quinta-feira, 25 de setembro de 2025

A História nos julgará

Não é fácil e muito menos consensual definir qual é o lado certo da História. Mas há algo de que não devemos duvidar: um dia, todos nós, sem exceção, seremos julgados pela História, seja ela grande ou pequena, com repercussão pública ou acanhadamente privada. Isso não se deve a algum sentido determinístico associado à ideia de destino traçado, mas antes à forma como, para o bem e para o mal, seremos recordados ou até simplesmente ignorados – que é também uma forma de a História ajustar contas com aqueles que, no seu tempo, pensaram ser importantes e relevantes… mas perderam rapidamente o seu “prazo de validade”.

O julgamento da História é também, como sabemos, muitas vezes cruel. E, sem que nada o fizesse prever, a imagem de alguém com uma carreira abnegada e irrepreensível em defesa do bem público pode, de repente, ficar manchada por causa de um erro de cálculo, por uma má decisão ou até uma asneira. Com consequências para sempre.

Ninguém sabe como é que, daqui a umas décadas, se vai olhar para este tempo em que vivemos, nomeadamente para a forma sistemática com que a população da Faixa de Gaza tem sido submetida, há quase dois anos, a uma carnificina prolongada e brutal. Sabemos, no entanto, como olhamos para todos aqueles que, na II Guerra Mundial, viraram as costas às denúncias do holocausto dos judeus, nos campos de extermínio da Europa oriental – e não os desculpamos. Também sabemos como encaramos aqueles que, na guerra da ex-Jugoslávia, ignoraram os sinais que poderiam ter evitado o massacre de Srebrenica – e não os perdoamos.


Mas seremos sempre assim tão severos? De todo. Só isso explica porque, ainda hoje, se aceite olhar para o morticínio do povo cambojano nos temíveis killing fields, como a obra de um ditador louco, ignorando a forma como esse mesmo Pol Pot foi apoiado e até defendido por americanos e chineses, apenas e só por razões geopolíticas da Guerra Fria.

O reconhecimento do Estado da Palestina pode não ter nenhum efeito prático no imediato, mas ajuda a definir o lado em que queremos ser recordados na História. E isso, só por si, já é um avanço moral considerável: significa que, pelo menos no tempo simbólico, sabemos escolher o caminho certo, sem estarmos presos aos meandros diplomáticos dos interesses do realismo político. É inconsequente? Não obriga o governo extremista de Israel a mudar os seus planos militares? Pode ser tudo verdade, mas há momentos em que já não se pode suportar o silêncio prolongado, o virar de costas, como se tudo aquilo que se tem passado em Gaza não tivesse a ver connosco, seres humanos.

A forma como este movimento diplomático se desenrolou, numa coordenação entre França, a Arábia Saudita e o Reino Unido, pode ser o indicar de um novo caminho para a diplomacia. E, acima de tudo, para um separar de águas que, mais do que nunca, é prioritário na política internacional: entre os países que, mesmo com todos os seus problemas e defeitos, continuam a respeitar a Carta das Nações Unidas e a lutar por ela, e outros, como Israel e os EUA, que cada vez mais se afundam numa deriva totalitária, sem respeito pelos outros e apenas preocupados consigo.

A memória não pode ser curta. Noutros tempos, também Portugal votou quase isolado nas Nações Unidas, ao arrepio do resto do mundo. E isso aconteceu não só nas lutas das décadas de 1960 e 1970 com as resoluções sobre o direito dos povos à autodeterminação, como nos votos a condenar o tenebroso regime do Apartheid, na África do Sul – que só terminou devido à ação persistente da comunidade internacional.

Neste estranho tempo em que vivemos, os isolados de Washington e Telavive têm os dedos nos botões do poder. E é inadmissível como, ao mesmo tempo que vai liquidando a democracia americana, Donald Trump ainda se dá ao luxo de abusar da sua qualidade de anfitrião para gozar nitidamente com as Nações Unidas. O modo como Washington impediu a presença física do líder da Autoridade Palestiniana no palco da Assembleia Geral das Nações Unidas – onde vai ser obrigado a discursar por vídeo –, enquanto abre os braços para um show de Benjamin Netanyahu no mesmo plenário deveria receber a condenação geral de todos os países. Seria, outra vez, uma forma de escolherem como querem ser julgados pela História.

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