quarta-feira, 11 de julho de 2018

O charlatão

- Ora aqui temos nós a última descoberta científica do século!

Falava de cima de uma cadeira, em pé, ao lado de uma mesa, sobre a qual estava um grande baú aberto. Passeava-lhe um rato branco pelos ombros, e era impossível fugir à magia daquela enorme cabeleira, que lhe coroava uma bela fronte de lutador. Só vinha na feira dos vinte e três. Armava a tenda logo pela manhã, e daí a nada já tinha freguesia a beber-lhe as palavras. A sua voz era sugestiva, funda, com quantos tons eram precisos para encantar homens de todas as terras e de todas as raças.

- Façam favor de ver…

E só quem era cego é que não via.

- Vou agora contar-lhes uma anedota.

Os que já faziam parte da roda arrebitavam as orelhas; os que iam no seu caminho paravam e ficavam maravilhados, a ouvir. No fim, todos se riam, que a coisa tinha na verdade, graça.

Os tempos iam de mal a pior. Deus sabe com que vontade quem tinha os seus precisos para o resto do ano os vinha vender por qualquer preço. Por isso, depois de duas lágrimas dadas ao balido de uma ovelha, à mansidão de um porco criado a caldo, ou à brancura de uma peça de linho fiada à luz da candeia e a horas tiradas ao sono, era um alívio perder meia hora ali. Iam-se embora as canseiras, os cuidados, e a feira passava a ter o ar de festa que o coração de todos desejava.

E não pensasse lá ele que acreditavam nas aldrabices que dizia do elixir! Quem? Mas, enfim, eram só dez tostões, e às vezes, para um remedeio…

- Vou agora mostrar a V. Ex.as a autêntica víbora da felicidade!

Excelências! Estava a brincar, ou a falar a sério? Mas, ao fim e ao cabo, quem é que não gosta, uma vez na vida, de ser tratado por excelência? E um de Almalaguez perdeu a cabeça e lá comprou aquele “talismã da Ventura” por cinco escudos.

- Bem burro! – não se conteve uma criada.

Mas estava era com pena de a não ter comprado ela.

Já nova maravilha saía das profundezas do baú.

- Sarna, pruridos, eczemas, impingens, lepra, furúnculos, tudo quanto uma pele humana possa conceber, é enquanto o Demónio esfrega um olho! Vejam: pega-se na ulceração, um bocadinho de pomada em cima, ao de leve e pouco, que é para poupar, e não se pensa mais nisso! Cinco tostões apenas! Só a caixa vale quinze! Aproveitem! Aproveitem, que numa drogaria custa-lhes dois escudos!

Até um soldado estendeu o braço à pechincha.

- Tu para que é que queres isso? – interrogou, espantado, um colega.

- Sei lá!

Não prestava: era a convicção geral. Mas aqueles olhos a fuzilar o mal e a curá-lo; aquele rato branco, de quando em quando parado e atento às palavras do dono; aquela mão erguida ao alto como um destino, turvavam a vontade do mais pintado.

- Aldrabão!... – gritava-lhes o resto do bom senso na agonia.

Pois sim. Era ouvi-lo. Era esperar um instantinho e então se veria.

- Eu sei que há muitas pessoas que me chamam aldrabão. Coitadas! Onde pode chegar a ignorância humana! Ora vejamos…

E pantomineiros, daí a pouco, passavam a ser aqueles indivíduos que todos os da roda tinham como pessoas fora do alcance de qualquer suspeita. Mas ele? Pelo amor de Deus! Quem é que tinha a coragem de vir assim, honestamente, explicar os factos, receber sugestões, pôr-se, numa palavra, em contacto directo com o respeitável público? Aldrabão! Sempre a mesmíssima coisa! Mas não era isso que lhe fazia cabelos brancos. Dava o mundo inteiro como testemunha da sua isenção e da sua honradez…
- Duvidam?

O silêncio de todos bastava-lhe como resposta.

Miguel Torga, “Rua”

Brasil da falta de respeito


Molecagem nos três Poderes

A incrível e absurda malandragem perpetrada por três representantes do povo de um partido que diz servir aos trabalhadores e respeitar a democracia, com a cumplicidade de um desembargador federal, no primeiro domingo da Copa da Rússia sem o Brasil, expôs a explícita desmoralização do nosso Estado de Direito. Finda a semana em que os flagrantes delitos no registro espúrio de sindicatos no Ministério do Trabalho afundaram o Poder Executivo no pântano do descrédito, a manobra escusa tentada para retirar Lula da cela pela porta dos fundos foi a gota d’água que inundou as enlameadas cavernas do Judiciário.

Às vésperas de agosto, mês tido como “do desgosto”, o cidadão brasileiro já tinha sido exposto a sórdidos truques de parlamentares, legitimados para legislar em nome do povo. O projeto do deputado Nelson Marquezelli (PTB-SP) perdoando as dívidas das multas de caminhoneiros e transportadoras que provocaram pane seca e desabastecimento de combustíveis e víveres foi incluído no relatório de Osmar Terra (MDB-PR) que torna o frete mínimo obrigatório. Essa iniciativa do Legislativo, com as bênçãos do Executivo, que distribui verbas do depauperado erário a mancheias entre deputados das bancadas governistas, reproduz hoje a mesma relação sórdida já antes condenada pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O arrombamento da ordem constitucional, que consagra o mercado livre, para resolver uma crise criada pela ousadia dos chantagistas, que expuseram a fragilidade de um governo impopular e desacreditado, não passa de uma versão contemporânea do mensalão, que abriu a temporada de caça aos gatunos.


Durante curto interregno, a cúpula do Judiciário apoiou o combate à corrupção, efetuado por uma geração competente e proba de policiais, procuradores, juízes e desembargadores federais das instâncias iniciais. Isso deu à população espoliada a sensação de que a Justiça sanearia os altos e podres Poderes da República. Mas tal aliança durou muito pouco.

Logo as brechas, pelas quais criminosos de colarinho-branco passavam para ficar fora do alcance da lei, se abriram nas divisões internas da cúpula da atividade judiciária, em que boas iniciativas sempre sucumbiram ao corporativismo e à corrupção. Essas câmaras escuras são percorridas mercê da negação do decantado espírito da colegialidade, do qual somente uma ministra da “Suprema Corte”, Rosa Weber, parece ser adepta. Ao contrário dela, os outros quatro que deram votos vencidos na decisão pela jurisprudência que autoriza prisão de condenados em segunda instância – a dupla Mello e de Mello, Lewandowski e Toffoli – aliaram-se ao pagão novo Gilmar. E a desafiam em capciosas decisões monocráticas.

A tabelinha Lava Jato-STF não resistiu à nada gloriosa entrada dos tucanos nas listas dos delatados da operação. Isso causou a guinada de 180 graus de Gilmar, dos que apoiaram a jurisprudência firmada em três votações de 2016 para os adeptos da distorção de preceitos constitucionais. Essa prática é antiga. Tendo confessado que redigiu artigos da Constituição que não foram aprovados pela maioria do plenário, Nelson Jobim ora é tido por alguns como presidenciável da conciliação em outubro. E o então presidente do STF Ricardo Lewandowski rasurou cinicamente o artigo da Constituição que proíbe condenados em impeachment de exercer cargo público por oito anos. A canetada, sugerida por Renan Calheiros, permite hoje que Dilma se candidate ao Senado pelo PT.

Quem não redigiu nem rasurou a Carta Magna apela para a leitura errada do artigo 5.º, segundo o qual ninguém é “considerado culpado antes do trânsito em julgado” de seu processo. A extensão da isenção da culpa à proibição da prisão ou à presunção de inocência, finda na segunda instância, não está no dicionário, mas pode ser incluída, mercê do “poder da grana, que ergue e destrói coisas belas” (apud Caetano Veloso).

Recentemente, o ministro Mello soltou traficantes condenados em segunda instância com a mesma desfaçatez com que Gilmar concedeu habeas corpus a clientes da banca da mulher. E Toffoli devolveu o ex-chefe Dirceu, condenado em segunda instância a mais de 30 anos de prisão, ao doce lar. Atribui-se a esse duas vezes apenado (no mensalão e no petrolão) o planejamento da molecagem do desembargador do Tribunal Regional Federal da 4.ª Região (TRF-4) Rogério Favreto, por ele indicado, a desafiar os colegas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o STF, mandando soltar o mais famoso presidiário do Brasil.

Si non è vero, è ben trovato (se não é verdade é bem pensado), diria don Vito Corleone, O Poderoso Chefão da ficção de Mário Puzo. A fresta parecia promissora para o trio Paulo Pimenta, Paulo Teixeira e Wadih Damous, dois deputados federais e um levado à vaga aberta pela pressão do dirigente Quaquá na prefeitura do Rio. Um dos 27 desembargadores do TRF-4 em seu primeiro plantão teria de ser mais sensível à ideia “original” de que a pré-candidatura de Lula à Presidência seria o fato novo para lhe permitir conceder o habeas corpus pedido à sorrelfa. Meia hora depois do início do plantão do simpatizante na sexta-feira, deram à luz o mostrengo.

Como Toffoli, Favreto serviu a Dirceu. E como Toffoli mandou a jurisprudência da prisão pós-segunda instância às favas. Não havia mais a possibilidade de contar com o relaxamento da classificação do Brasil para a semifinal da Copa, pois a seleção de Tite fora eliminada duas horas e meia antes. Não é correto, então, perguntar se não combinaram com os belgas e pensar que a molecagem, de que a defesa de Lula se fingiu distante, passaria incólume na euforia geral.

Mas quando setembro vier, Toffoli, que como Favreto nunca foi juiz, será presidente do STF e terá à mão o martelo para triturar a jurisprudência dos colegas, Moro, o TRF-4 e o STJ. E retirar Lula da cadeia. Ingênuo será pensar que ele seria menos cínico que Favreto.

Essa gente da Justiça mente...

Desde que chegou aqui, (Lula ) está com a serenidade de um monge tibetano
Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça

Lula, o grande eleitor

Olhando-se para o Judiciário a partir do balcão da lanchonete da rodoviária, as coisas estão assim: Marcelo Bretas prende, e Gilmar Mendes solta; Rogério Favreto solta, e Gebran Neto prende. Isso numa época em que juízes ganham um auxílio-moradia de R$ 4,3 mil mensais. A discussão do mimo chegou ao Supremo Tribunal, o ministro Luiz Fux matou no peito e reteve a decisão.

Faltam menos de três meses para a eleição presidencial, e a barafunda do Judiciário deu a Lula um impulso inesperado. Tudo indica que sua candidatura será impugnada, mas ele poderá ungir o ex-prefeito de São Paulo Fernando Haddad ou o ex-governador da Bahia Jaques Wagner, como ungiu Dilma Rousseff.

“Nosso Guia” (expressão criada pelo embaixador Celso Amorim) tem ao mesmo tempo um alto número de pessoas dispostas a votar nele, mas também é alto o nível de sua rejeição. O circo de domingo transformou a cadeia de Curitiba numa câmara de proteção para Lula.

Enquanto ele estiver preso, os outros terão a liberdade de fazer besteiras, da greve dos caminhoneiros ao prende-solta dos magistrados. Guardadas as proporções e ressalvados os aspectos legais, a carceragem da Polícia Federal está para Lula assim como a solidão de São Borja esteve para Getúlio Vargas em 1950.

O ex-presidente firmou-se no papel de vítima, e esse é o que melhor desempenha. Ficam duas perguntas: qual a sua capacidade transferir simpatias? E o que poderá fazer para reduzir as antipatias?

Dado o desempenho do governo de Michel Temer, a transferência de simpatias será considerável. A redução da antipatia será tarefa mais complicada, sobretudo porque Lula, o PT, Fernando Haddad e Jaques Wagner nunca fizeram um milímetro de autocrítica diante das malfeitorias praticadas nos seus dez anos de poder.

Tudo bem, mas autocrítica não é uma mercadoria abundante no plantel dos candidatos. Bolsonaro marcha garbosamente com o DOI na mochila. Ciro Gomes apresenta-se como o novo a partir de práticas capazes de fazer corar os velhos coronéis nordestinos. Geraldo Alckmin tem sobre a cabeça a nuvem dos cartéis de empreiteiros cevados nas gestões tucanas de São Paulo. Henrique Meirelles é ex-presidente do conselho da J&F, dos irmãos Batista. Finalmente, Marina Silva honra a plateia com sua austeridade e sonoros silêncios. Nenhum desses candidatos traz consigo o risco do aparelhamento da máquina do Estado por quadros semelhantes aos do comissariado petista. Em troca, Ciro Gomes aproxima-se do DEM, Bolsonaro flerta com o PR de Valdemar Costa Neto e Meirelles está no PMDB, presidido pelo senador Romero Jucá. Salva-se Marina, sem os pés no aparelho tradicional.

Em 2002, Lula driblou seus adversários com a “Carta aos Brasileiros”. Foi uma guinada em relação ao que dissera em questões econômicas. Uma “Carta aos Brasileiros 2.0” tentará enxaguar a roupa suja petista, convertendo em neutralidade a antipatia pelo comissariado e somando-a à simpatia que Lula amealhou pelo que fez e pelo que lhe fazem. (Antonio Palocci, o autor da Carta 1.0, está na cadeia.)

Em 1950, como prometera, o ditador voltou ao poder como “líder de massas”. Em 2018, um ex-presidente preso por corrupção poderá vir a ser o grande eleitor num pleito em que o eleitorado coloca o combate às roubalheiras como uma das prioridades nacionais.

Elio Gaspari

A politização da Justiça

As fortes ligações dos membros das cortes superiores e tribunais de justiça com p
olíticos não são nenhuma novidade, o fato novo é a punição dos políticos pelos juízes e tribunais, entre os quais o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), condenado a 12 anos e um mês de prisão em regime fechado. É o primeiro caso de um presidente da República levado à prisão no Brasil. Isso não aconteceu na Revolução de 1930 nem no golpe militar de 1964. Os ex-presidentes Washington Luiz e João Goulart, depostos, foram para o exílio. Poderiam ter sido presos, se Getúlio Vargas e Castelo Branco quisessem fazê-lo.

Após a redemocratização, o ex-presidente Fernando Collor de Mello, que renunciou ao sofrer um processo de impeachment, não foi preso. Respondeu a processo em liberdade e acabou absolvido, sem passar pelas instâncias de primeiro e segundo grau. A ex-presidente Dilma Rousseff, deposta no impeachment, nem os direitos políticos perdeu. Todos os ex-presidentes vivos têm alguma influência nos tribunais. Não tem fundamento constitucional a narrativa do PT de que Lula é um preso político, de que sua prisão é uma perseguição dos “jacobinos de toga”. Lula está preso porque recebeu vantagens indevidas no exercício do cargo e isso é crime comum. Foi condenado em duas instâncias e estará fora da disputa eleitoral por causa da Lei da Ficha Limpa. Os fatos jurídico-políticos são esses, o resto é discurso eleitoral e muita luta pelo poder.


É nesse contexto que os fatos de domingo passado, envolvendo o desembargador Rogério Favreto, do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), que mandou soltar Lula, e os juízes naturais do caso do tríplex de Guarujá, o juiz federal Sérgio Moro, da 13ª Vara Federal, de Curitiba, responsável pela execução da pena, o desembargador João Pedro Gebran Neto, relator do caso, e o presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região, com sede em Porto Alegre, desembargador Trompson Flores, que mantiveram a prisão, precisam ser analisados.

A luta política chegou à Lava-Jato em todas as instâncias. Num país de dimensões continentais, que somente veio a completar sua revolução burguesa na década de 1930, mesmo considerando-se o importante papel do Exército brasileiro e da diplomacia na preservação da integridade territorial e consolidação de nossas fronteiras, seria inimaginável a construção do Estado nacional sem a existência de uma Justiça capaz de se fazer presente em todas as cidades. No período colonial, a Justiça local era exercida por cidadãos designados pelas Câmaras Municipais eleitas; com a chegada da Corte portuguesa, essa estrutura não mudou muito; depois da Independência, o sistema passou a ser híbrido, com a nomeação dos juízes pelo imperador e a criação de juris formados por eleitores, que anualmente eram alistados para julgarem devassas e querelas em processo público e oral. Impossível não haver politização.


A centralização e profissionalização da magistratura só veio em 1850, quando o impedor D. Pedro II, por decreto, estabeleceu que os juízes seriam nomeados por ele, entre bacharéis, após servirem como juiz municipal, de órfãos, ou promotor público. Os habilitados deveriam ser matriculados com base nas informações prestadas pelos presidentes de Província e pela documentação apresentada pelo requerente, o que garantiu o controle do Judiciário pelo Partido Conservador. Após a proclamação da República, com a Constituição de 1891, a grande mudança foi a realização de concursos: “A nomeação de juízes de direito será precedida de noviciado e concurso, e a dos substitutos, de noviciado”. Mesmo assim, somente no final do regime militar, em 14 de março de 1979, foi editada a Lei Complementar nº 35, instituindo a Lei Orgânica da Magistratura Nacional. Entre outras disposições, essa lei criou o Conselho Nacional da Magistratura, que foi extinto em 1998 por simples despacho de um ministro do Supremo Tribunal Federal (STF). Renasceu das cinzas, porém, com a Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004., recebendo a denominação de Conselho Nacional de Justiça. Antes mesmo de sua publicação, a emenda foi objeto de uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI 3367), proposta pela Associação dos Magistrados Brasileiros, mas o Supremo decidiu por maioria julgar improcedente a ação.

Há uma tensão permanente entre os magistrados de carreira e os desembargadores e ministros do chamado quinto constitucional, exacerbada pelo fato de que a composição do Judiciário, mesmo com os concursos, manteve características de casta privilegiada e corporativista. Para o cidadão comum, a Justiça gasta muito, produz pouco e fala uma língua que não se entende. Para os poderosos, os ritos do processo são mais importantes do que os fatos; com os miseráveis, ocorre exatamente o contrário. Com a Operação Lava-Jato, esse modus operandi estolou. O caso Lula pôs a crise ética no colo da Justiça brasileira, que está como homem da caverna de Platão: não sabe se permanece à luz do dia ou volta para a escuridão. Quem vai decidir é o Supremo Tribunal Federal (STF).