É claro que estão em vigor os direitos e liberdades mais comuns, e isso precisa de uma ordem democrática para existir. Você pode tomar um ônibus de São Paulo a Goiânia, por exemplo, sem pedir licença a ninguém. Pode falar mal do governo quanto quiser. Pode ir à igreja da sua preferência, ou não ir. A polícia não pode prender uma pessoa sem mandado judicial e é obrigada a fazer um boletim de ocorrência se lhe roubarem alguma coisa. Para tirar um cidadão da casa onde mora, é preciso uma sentença de despejo. Você tem o direito (e a obrigação) de votar, de chamar a ambulância do SUS e de assistir às sessões da Câmara de Deputados, no espaço reservado ao público. Você é dono da Petrobras, do Banco do Brasil e da empresa criada em 2012 para construir o trem-bala, sem contar os canais de transposição das águas do São Francisco, a TV Brasil e a Esplanada dos Ministérios. Mas não são essas coisas que estão faltando na democracia brasileira. O que lhe falta, e põe sua existência cada vez mais em risco, é a lógica comum. A democracia neste país, hoje, é uma geringonça sem pé nem cabeça — e coisas sem pé nem cabeça raramente têm um grande futuro pela frente.
Honestamente: como é possível o país ter democracia e, ao mesmo tempo, ter o ministro Edson Fachin, um dos onze monarcas que hoje se sentam no Supremo Tribunal Federal? Ou se tem uma coisa ou a outra. Todo mundo sabe que não pode existir democracia em lugar nenhum sem que haja plena segurança jurídica — ou seja, sem a expectativa de que a lei será aplicada conforme está escrita e dentro de um entendimento racional, todas as vezes que for necessário e de maneira igual para todos. Mas o ministro Fachin é o que se poderia chamar de insegurança jurídica ambulante — é o contrário, justamente, do que um regime democrático precisa. Onde está a lógica? Dias atrás, num voto no tribunal eleitoral, Fachin passou duas horas inteiras torturando o português, a razão e a lei brasileira com um alarmante teorema em favor da insanidade. Sim, dizia ele: não há nenhuma dúvida legal de que o ex-presidente Lula é inelegível. Mas uma força superior, segundo nos disse, anula a lei nacional. Que força seria essa? Deus? Não: dois sujeitos que fazem parte de um comitê de dezoito consultores da ONU em direitos humanos. Eles não têm nenhum poder funcional — não são a Corte Internacional de Haia, a Agência de Energia Atômica de Viena ou a Assembleia-Geral. Não têm existência jurídica. Não julgam nada nem decidem nada; só dão pareceres, e acharam que Lula tem o direito de se candidatar à Presidência.
Mas só dois, entre dezoito, resolveram isso? Só dois. Ouviram os dois lados — os advogados de Lula e o Ministério Público brasileiro? Não. Só ouviram o lado de Lula. O que decidiram representa uma posição oficial? Não; isso eles só vão dar no ano que vem. Em suma: é uma insânia, e por isso mesmo o tribunal eleitoral negou por 6 a 1 o pedido de Lula. O espanto é que tenha havido esse 1 a favor — o voto de Fachin. Nada do que ele disse fez o mais remoto sentido. E se os dois consultores tivessem decidido que o Brasil deveria invadir o Peru, por exemplo, ou restaurar a monarquia? Fachin acha que a gente seria obrigado a obedecer, sob pena de ficar na ilegalidade internacional. Se um ministro da nossa Suprema Corte defende um negócio desses, não é possível ter a menor confiança em nada do que o homem venha a decidir. Argumentou-se, é claro, que ele não é sempre assim; ao contrário, tem votado de maneira sensata. Mas aí é que está o problema: ele pode surtar a qualquer momento, sem avisar ninguém, e dar outro voto igual a esse — e não há absolutamente nada que se possa fazer a respeito. Insegurança jurídica é justamente isso. Outra coisa: Fachin não teria direito à sua opinião pessoal? Não desse jeito, da mesma maneira que você não pode dizer: “Na minha opinião a Terra é quadrada”. Isso não é opinião nem democracia.
É esquisita, nessa e em outras histórias similares, a ligeireza com que se aceita o espetáculo do circo pegando fogo. Os ministros se acharam na obrigação de cumprimentar Fachin pelo seu “brilhante voto”; ele, por sua vez, achou “brilhantes” os votos dos seis colegas que massacraram cada palavra que disse. Todos acharam igualmente “brilhante” a chicana de terceira categoria, amarrada com barbante, que a defesa armou com essa comissão da ONU. Brilhante por quê, se é um completo disparate? Tudo isso causa a pior impressão. Nossos mais altos tribunais de Justiça parecem hoje montepios de ajuda mútua, em que a solidariedade entre os sócios se pratica através da puxação automática e perene de saco. Asinus asinum fricat, poderiam dizer uns aos outros — não são eles que gostam tanto de socar latinório em tudo o que falam, para o público não entender nada? Pois então; eis aí um pouco de latim para verem se está ao seu gosto. O STF, por sinal, é o retrato vivo de uma democracia na UTI. Cada ministro, entre outros espantos, conta com a assistência individual de um funcionário (salário de até 12 000 reais por mês, mais horas extras, chamado “capinha”) que lhe puxa a poltrona na hora de sentar à mesa. Pode uma coisa dessas? Nem a rainha Elizabeth II tem um serviço assim — possivelmente, não existe nada parecido em nenhum outro lugar do mundo. Os ministros acham isso normal, como acham normais seu recente aumento de 16% nos salários diante de uma inflação anual de 4%, seus privilégios materiais, seus dois meses de férias por ano, sua aposentadoria com vencimentos integrais e por aí afora. Isso é simplesmente desigualdade — e como acreditar numa democracia na qual a maior corte de Justiça vive abertamente com direitos individuais de seus ministros superiores aos dos cidadãos que julgam? Pior: se o Judiciário está assim, imagine-se o resto.
Isso não é democracia — é um arranjo provisório, que só fica de pé porque ninguém ainda se organizou para jogar tudo no chão.
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