sábado, 8 de setembro de 2018

Um país amnésico

Como ficou demonstrado com o incêndio do Museu Nacional, o Brasil parece só usar a memória para se lembrar de que não a tem ou a tem incompleta — é o país da amnésia crônica e do pretérito imperfeito. A voracidade do tempo presente e a correria da vida moderna podem contribuir para isso, mas também e principalmente a pouca atenção que damos à nossa História. Gostamos do paradoxo de cultivar uma espécie de memória do esquecimento. Agora, por exemplo, avolumam-se as evidências do que deveria e poderia ter sido feito preventivamente para evitar o que está sendo repetido como um lugar comum: foi uma “tragédia anunciada”. Sim, e de múltiplas responsabilidades criminosas.

Esse pouco apreço ao nosso patrimônio cultural não é de hoje. “No meu tempo”, como dizem os velhos, o ensino fazia da História uma disciplina enfadonha que se resumia a uma relação cansativa de datas e nomes que dependiam de um mecanismo de aprendizado conhecido como “decoreba”, isto é, engolir sem precisar entender e sem gostar do que logo depois se esquecia.



Visitas guiadas a museus não eram um programa das escolas. Aliás, visitar exposições ainda é um hábito que se pratica sobretudo quando se viaja ao exterior. Em 2017, mais brasileiros foram ao Louvre do que ao nosso Museu Nacional. De acordo com quem fez as contas, o repórter Rafael Barifouse, da BBC News Brasil, foram 289 mil visitantes brasileiros lá contra 192 mil aqui. E mais: o número de patrícios que visitaram o museu francês foi 50,5% superior à visitação total da instituição brasileira.

Assim como enchemos o peito para exaltar com razão o nosso patrimônio esportivo — as Copas que conquistamos, os craques que fabricamos e exportamos — poderíamos ostentar também com orgulho os tesouros culturais que só agora, que os perdemos pelo fogo, tornamos conhecidos e valorizamos.

Apesar de seus 200 anos e do acervo de 20 milhões de peças, inclusive relíquias arqueológicas como Luzia, a nossa primeira mulher, a instituição criada por D. João VI precisou virar cinzas para ter sua importância conhecida pelo público. Além do que guardava, o Palácio de São Cristóvão é, segundo o jornalista e historiador Laurentino Gomes, o local de nascimento do Brasil como Estado-nação. Para ele, o incêndio equivaleu “ao Brasil queimar sua própria certidão de nascimento”.

A triste realidade é que nossa amnésia crônica nunca chegou a ser uma preocupação nacional. É matéria preferencial para o humor. A piada crítica mais conhecida é a do excelente cronista Ivan Lessa, ele mesmo pouco lembrado, que dizia: “A cada 15 anos, o Brasil esquece os últimos 15 anos”.

E essa quase verdade é para se lamentar, não para fazer rir.

Existem três teses sobre legitimidade da eleição sem Lula

O veto legal à candidatura de Lula singulariza a eleição em curso, distinguindo-a de todas as anteriores, desde a redemocratização. Daí, emerge um debate sobre legitimidade, que se espraia ao longo de três teses. A primeira diz que a eleição é legal e legítima; a segunda, que é ilegítima; a terceira, e mais interessante, faz a legitimidade da eleição depender de seus resultados. A visão convencional, adotada pela maioria dos partidos, não enxerga nenhum problema de legitimidade.

A Lei da Ficha Limpa, fonte do veto à candidatura de Lula, nasceu de um projeto de iniciativa popular e, depois de amplamente aprovada no Congresso, foi sancionada sem vetos pelo próprio Lula. É instrumento legal de validade geral, que cancelou as mais diversas candidaturas desde 2014, não uma ferramenta destinada a cassar os direitos de Lula ou do PT.


A eleição é legítima. O debate sobre o tema é que não é, derivando de um desejo de colocar Lula acima da lei ou de uma pervertida estratégia de campanha.

O segundo ponto de vista, adotado por correntes de extrema esquerda abrigadas no interior do PSOL ou em surpreendente aliança com o PT (caso do PCO), pode ser qualificado, com alguma ironia, de revolucionário. O veto a Lula é o prosseguimento do “golpe parlamentar” do impeachment e tem a finalidade de ladrilhar o caminho das “reformas neoliberais”. O Judiciário participa do “golpe”, conduzindo a perseguição legal ao ex-presidente. Os mensageiros desta tese repetem, letra por letra, a narrativa desenvolvida pelo PT desde 2016, mas com finalidades muito diferentes.

A extrema esquerda habituou-se a encher seu potinho de sonhos com as sobras do lauto banquete lulista. Em 2002, apoiou a candidatura presidencial do PT na esperança de que a “classe trabalhadora” experimentasse o governo de Lula — um “reformista” ou um “traidor”, a depender da versão — e, libertando-se de suas ilusões, ouvisse o chamado da Revolução (assim, com maiúscula). Hoje, ainda à beira da mesa, espera que a denúncia do veto a Lula finalmente desperte as massas de sua irritante letargia, propiciando o “assalto ao Céu”.

A terceira é a tese lulopetista. Na sua nunca explicitada inteireza, ela diz que a eleição terá sido legítima se Haddad vencer, mas terá sido ilegítima se Haddad perder. O alarido do protesto contra a “ilegitimidade” da eleição sem Lula, tão audível na etapa atual, cessará quando Haddad assumir o bastão, para só retornar na hipótese da derrota. A suspensão do juízo sobre a legitimidade até a proclamação dos resultados viola as regras elementares da lógica, mas atende a um imperativo partidário estratégico: na vitória, Haddad será o incontestável presidente do Brasil; na derrota, o eleito não será mais que um títere da “elite golpista”.

A história funciona mais ou menos assim. Em caso de vitória, o povo terá “corrigido” o desvio iniciado com o impeachment, derrotando o “golpe” e salvando a democracia. Já em caso de derrota, o desejo do povo de recolocar Lula no Planalto terá sido frustrado pela artimanha golpista do veto à candidatura. Restará, então, a via da resistência, convocada por meio da denúncia da ilegitimidade do presidente eleito.

A tese convencional é legalista ao extremo: identifica a democracia às normas legais, negando-se a encarar o problema político da limitação da soberania dos eleitores posto pela Ficha Lima.

A tese revolucionária é finalista: identifica a democracia (“burguesa”, evidentemente) como o inimigo histórico e interpreta o veto a Lula como faísca providencial capaz de acender a grande fogueira da purificação. A tese lulopetista é, além de oportunista, autoritária: identifica a democracia ao sucesso eleitoral do Partido (assim, com maiúscula), exprimindo uma rejeição visceral ao princípio do pluralismo.

Pensamento do Dia


May-Day

Um canal de tv a cabo exibe um programa com o título acima. Na fraseologia aeronáutica, é o vocábulo que nenhum piloto jamais imagina ter de proferi-la.. Tampouco os passageiros que ele carrega atrás gostariam de sabê-la dita da cabine de comando para um controlador de voo. Significa que o piloto já fez tudo o que podia ser feito e o desastre é iminente. A série de documentários é destinada, aparentemente, aos aficionados da aviação ou a quem aprecia assistir ao perigo que os semelhantes correm na vida, pois sabemos que viver é perigoso, em terra, no mar e no ar. Mas só na aparência os filmes exibidos visam apenas a estes dois públicos-alvo. Eles são pedagógicos para todos os fins, não somente para a aviação. Especialmente porque mostram que um desastre de avião é um acontecimento infausto como os demais acontecimentos infaustos na vida. Sobretudo porque não é causado por um único motivo, a pane no motor, o flap que não foi estendido na graduação exigida, o excesso de neve acumulado sobre as asas, um inesperado vento de cauda no momento do pouso, uma distração do comandante e assim por diante. O avião cai por mais de um problema, às vezes pequenos detalhes somados, de que não se deram conta o piloto, o pessoal de terra, o fabricante. Muitas vezes todos juntos não atinaram para os equívocos ou os consideraram de pequena monta, sem risco.

A facada em Jair Bolsonaro é um desses acontecimentos infaustos ao qual os especialistas que produzem May-Day dedicariam uma dissecação detalhada para explicar por que o mineiro tomado de ódio fez o que fez. A facada é o derradeiro ato a lastimar no desastre ocorrido em Juiz de Fora. Não basta, há que lastimar mais. Uma série de detalhes ou de equívocos escancarados sobre os quais nós todos, o pessoal de terra, o fabricante e o piloto não se deram conta ou minimizaram seus efeitos deletérios para a consumação do desastre. É muito fácil culpar o piloto, o erro humano explicaria o acidente, mostra a série de documentários da tv. E muitos o fazem agora, depois da facada. É uma simplificação de investigadores desejosos de ter um culpado imediato pelo desastre. Combinemos que foi erro de um piloto soberbo, falacioso de seus inexistentes dotes técnicos, inapto para o comando.


É mais uma simplificação dos investigadores apressados que procedem à dissecação dos equívocos a que o Brasil assiste há anos. Conhecemos as suas identidades e CPFs ideológicos, de amplo espectro. Lastimam a facada, mas vão escrever no relatório que a causa foi falha do piloto.

Erro humano foi, de todos nós. Desde o famigerado Mensalão assistimos ao perigoso dividir da nação em duas parcialidades. Divisão fomentada pelas próprias instituições nacionais: Universidade, Mídia, Legislativo, Executivo, Judiciário, órgãos de classe etc. Até o Bar, grande instituição da sociedade brasileira moderna, fomenta a divisão. E chegou no setor mais sensível: a Família. Uma parcialidade é a que não enche o tanque de combustível o quanto deveria; outra, a que finge não avistar no radar meteorológico a tempestade que pode produzir o vento de través que vai obrigar o avião a voar mais tempo e acabar caindo de pane seca. Paremos por aqui a linguagem metafórica. O que precisa ser dito é uma velha platitude: as sociedades odientas não prosperam, a História está aí para nos lembrar.

O Brasil não pode proferir a palavra terrível aos aviadores: may-day.

Pedro Rogério Moreira

Era de tragédia

Nossa era é essencialmente trágica, por isso nos recusamos a aceitá‑la tragicamente. O cataclismo aconteceu, estamos entre ruínas, começamos a construir novos pequenos habitats, para ter novas pequenas esperanças.

É um trabalho bem difícil: agora não existe nenhuma estrada tranquila para o futuro; mas damos a volta, ou passamos por cima dos obstáculos. Temos de viver, apesar dos muitos céus que desabaram
D. H. Lawrence, O amante de lady Chatterley

Passamos um limite perigosíssimo com a tentativa de matar Bolsonaro

A campanha eleitoral de 2018 ultrapassou a fronteira perigosa de ver um atentado a um candidato à presidência da República. A cena de um homem atingindo o capitão da reserva Jair Bolsonaro com uma faca materializou o extremo da polarização belicosa que o Brasil vive há pelo menos quatro anos. Bolsonaro correu risco de morrer. Foi salvo pela competência da equipe médica do hospital de Juiz de Fora. Adélio de Oliveira tentou assassiná-lo e as motivações para este ato miserável são confusas. Isso não muda uma realidade que já está embaixo do nosso nariz há alguns anos. Faz tempo que o país vem flertando com essa violência, mas até agora chegávamos à beira do abismo. Na véspera de feriado de independência, esse limite foi transposto, e se não houver uma mobilização urgente dos demais presidenciáveis e de todos os que têm voz na sociedade cairemos ainda mais na escala da dignidade humana.


Não faltaram os alertas. No dia 8 de março de 2016, o ministro Marco Aurélio de Mello temia o antagonismo das ruas quando os protestos pelo impeachment estavam no ápice, e as manifestações pró-PT ganharam força, depois da condução coercitiva do ex-presidente Lula no dia 4 daquele mês. “Receio as agressões físicas. Já pensou surgir um cadáver? A história revela que quando um cadáver surge a coisa degringola”, afirmou Mello. Degringolou, e o cadáver é o esforço para civilizar o Brasil.

Já desde aquele episódio a tormenta estava em formação, e traria novas cenas degradantes ao cenário político, como foram os tiros na caravana do ex-presidente Lula em março deste ano, no Paraná. Os disparos atingiram a lataria de dois ônibus que seguiam em carreata que acompanhava o ex-presidente.

O Fla X Flu vergonhoso, no entanto, já passou por cenas bizarras como a do ex-vereador Maninho do PT cedendo à provocação de um manifestante, Carlos Alberto Bettoni, que xingava o senador Lindbergh Farias na porta do Instituto Lula, em São Paulo, cinco meses atrás. Bettoni foi empurrado por Maninho, e bateu a cabeça num caminhão que passava ali. Teve traumatismo craniano, e precisou ser internado. Felizmente, sobreviveu. Muito antes, no final de 2015, o cantor Chico Buarque foi xingado aos gritos, no Rio, no final de 2015, por anti-petistas. Teve também o ator José de Abreu, petista declarado, cuspindo num casal que o xingava num restaurante também no Rio. E petistas com mensagens intimidadoras contra jornalistas quando o ex-presidente ficou no sindicato dos metalúrgicos do ABC antes de se entregar em abril deste ano.

O ataque a Bolsonaro inaugura um novo político muito mais perigoso. Afeta (ou deveria afetar) a já baixa auto-estima do brasileiro, numa semana em que perdemos completamente o chão com o incêndio ao Museu Nacional do Rio. O acervo de dois séculos perdido no fogo revelou o desprezo que temos como sociedade pela nossa memória. A tentativa de assassinar um candidato mostra que também desprezamos a crescente onda de ódio que cegou o Brasil a ponto de uma pessoa se sentir autorizada a tentar assassinar um homem público na frente de uma multidão. Guarda alguma semelhança com o crime contra a vereadora Marielle Franco, muito embora esta última venha ainda mais carregada de dor e impotência. Ela perdeu a vida pelas mãos de um assassino que se esconde até hoje e as respostas não são dadas à altura da gravidade daquele crime.

É urgente a necessidade de estancar essa sangria, traçar uma linha divisória que nos tire dessa espiral deprimente. E isso não será possível com mais mensagens de ódio que fomentem o revide a essa tentativa de assassinato. Todos somos o anjo e o demônio ao mesmo tempo, e é preciso decidir qual dos dois será fortalecido. Se vamos alimentar a pacificação e a empatia por um país mais sadio, ou entrar na onda de justificar o injustificável segundo a cor política.

O Brasil está numa delicada corda bamba e a facada desequilibra ainda mais o país. A tentativa de matar Bolsonaro vai alterar o rumo da campanha de todos os candidatos, que precisarão rever suas estratégias, principalmente os que tinham a comunicação calcada nos ataques à agressividade do que hoje lidera as pesquisas sem Lula na disputa. O impacto das imagens da facada, e a confirmação da gravidade do atentado, sensibiliza a população. Se por um lado cria-se empatia com o candidato, os sentidos ficam mais aguçados para as mensagens reais e oportunistas. Os próprios aliados do capitão da reserva atingido terão de ponderar muito bem suas palavras e ações neste momento de atenção plena para Bolsonaro. A primeira, e fria leitura, é que o acidente o beneficia na corrida eleitoral. Mas, para que o candidato continue competitivo na disputa, será preciso ponderar bem o eixo que se vai adotar. Ainda que a exposição deste momento o favoreça, as provocações que o candidato protagoniza não vão desaparecer da mente de quem já o rejeitava.

Futuro do país passa pela cadeia e pelo hospital

Mais do que em qualquer outra eleição, a campanha de 2018 colocou o Brasil numa encruzilhada. Um pedaço do eleitorado trafega pelo caminho que leva à cadeia. Outro naco de eleitores prefere a trilha que conduz ao hospital. Ao fundo, ouve-se o barulho provocado por meia dúzia de candidatos que se oferecem como alternativas ao poste fabricado atrás das grades e à vítima da facada, recolhida à UTI.


Consolidou-se um deslocamento geográfico da campanha presidencial. Preso, o ficha-suja inelegível transformou sua cela especial num comitê eleitoral de onde articula sua substituição na cabeça da chapa. Esfaqueado, o rival do polo oposto transforma seu drama clínico num grande ato de campanha, postando desde a UTI vídeos, fotos e mensagens nas redes sociais.

A um mês do dia da eleição, os dois protagonistas da disputa, Lula e Bolsonaro, guerreiam em trincheiras extremas: uma cela e uma UTI. As principais armas do combate são o veneno ideológico e a mistificação emocional. Num cenário assim, marcado por posições extremas, o extremismo que mais preocupa é o da agenda extremamente vazia. O maior perigo para o eleitor não é o risco da falta de sabedoria na escolha. O risco mais latente é o da falta de opção.

Imagem do Dia

Veneza, Martin Rico y Ortega 

A democracia no chão

A democracia no Brasil, se quisermos dizer a verdade em voz alta e sem perder tempo com muito palavrório, está valendo cada vez menos hoje em dia. Esqueça essa conversa de que “as instituições estão funcionando”, ou que a democracia brasileira já “está adulta”, ou que “não há mais lugar para aventuras autoritárias” no mundo do século XXI. As instituições não estão funcionando coisa nenhuma. A democracia no Brasil pode estar adulta, mas sua idade mental no momento é de 3 anos. Quanto à falta de espaço para regimes não democráticos no mundo de hoje — bom, aí já dá vontade de rir. Se há alguma coisa que existe de sobra neste planeta, nos dias que correm, é terreno para montar qualquer espécie de ditadura — ditadura sob medida, até, em vários modelos e estilos, de classe econômica a première platinum plus. E o que sobrou de democracia no Brasil — quanto tempo ainda dura até ir para o espaço? É difícil dizer. Pode demorar um tanto mais, um tanto menos. Para a maioria dos brasileiros, tanto faz — estão pouco ligando para o assunto, e quando ligam é para torcer contra. Mas parece certo que os demais, os que se dizem democratas ou ganham a vida nos cargos, funções e atividades que a democracia fornece, estão contribuindo o máximo que podem para que tudo vá o mais breve possível para o raio que o parta.

É claro que estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, e isso precisa de uma ordem democrática para existir. Você pode tomar um ônibus de São Paulo a Goiânia, por exemplo, sem pedir licença a ninguém. Pode falar mal do governo quanto quiser. Pode ir à igreja da sua preferência, ou não ir. A polícia não pode prender uma pessoa sem mandado judicial e é obrigada a fazer um boletim de ocorrência se lhe roubarem alguma coisa. Para tirar um cidadão da casa onde mora, é preciso uma sentença de despejo. Você tem o direito (e a obrigação) de votar, de chamar a ambulância do SUS e de assistir às sessões da Câmara de Deputados, no espaço reservado ao público. Você é dono da Petrobras, do Banco do Brasil e da empresa criada em 2012 para construir o trem-bala, sem contar os canais de transposição das águas do São Francisco, a TV Brasil e a Esplanada dos Ministérios. Mas não são essas coisas que estão faltando na democracia brasileira. O que lhe falta, e põe sua existência cada vez mais em risco, é a lógica comum. A democracia neste país, hoje, é uma geringonça sem pé nem cabeça — e coisas sem pé nem cabeça raramente têm um grande futuro pela frente.


Honestamente: como é possível o país ter democracia e, ao mesmo tempo, ter o ministro Edson Fachin, um dos onze monarcas que hoje se sentam no Supremo Tribunal Federal? Ou se tem uma coisa ou a outra. Todo mundo sabe que não pode existir democracia em lugar nenhum sem que haja plena segurança jurídica — ou seja, sem a expectativa de que a lei será aplicada conforme está escrita e dentro de um entendimento racional, todas as vezes que for necessário e de maneira igual para todos. Mas o ministro Fachin é o que se poderia chamar de insegurança jurídica ambulante — é o contrário, justamente, do que um regime democrático precisa. Onde está a lógica? Dias atrás, num voto no tribunal eleitoral, Fachin passou duas horas inteiras torturando o português, a razão e a lei brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Sim, dizia ele: não há nenhuma dúvida legal de que o ex-presidente Lula é inelegível. Mas uma força superior, segundo nos disse, anula a lei nacional. Que força seria essa? Deus? Não: dois sujeitos que fazem parte de um comitê de dezoito consultores da ONU em direitos humanos. Eles não têm nenhum poder funcional — não são a Corte Internacional de Haia, a Agência de Energia Atômica de Viena ou a Assembleia-Geral. Não têm existência jurídica. Não julgam nada nem decidem nada; só dão pareceres, e acharam que Lula tem o direito de se candidatar à Presidência.



Mas só dois, entre dezoito, resolveram isso? Só dois. Ouviram os dois lados — os advogados de Lula e o Ministério Público brasileiro? Não. Só ouviram o lado de Lula. O que decidiram representa uma posição oficial? Não; isso eles só vão dar no ano que vem. Em suma: é uma insânia, e por isso mesmo o tribunal eleitoral negou por 6 a 1 o pedido de Lula. O espanto é que tenha havido esse 1 a favor — o voto de Fachin. Nada do que ele disse fez o mais remoto sentido. E se os dois consultores tivessem decidido que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a monarquia? Fachin acha que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena de ficar na ilegalidade internacional. Se um ministro da nossa Suprema Corte defende um negócio desses, não é possível ter a menor confiança em nada do que o homem venha a decidir. Argumentou-se, é claro, que ele não é sempre assim; ao contrário, tem votado de maneira sensata. Mas aí é que está o problema: ele pode surtar a qualquer momento, sem avisar ninguém, e dar outro voto igual a esse — e não há absolutamente nada que se possa fazer a respeito. Insegurança jurídica é justamente isso. Outra coisa: Fachin não teria direito à sua opinião pessoal? Não desse jeito, da mesma maneira que você não pode dizer: “Na minha opinião a Terra é quadrada”. Isso não é opinião nem democracia.

É esquisita, nessa e em outras histórias similares, a ligeireza com que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os ministros se acharam na obrigação de cumprimentar Fachin pelo seu “brilhante voto”; ele, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que massacraram cada palavra que disse. Todos acharam igualmente “brilhante” a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa armou com essa comissão da ONU. Brilhante por quê, se é um completo disparate? Tudo isso causa a pior impressão. Nossos mais altos tribunais de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, em que a solidariedade entre os sócios se pratica através da puxação automática e perene de saco. Asinus asinum fricat, poderiam dizer uns aos outros — não são eles que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público não entender nada? Pois então; eis aí um pouco de latim para verem se está ao seu gosto. O STF, por sinal, é o retrato vivo de uma democracia na UTI. Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência individual de um funcionário (salário de até 12 000 reais por mês, mais horas extras, chamado “capinha”) que lhe puxa a poltrona na hora de sentar à mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a rainha Elizabeth II tem um serviço assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do mundo. Os ministros acham isso normal, como acham normais seu recente aumento de 16% nos salários diante de uma inflação anual de 4%, seus privilégios materiais, seus dois meses de férias por ano, sua aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora. Isso é simplesmente desigualdade — e como acreditar numa democracia na qual a maior corte de Justiça vive abertamente com direitos individuais de seus ministros superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está assim, imagine-se o resto.

Isso não é democracia — é um arranjo provisório, que só fica de pé porque ninguém ainda se organizou para jogar tudo no chão.

A violência política atual teve alguns paraninfos que precisam ser conhecidos

No ano passado (29 de maio de 2017), parlamentares, lideranças petistas e professores de Direito se reuniram no Seminário “Estado de Direito ou Estado de Exceção”, evento promovido pela Fundação Perseu Abramo, órgão de formação e mantido pelo PT – Partido dos Trabalhadores, provavelmente com dinheiro do fundo partidário, isto é, dinheiro do povo brasileiro.

O “Seminário” foi filmado e suas imagens (vídeos) – que até hoje podem ser vistos na internet (é só acessar o Youtube) – mostram uma platéia composta por militantes partidários e um comando no qual, sob a direção da deputada Benedita da Silva, foram discursando, entre outros, os senadores Roberto Requião, Gleisi Hoffmann, o procurador Claudio Fonteles, o governador Flávio Dino e o deputado Carlos Zaratini.

As palavras do senador Roberto Requião e da deputada Benedita da Silva, que a seguir grafarei, não parecem provas de tolerância, urbanidade e amor ao próximo.

O senador Roberto Requião, valentemente, bradou: “… o que, então, estamos esperando para cruzar o rio, para jogar a cartada decisiva de nossas vidas? Senhores e senhoras, universitários aqui presentes. Convençam-se. Não há mais espaço para a conversa e para os bons modos.”

A plateia foi ao delírio. Aplaudiu ruidosamente e começou a gritar à plenos pulmões: “Se muda, se muda, imperialista! A América Latina será toda socialista!”.

A nobre deputada Benedita da Silva vociferou: “Quem sabe faz a hora e faz a luta. A gente sabe disso. E na minha Bíblia está escrito que sem derramamento de sangue não haverá redenção. Com a luta e vamos à luta, com qualquer que sejam as nossas armas!”

O seleto público foi ao orgasmo múltiplo psicológico e a aplaudiu de pé. Essa reunião não ocorreu em nenhum hospício e os evangelizadores indutores eram componentes do Congresso Nacional. Agravando a situação, a iniciativa do evento, segundo o portal PT na Câmara, foi de sua bancada de deputados federais, sendo a organização de responsabilidade de seu órgão de formação política.

Além disso, também podemos encontrar na internet (Youtube) vários discursos do notório “dono do PT”, atualmente residente em Curitiba-PR, incitando populares – notadamente de baixa escolaridade e reduzida formação intelectual – a comportamento agressivo , na base do “nós contra eles”.

Com todos esses fatos antecedentes não é difícil entender a agressão com uma faca sofrida pelo candidato Jair Bolsonaro em Juiz de Fora, por criminoso que, em passado recente, como noticiado pela mídia, era militante do PSOL, partido político com as mesmas origens do Partido dos Trabalhadores, sendo, por muitos brasileiros, considerado um singelo “puxadinho do PT”.

A violência política atual teve paraninfos.

Passado roubado



A velhice não é roubarem-nos o futuro, é terem-nos roubado o passado
António Lobo Antunes

Vem, meteoro!

Um meme se tornou famoso, há alguns anos, nas redes sociais.

“Vem, meteoro!” (ou alguma diversificação dessa ideia) ressurge sempre que é noticiado um desses absurdos que só acontecem no Brasil.

Uma referência ao fato de que — já que um meteoro devastou o planeta na época dos dinossauros — eventualmente um outro deve estar a caminho para selar de vez a nossa sorte.

O meme clama para que um meteoro venha logo de uma vez e nos poupe dessa maldição de escândalos, de incompetência, de corrupção e de ignorância.


A frase mostra o velho bom humor cáustico nacional.

Como fazemos há décadas, rimos para disfarçar nossa própria habilidade de construir um País anormal.

Ou é normal um ex-presidente preso ter 39% das intenções de voto?

Ou é aceitável termos mais de 15 milhões de desempregados?

Ou é coisa pouca que nos últimos dois anos o governo esteja estagnado pela sua própria inépcia política?

Vem agora, meteoro!

Vem com força!

O que entristece ainda mais é que a popularização dessa frase, principalmente no Twitter e no Facebook, sugere a absoluta descrença na possibilidade de mudança.

Mas nada, nem o mais inventivo roteirista, poderia conceber o que estava por vir.

Nem os mais descrentes com o País poderiam imaginar os requintes trágicos do incêndio que destruiu o Museu Nacional.

Passada quase uma semana, ainda há quem partidarize o desastre.

Gente que culpa o BNDES da era PT por ter investido US$ 6 bilhões em obras em países amigos, enquanto trancava míseros 20 milhões que poderiam ter reformado e salvado o Museu.

Gente que culpa ministros, presidentes, governadores, como se a destruição do maior e mais importante Museu de História Natural da América Latina fosse mais uma de suas cotidianas incompetências.

Estamos tão acostumados com o dia a dia surreal que ocupa a mídia que, por mais que a imprensa tenha dado destaque (aqui e mundo afora), não conseguimos ter a dimensão de como o incêndio do Museu Nacional não tem precedentes.

Não pode ser comparado a nenhuma de nossas mazelas cotidianas.

Erra quem coloca essa tragédia apenas na conta da incompetência de partidos e políticos.

Simplifica quem compara os desmandos e incongruências a que assistimos todos os dias com o fim que levou o Museu Nacional.

Porque o incêndio do Museu não foi um escandolizinho a mais.

Não se compara a um presidentinho corrupto.

Nossos escândalos diários, o tempo e a História hão de dar a devida irrelevância.

Já o Museu era o que tínhamos escolhido eternizar, ao longo de séculos.

Evidentemente que o incêndio suja as mãos de políticos e burocratas.

Esses canalhas que estão demolindo nosso presente e afogando nosso futuro acabaram de incinerar boa parte de nosso passado.

Podem assinar orgulhosos a coautoria dessa obra macabra.

Mas dessa obra somos todos autores.

O nosso descaso atávico com a Cultura deu nisso.

Descaso de raramente frequentar museus.

De não votar pensando em Educação.

Vem de uma vez, meteoro!

E o Museu Nacional, que tantos agora dizem que “iam com os pais”, mas que nunca mais voltaram, em sua imensa sabedoria nos deixou um recado.

E usando a mesma ironia que nos é peculiar.

Assim que as operações de rescaldo começaram, um dos vinte milhões de itens que compunham o acervo do Museu estava ali, no hall de entrada, intacto.

Bendegó, o maior meteorito já encontrado em solo nacional estava impávido, cercado pelo que sobrou do Museu, ostentando suas mais de cinco toneladas.

Inevitável pensar no Museu rindo de todos nós.

Vocês pediram um meteoro.
Mentor Neto