Esmagados pelos mercados e a religião que nos impõem e não pode ser questionada. E enganados, acima de tudo, enganados por quem nos quer assim, cheios de canudos, mas dóceis, mestres e doutores, mas manipuláveis, altamente qualificados, mas completamente explorados.

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