quinta-feira, 22 de abril de 2021

Não (des)matar

O notável pensador libertário, Henry David Thoreau, inspiração política de Gandhi, inicia "Caminhando", um louvor à Natureza, com palavras e experiências de vida, da seguinte maneira: “Desejo me pronunciar a favor da Natureza, a favor da mais absoluta liberdade e do estado mais absolutamente selvagem, em contraste com uma liberdade e uma cultura meramente civis – quero defender o homem como um habitante, uma parte e uma parcela da natureza e não como membro da sociedade”.

Quase dois séculos depois, o Tesouro Britânico encomendou o estudo “a Economia da Biodiversidade” à equipe do respeitado economista Partha Dasgupta, professor emérito da Universidade de Cambridge que, ao ser entrevistado pelo jornal Valor Econômico (ed. 19 de abril de 2021) respondeu à primeira pergunta: “Qual é a mensagem principal do relatório?” com a mais aparente das obviedades: “Diria que a principal é que a natureza, e aqui natureza é sinônimo de biosfera, é nossa casa.”

Simples, entender? Não. A sociedade industrial foi construída sobre duas falácias: o crescimento econômico é um bem a qualquer preço; a natureza é uma cornucópia de recursos capazes de suprir as necessidades e a cobiça humanas. Inegável que a economia gerou uma afluência nunca vista na história. No entanto deixou dois graves passivos: a devastação ambiental e uma profunda desigualdade social.

O mencionado estudo aponta estimativas que o produto per capita dobrou entre 1992 e 2014 e o capital natural por pessoa diminuiu cerca de 40%. Ou seja, a tragédia botou a cara de fora: a natureza revelou-se ameaçadoramente escassa.


A partir da Conferência sobre o Ambiente Humano em 1972 (Estocolmo), o tema tornou-se emblematicamente global e a construção de novo paradigma civilizatório veio a ser o desafio revolucionário do “pensar global e agir local”. Foi incorporado à agenda internacional sob múltiplas dimensões e variados matizes ideológicos.

Diante do desafio do “desenvolvimento sustentável”, o Brasil com limites, porém com uma larga avenida de possibilidades, construiu, sob a liderança do saudoso Paulo Nogueira Neto, o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Lei 6938/31/08/1981, o SISNAMA), avançado arcabouço legal e mecanismos para gestão ambiental com admirável visão do federalismo ambiental à frente do nosso desfigurado federalismo político.

Cabia transformar a visão edênica da nossa exuberante natureza em nova fronteira econômica frente a duas dificuldades: uma externa que opunha nações pobres a nações ricas com diferentes graus de dificuldades em se adaptar ao conceito de sustentabilidade; uma interna que antepunha o economicismo estreito e um ecologismo intransigente.

O Brasil, nas últimas cinco décadas, avançou muito em todas as frentes do desafio ambiental. O passivo é grande, mas as potencialidades são imensas. Seria repetitivo enumerá-las, mas há dois dados significativos: os avanços, maiores ou menores, porém contínuos nas sucessivas gestões; e uma convergência política entres os atuais ex-Ministros em torno da causa ambiental, independente de visão ideológica ou recorte partidário. Todos têm adotados posições consensuais e públicas diante da desastrosa gestão ambiental do atual governo.

Em síntese, o Governo peca por ideias, palavras e obras. Ideias pela falta. Enquanto a política e o gestor ambiental não entenderem a primeira frase do relatório de Dasgupta “que a Natureza é nossa casa”, simbiose e comunhão afetivas e efetivas do Homem com os recursos naturais, nada será bem cuidado; por sua vez, a palavra “boiada” exprime a falta completa da noção do múnus púbico de Ministro de Estado; por fim, a obra é a tragédia do desmatamento e das “queimadas”.

De potência ambiental que vale pelo estoque, abundância e valerá pelos serviços ecológicos a serem prestados à Humanidade, para vilão internacional, basta um fósforo aceso. No dia 22 do corrente mês, dia da Terra, será promovida pelo governo do EUA a Cúpula de Líderes Sobre Clima.

No encontro, o Governo Brasileiro terá a oportunidade para reiterar compromissos com resultados de planos efetivos para Amazônia e se juntar ao esforço mundial para conter o cenário de emergência climática.

A expectativa do povo brasileiro é que o Presidente obedeça a duas simples prescrições: honrar a palavra com a prática e, considerando que as árvores são seres vivos, observar, com fervor religioso, o Sexto Mandamento NÃO (DES) MATAR.

Carta aberta aos participantes da Cúpula de Líderes sobre o Clima

Somos uma organização da sociedade brasileira comprometida com a defesa da democracia, das liberdades fundamentais e dos direitos humanos, entre os quais o direito a um meio ambiente limpo e a um clima estável.

Estamos aqui para afirmar que nosso país é parte importante não só dos problemas que ameaçam o futuro do planeta e de seus habitantes, mas também das melhores soluções para enfrentá-los. O Brasil pode e deve assumir compromissos claros, firmes e fortes no espírito do Acordo de Paris. Pode se
comprometer com Contribuições Nacionalmente Determinadas mais ambiciosas e à altura das necessidades presentes.

Somos a favor de acordos internacionais que beneficiem o conjunto dos brasileiros, apresentem metas e métricas claras, cujas tratativas possam ser acompanhadas pela sociedade, submetidas ao crivo do Congresso Nacional e, quando necessário, ao poder Judiciário.

Considerando que nosso país tem um vasto território, grandes metrópoles e 9.200 km de costa, sabemos que a proteção de nossa floresta amazônica não esgota os desafios de uma agenda de sustentabilidade. Mas sabemos, também, que essa é, hoje, a questão que mais preocupa a opinião pública no Brasil e no exterior, incluindo grandes líderes mundiais. Por essa razão, este documento aborda exclusivamente esse tema.

O Brasil, assim como outros países amazônicos, tem condições para proteger a floresta amazônica, seu estoque de carbono e sua imensa biodiversidade, com soberania – sem desconhecer a profunda interdependência entre nações –, com base na ciência e com apoio de parcerias internacionais. Para tanto, conta com uma legislação avançada, experiência acumulada em políticas ambientais e amparo interno significativo dos povos da floresta, da sociedade civil organizada, da comunidade científica, de lideranças empresariais destacadas, dos meios de comunicação e da opinião pública.

Da Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92), realizada no Rio de Janeiro, até o Acordo de Paris, o Brasil se engajou na causa ambiental, participando da formação do regime internacional de mudanças climáticas e construindo internamente um arcabouço jurídico e
administrativo de monitoramento para enfrentar a devastação de nosso patrimônio florestal, causada por agentes legais e ilegais, públicos e privados.


Nos referimos a produtores rurais – grandes e pequenos – que expandem ilegalmente plantações e pastos, e a um conjunto de agentes criminosos, dedicados a invasões de terras indígenas e de unidades de conservação ambiental, à mineração ilegal, à venda ilegal de madeira, ao tráfico ilegal de espécies e de drogas.

O poder público pode ser incluído nesse rol, quando abre estradas sem planejamento, constrói barragens, usinas hidrelétricas e linhas de transmissão de energia que cortam irracionalmente a floresta.

Desde 1988, as iniciativas de redução do desmatamento caminharam entrelaçadas com a legislação que estabeleceu áreas de floresta protegidas. A Constituição Federal reconheceu o direito originário dos povos indígenas a seus territórios tradicionalmente ocupados – populações que são defensoras
importantes da floresta.

Os avanços vêm sendo revertidos sob o governo do Sr. Jair Bolsonaro, que, por palavras e atos, estimula os agentes da devastação. No plano da retórica, em mais de uma ocasião, ele e alguns de seus ministros colocaram em dúvida a realidade da mudança climática, ameaçaram com a retirada do país do Acordo de Paris, questionaram as evidências científicas, demonizaram ambientalistas e ativistas de direitos humanos, desdenharam das tradições culturais dos povos indígenas falando em “integrá-los à civilização” e confraternizaram publicamente com praticantes de diferentes ilícitos.

Em reunião da equipe de governo, em abril de 2020, o ministro do Meio Ambiente propôs que se aproveitasse o fato de as atenções estarem dirigidas à pandemia da Covid-19 para flexibilizar medidas de proteção ambiental. Em sua linguagem peculiar, sugeriu que o governo fosse “passando a boiada”, ou seja, mudando as normas infralegais que não demandam aprovação do Congresso Nacional.

No plano da ação, o governo vem enfraquecendo sistematicamente os órgãos de gestão ambiental. Revisou regulamentos, flexibilizou normas, revogou dispositivos legais, alterou a composição de órgãos públicos encarregados de monitoramento e aplicação de multas, substituiu chefias competentes por pessoas sem qualificação apropriada – quando não, por sócios da devastação–, perseguiu funcionários, reduziu o orçamento destinado ao meio ambiente. Em 2021, o ministério do Meio Ambiente terá o menor orçamento em duas décadas. O Fundo Amazônia, constituído com recursos dos governos da Alemanha e da Noruega, foi paralisado em 2019.

Entre os projetos de lei em tramitação no Congresso que o governo considera prioritários, quatro enfraquecem, de diferentes maneiras, a proteção ao meio ambiente, com graves consequências para a Amazônia e para o modo de vida das populações indígenas. As propostas afrouxam regras de licenciamento ambiental, concessão de florestas, regularização fundiária, mineração em terras indígenas e impactam até o Estatuto do Índio.

Em lugar de expandir e robustecer as capacidades estatais, o governo, diante das críticas reiteradas, faz promessas vãs e toma medidas ineficazes. Apresentou o Plano Nacional para o Controle do Desmatamento Ilegal e Recuperação da Vegetação Nativa, documento sem metas claras, prazos ou ações definidas, que nunca saiu do papel. Criou o programa Verde Brasil, mobilizando militares sem experiência no combate a crimes ambientais, arriscando suas vidas e desperdiçando recursos públicos já escassos.

Diante de pressões internacionais e da sociedade brasileira, o governo Bolsonaro vem mudando de discurso, mas não de política.

Os inimigos do meio ambiente e da Floresta Amazônica são muitos e difíceis de combater. Mas não são maioria. Porém, hoje eles têm, no governo federal, um aliado ativo. Isso precisa mudar, pelo bem do Brasil e do planeta.

Ao cobrar dos representantes do país nesta conferência compromissos claros, prazos definidos, metas precisas e métricas para aferir resultados, os participantes desta reunião ajudarão os brasileiros que querem a floresta de pé, os povos indígenas protegidos, as populações amazônicas assistidas e
um mundo mais sustentável.
José Carlos Dias, presidente da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns

Imagem do Brasil

 


Nome do desastre ambiental do Brasil é Bolsonaro, Salles é apenas o apelido

O maior erro que se pode cometer na área ambiental é atribuir a Ricardo Salles toda a responsabilidade pela ruína ambiental que produziu nos dois primeiros anos do atual governo as mais altas taxas de desmatamento na Amazônia Legal desde 2008. Salles é mero coadjuvante, um vaqueiro que passa os bois. Bolsonaro é o protagonista, o dono da boiada.

O Ministério do Meio Ambiente é um dos que receberam o selo de ideológico que transforma pedaços da Esplanada em puxadinhos do Planalto. Nessa pasta, o capitão esgrimiu basicamente as mesmas ideias que manejou durante quase três décadas vida parlamentar. Com uma diferença: Na Câmara, Bolsonaro discursava para as paredes. No Planalto, arruinou em dois anos a boa imagem internacional que o país levou 29 anos para construir.

Com altos e baixos, o Brasil vinha conquistando uma imagem de mocinho ambiental desde a Eco-92, a conferência mundial das Nações Unidas sobre meio ambiente que o Rio de Janeiro sediou. Sob Bolsonaro, tornou-se rapidamente um vilão planetário. Chegou à Cúpula do Clima convocada por Joe Biden nessa condição agindo com um método inusual.

HERANÇA MALDITA

É comum que presidentes da República sejam acusados pelos sucessores de deixar um legado amaldiçoado. Bolsonaro inovou. Em apenas 28 meses, produziu uma herança maldita para si mesmo. Agora, pressionado por uma conjuntura adversa que foi potencializada pela derrota de Donald Trump nos Estados Unidos, o capitão promove no setor ambiental o mesmo cavalo de pau retórico que executou na crise sanitária.

O problema é que, a exemplo do que sucede na pandemia, o novo discurso sobre Meio Ambiente tende a imunizar o governo Bolsonaro contra as críticas com a mesma taxa de eficácia da cloroquina no tratamento contra a covid-19. O que o mundo espera do governo brasileiro no momento é um bom lote de resultados práticos, não o plano caça-níquel redigido em cima do joelho para obter $ocorro internacional.

Há propostas que são tão inovadoras que só serão devidamente compreendidas daqui a um século. Não é o caso das teses de Bolsonaro para o Meio Ambiente. Estas só podem ser perfeitamente entendidas no século passado. Algumas foram camufladas sob terminologia moderna. Por exemplo: "Bioeconomia".

Para ambientalistas respeitados, a bioeconomia é a exploração responsável da biodiversidade amazônica para levar desenvolvimento econômico à região. Para Bolsonaro e seu preposto no Meio Ambiente, significa favorecer madeireiros e garimpeiros que trafegam à margem da lei. Tramita no Congresso projeto enviado por Bolsonaro para regulamentar a mineração e a pecuária em terras indígenas.

RETÓRICA DESTOA DA PRÁTICA 

Bolsonaro agora fala em intensificar operações de fiscalização e controle ambiental. Algo que não orna com a desmontagem que seu governo promoveu em órgãos como Ibama e ICMBio. Tampouco combina com a advocacia administrativa que Ricardo Salles realizou em benefício de madeireiros pilhados na maior apreensão de madeira ilegal da história. Está em desarmonia também com portaria editada sob Salles para submeter multas lavradas por fiscais do Ibama à censura dos chefes.

A prática ambiental do governo harmoniza-se perfeitamente com os compromissos assumidos com deputados e senadores da bancada ruralista. Bolsonaro recebeu-os para um café da manhã em julho de 2019. Fez a seguinte saudação: "Ao longo de 28 anos dentro da Câmara eu acompanhei e, mais do que isso, eu acredito que votei 100% com a bancada ruralista. Muitas vezes as questões nasciam ali como se fossem um parto de rinoceronte: era imprensa batendo em vocês, eram ONGS e eram também governos de outros países."

Bolsonaro afirmou aos comensais que o Brasil errou muito na área ambiental, pois "foi deixando acontecer" a criação de reservas indígenas e de unidades de conservação ambiental. Já naquela época, pronunciou uma frase que se revelaria uma variante precoce do célebre enunciado de Salles sobre a conveniência de aproveitar a pandemia para ir passando a boiada. Disse Bolsonaro no desjejum de 2019: "Nós temos que não fazer. Primeiramente, é desfazer o que foi feito para depois fazer." Muito já foi desfeito. Há muito por fazer.

O capitão informa ao mundo que precisa de $ocorro. Esclarece que um naco do dinheiro que espera receber será usado num programa de regularização fundiária (pode me chamar de legalização de terras griladas, inclusive em reservas indígenas).

ELOGIO À MATANÇA DE ÍNDIOS 

Vale a pena atrasar o relógio para ouvir um discurso que o deputado Jair Bolsonaro pronunciou na Câmara em novembro de 1995. O então presidente Fernando Collor acabara de formalizar a reserva indígena Ianomâmi. E o capitão: "...Com a indústria da demarcação das terras indígenas, assim como Quebec quase se separou do Canadá, num curto espaço de tempo, os Yanomamis poderão, com o auxilio dos Estados Unidos, vir a se separar do Brasil."

Dois anos e cinco meses depois, em abril de 1998, Bolsonaro discursou assim na Câmara: "A cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema em seu país. Se bem que não prego que façam a mesma coisa com o índio brasileiro."

Um personagem assim precisaria virar-se do avesso para que suas promessas de realizar um governo ambientalmente responsável fossem levadas a sério. Teria de nascer de novo para obter dinheiro estrangeiro para seus projetos.

Ricardo Salles, diz ser possível reduzir o desmatamento no Brasil em até 40% se os Estados Unidos e outras nações estrangeiras repassarem para o governo Bolsonaro US$ 1 bilhão. Em declaração feita à BBC, o ministro Norueguês do Meio Ambiente, Sveinung Rotevatn, foi ao ponto:

"A Noruega e outros países enfatizaram em conversas recentes com o Brasil que a comunidade internacional está preparada para aumentar o financiamento ao Brasil assim que o Brasil apresentar resultados na redução do desmatamento. Diminuir o desmatamento no curto prazo é uma questão de vontade política, não de falta de financiamento adiantado."

A Noruega era responsável por 90% das doações bilionárias que financiavam o Fundo Amazônia, gerido pelo BNDES. Bolsonaro e Salles implodiram o fundo. Enxergavam nele um ninho de ONGs. Afugentaram os doadores. Agora, passam o pires. 

Me dá um dinheiro aí

A Cúpula dos líderes sobre o Clima, com início nesta 5ª feira, marca a volta dos Estados Unidos à cabeceira da mesa, na sua tentativa de liderar o mundo pelo exemplo. Será também um marco na nova ordem política global em que as relações comerciais tendem a ser ditadas pela agenda ambiental, com o mundo marchando para uma economia de baixo carbono. O lugar do Brasil na mesa na qual Jair Bolsonaro se sentará não é o mais confortável. O presidente terá exatamente três minutos para convencer os outros 39 chefes de estado de que haverá uma mudança radical na sua política para o meio ambiente.

Uma leitura ingênua da sua carta ao presidente dos Estados Unidos pode nos induzir à crença de que, de fato, haverá uma mudança de rumo. O tom moderado da missiva destoa bastante do seu discurso na Assembleia da ONU de 2019, quando fez a defesa do modelo de ocupação da Amazônia pautado na exploração predatória de suas riquezas e na devastação da maior floresta tropical do mundo.

Como palavras os ventos levam e o papel aceita tudo, Joe Biden foi o primeiro a desconfiar que a conversão de Bolsonaro é só coisa para americano ver. Em vez de declaração genérica sobre acabar com o desmatamento até 2030, compromisso, diga-se de passagem, já assumido pelo Brasil em 2009 e em 2015, Bolsonaro é intimado a apresentar metas e um cronograma concreto. Sem isso, não adianta vir de pires na mão.


A descrença da comunidade internacional se justifica pelo dano causado ao meio ambiente e à imagem do Brasil nestes 27 meses de governo Bolsonaro. De referência na questão ambiental desde a Eco-92, o Brasil foi reduzido à condição de pária. Em vez de fortalecer uma das legislações mais avançadas do mundo e seus organismos de fiscalização, o presidente e o ministro Ricardo Salles passaram a desconstruí-los.

Não é de se espantar, portanto, que o desmatamento tenha crescido no seu governo como nunca antes. Agora mesmo tivemos o maior desmatamento do mês de março dos últimos dez anos.

Sim, Bolsonaro inverteu uma tendência em curso que levou a uma queda expressiva do desmatamento entre 2009 e 2012, graças a um dos mais avançados planos de prevenção e proteção, o da Amazônia. Ao tempo em que estigmatizou ambientalistas, ONGs, instituições como o Inpe, lideranças indígenas e ribeirinhos, sua política extrativista deu eco aos madeireiros, garimpeiros e setores atrasados do agronegócio.

A pressão para mudança de mentalidade e de atitude não vem só do exterior. O moderno agronegócio, principal responsável pelo bom desempenho das exportações brasileiras, tem plena consciência do quanto a devastação pode levar as commodities brasileiras a perder terreno no mercado mundial. Grandes corporações também sentiram o tamanho do perigo e pressionam o presidente para apresentar metas mais ousadas e mais concretas na Cúpula dos líderes sobre o clima.

Está em jogo a inserção do Brasil na nova política global. As nossas relações comerciais com os Estados Unidos e com a União Europeia serão ditadas pela maneira como vamos nos inserir no grande pacto ambiental. Se como protagonista, como fomos até bem pouco tempo, ou sem sequer ter assento à mesa.

A cooperação internacional, inclusive financeira, só virá se o Brasil for de fato parceiro desse pacto, com a compreensão da profunda mudança da maneira como o mundo e as próprias corporações estão se reorganizando. A sustentabilidade passou a ser um valor central nas relações comerciais entre países e governos.

Há uma corrida entre os Estados Unidos e a China para decidir quem liderará o mundo na direção de uma economia de baixo carbono. Os americanos têm consciência de que estão ficando para trás, com os chineses sendo os maiores produtores e exportadores de painéis solares, turbinas eólicas, baterias e carros elétricos.

O Brasil pode tirar dividendos dessa corrida. Tem ativos enormes: a Amazônia, o pantanal e fontes imensas de energia renovável. Pode ser um protagonista importante da nova moldura climática do mundo. E não pode se contentar ao papel que o ministro Ricardo Salles condenou o país em sua apresentação à equipe de John Kerry.

Humilha o Brasil o slide de um cachorro abanando o rabo em frente a uma máquina de frango assado com cifrões nos olhos e o título “expectativa de pagamento”.

Por aí Bolsonaro queimará a sua última oportunidade para entrar em sintonia com o mundo. Nenhum líder mundial se deixará levar por promessas genéricas cujo objetivo é embasar o discurso do “ei, você aí, me dá um dinheiro aí”. Nisso o vice-presidente Hamilton Mourão tem razão, não cai bem ao Brasil o papel de mendigo.

Bolsonaro gostaria de torturar os números da Covid, mas no tribunal da ciência não existe anistia

Com a instauração da CPI, os bolsonaristas aceleraram a produção de mentiras para fazer parecer que a gestão da pandemia por Bolsonaro não foi tão ruim assim. Algumas são pura ficção (“Lulinha é dono da fábrica chinesa de vacina”), e, sinceramente, se você acredita nisso, você é otário.

Mas algumas das mentiras que os bolsonaristas vão contar na CPI são baseadas em dados verdadeiros. O que é sempre falso são as coisas que os governistas tentam dizer com esses dados.

Por exemplo, os governistas gostam de dizer que o número de vacinados no Brasil é alto, se comparado ao de outros países. Até é, mas Bolsonaro não tem nada a ver com isso: 80% dessas vacinas são Coronavac, do Butantan de Doria, que Bolsonaro prometeu não comprar. Tente refazer o ranking só com as vacinas que Bolsonaro importou e veja em que posição estamos.

Note que na hora de olhar para as vacinas aplicadas, os bolsonaristas gostam de usar os números absolutos (quantos foram vacinados), e não os relativos (a porcentagem da população vacinada, que é bem menor no Brasil do que em outros países).

Mas na hora de olhar para o número de mortos, preferem usar os números relativos (mortos por milhão, em geral). Não é por acaso: no número absoluto de mortes, só estamos atrás dos Estados Unidos (que têm 100 milhões a mais de pessoas e muito mais velhos).


Olhemos então para o ranking de mortes por milhão, o mais favorável a Bolsonaro. Mesmo neste ranking, só há 12 países piores do que nós (passamos os Estados Unidos outro dia).

Entre eles há países com muito mais velhos do que o Brasil, como o Reino Unido e a Itália, e países pouco populosos (e também velhos) do Leste Europeu (em geral, com menos de 10 milhões de habitantes).

A Covid-19, em especial em sua forma original, matava mais velhos do que jovens; é preciso, portanto, levar isso em conta na comparação entre países.

Em 3 de fevereiro de 2021, o jornal Correio Braziliense publicou um estudo do pesquisador Marcos Hecksher, do Ipea, que calculou a probabilidade de um cidadão morrer de Covid-19 nos diferentes países, levando em conta tanto o tamanho do país quanto as características demográficas (número de idosos) de cada um.

No geral, segundo o estudo, a chance de um brasileiro morrer de Covid-19 é de 3 a 4 vezes maior do que no resto do mundo. Foi o estudo de Hecksher que causou a proibição a pesquisadores do Ipea de discutir suas pesquisas com a imprensa sem autorização do governo.

No ranking de Hecksher, o Brasil só aparecia melhor do que 9 países, a maioria na América Latina. O estudo, entretanto, compara os dados de 2020. A explosão de mortes no Brasil em 2021 foi muito pior do que no ano passado.

Faz um mês que os brasileiros mortos por Covid-19 são cerca de 30% dos mortos pelo vírus no mundo. A população brasileira representa apenas cerca de 2,7% da população do mundo. Na comparação internacional, já devemos estar bem piores do que na medição do estudo censurado.

Enfim, é sempre importante olhar os dados de vários lados, mas não há nenhum ângulo sob o qual o desastre brasileiro na pandemia não pareça imenso. O tamanho desse crime é consenso entre os pesquisadores internacionais.

Até por coerência, Bolsonaro gostaria de torturar os dados. Mas no tribunal da ciência não existe anistia.

Cúpula do Clima começa com Brasil no banco dos réus

Houve um tempo em que os demais países se voltavam para o governo brasileiro para quebrar um impasse e conseguir alcançar um resultado numa conferência do clima. Foi assim em 2009 em Copenhague, onde o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao lado do francês Nicolas Sarkozy, salvou o encontro do fracasso.

O soft power brasileiro, tradicionalmente baseado em futebol, samba e carnaval, havia então sido ampliado em uma competência nova e orientadora: liderança em política climática.

Hoje, à véspera da cúpula virtual do clima convocada pelo presidente dos EUA, Joe Biden, acumulam-se as manchetes negativas sobre os problemas ambientais do Brasil.

No início da semana, 400 funcionários do Ibama declararam, em carta aberta, que as atividades de fiscalização estão paralisadas por causa de uma instrução normativa do ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles. A chefia do Ibama, afirmam, não tem interesse em proteger o meio ambiente.

Poucos dias antes a troca na Polícia Federal do Amazonas havia gerado manchetes. Lá, o superintendente Alexandre Saraiva havia enviado uma notícia-crime ao Supremo Tribunal Federal, na qual denunciava Salles por sabotagem da fiscalização ambiental.

E, como se não bastasse, o Imazon divulgou que o desmatamento na região amazônica chegou ao maior nível em dez anos para um mês de março.


Em meio a todas essas notícias negativas, não se sabe qual o efeito da carta do presidente Jair Messias Bolsonaro a Biden. Bolsonaro se comprometeu a acabar com o desmatamento ilegal até 2030. Para isso, porém, o Brasil necessitaria da ajuda dos Estados Unidos.

Nada de novo: em 2019 Salles já havia dito que o Brasil teria direito a 10 bilhões de dólares anuais dos valores para proteção de florestas prometidos no Acordo de Paris de 2015.

Nesta quarta-feira, o jornal O Globo noticiou um novo projeto do ministro do Meio Ambiente. Com dinheiro das nações industrializadas, ele pretende criar uma Força de Segurança Ambiental para substituir as atuais autoridades ambientais. ONGs ambientalistas não se mostraram empolgadas — elas supõem motivações políticas por trás da retirada de poder das autoridades ambientais.

Em meio a tudo isso faz sentido que o Fundo da Amazônia, financiado por Noruega e Alemanha, tenha sido congelado depois de Salles tentar excluir as ONGs da gerência dos projetos financiados.

Nada disso é desconhecido nas nações industrializadas. Principalmente na Europa, a imprensa dá amplo espaço para os problemas ambientais do Brasil. Declarações de que tudo está maravilhoso não vão livrar a cara de Bolsonaro e Salles na cúpula de Biden.

Na Europa também são conhecidos velhos truques, como simplesmente apresentar o desmatamento ilegal como sendo legal, e assim tornar absurda a promessa de combater o desmatamento ilegal.

Desse jeito o Brasil corre de risco de ser massacrado ao nível de um pária ambiental diante das câmeras do Zoom.

A carta aberta na qual 36 artistas, entre eles a cantora Katy Perry e o ator Leonardo DiCaprio, alertam Biden contra um acordo com Bolsonaro já dá uma ideia de como a situação poderá se tornar constrangedora.

Biden já havia sido alertado por uma carta semelhante de senadores democratas. No início de abril, organizações brasileiras também pediram a ele para que não feche acordos com o presidente brasileiro.

Tudo isso não significa que seja impossível alcançar um acordo. Mais provável é que os Estados Unidos e a União Europeia façam um jogo do tipo "bom policial, mau policial" com Bolsonaro: enquanto os europeus atacam de frente e ameaçam mais uma vez com o fim do acordo comercial com o Mercosul, Biden pode assumir o papel conciliatório e atrair Bolsonaro com bilhões para a proteção climática.

Para o governo Biden parece ser muito importante obter avanços na proteção climática. E, para isso, é preciso colocar o Brasil no barco, queira ele ou não. E apesar de Bolsonaro.
Thomas Milz