Falava de cima de uma cadeira, em pé, ao lado de uma mesa, sobre a qual estava um grande baú aberto. Passeava-lhe um rato branco pelos ombros, e era impossível fugir à magia daquela enorme cabeleira, que lhe coroava uma bela fronte de lutador. Só vinha na feira dos vinte e três. Armava a tenda logo pela manhã, e daí a nada já tinha freguesia a beber-lhe as palavras. A sua voz era sugestiva, funda, com quantos tons eram precisos para encantar homens de todas as terras e de todas as raças.
- Façam favor de ver…
E só quem era cego é que não via.
- Vou agora contar-lhes uma anedota.
Os que já faziam parte da roda arrebitavam as orelhas; os que iam no seu caminho paravam e ficavam maravilhados, a ouvir. No fim, todos se riam, que a coisa tinha na verdade, graça.
Os tempos iam de mal a pior. Deus sabe com que vontade quem tinha os seus precisos para o resto do ano os vinha vender por qualquer preço. Por isso, depois de duas lágrimas dadas ao balido de uma ovelha, à mansidão de um porco criado a caldo, ou à brancura de uma peça de linho fiada à luz da candeia e a horas tiradas ao sono, era um alívio perder meia hora ali. Iam-se embora as canseiras, os cuidados, e a feira passava a ter o ar de festa que o coração de todos desejava.
E não pensasse lá ele que acreditavam nas aldrabices que dizia do elixir! Quem? Mas, enfim, eram só dez tostões, e às vezes, para um remedeio…
- Vou agora mostrar a V. Ex.as a autêntica víbora da felicidade!
Excelências! Estava a brincar, ou a falar a sério? Mas, ao fim e ao cabo, quem é que não gosta, uma vez na vida, de ser tratado por excelência? E um de Almalaguez perdeu a cabeça e lá comprou aquele “talismã da Ventura” por cinco escudos.
- Bem burro! – não se conteve uma criada.
Mas estava era com pena de a não ter comprado ela.
Já nova maravilha saía das profundezas do baú.
- Sarna, pruridos, eczemas, impingens, lepra, furúnculos, tudo quanto uma pele humana possa conceber, é enquanto o Demónio esfrega um olho! Vejam: pega-se na ulceração, um bocadinho de pomada em cima, ao de leve e pouco, que é para poupar, e não se pensa mais nisso! Cinco tostões apenas! Só a caixa vale quinze! Aproveitem! Aproveitem, que numa drogaria custa-lhes dois escudos!
Até um soldado estendeu o braço à pechincha.
- Tu para que é que queres isso? – interrogou, espantado, um colega.
- Sei lá!
Não prestava: era a convicção geral. Mas aqueles olhos a fuzilar o mal e a curá-lo; aquele rato branco, de quando em quando parado e atento às palavras do dono; aquela mão erguida ao alto como um destino, turvavam a vontade do mais pintado.
- Aldrabão!... – gritava-lhes o resto do bom senso na agonia.
Pois sim. Era ouvi-lo. Era esperar um instantinho e então se veria.
- Eu sei que há muitas pessoas que me chamam aldrabão. Coitadas! Onde pode chegar a ignorância humana! Ora vejamos…
E pantomineiros, daí a pouco, passavam a ser aqueles indivíduos que todos os da roda tinham como pessoas fora do alcance de qualquer suspeita. Mas ele? Pelo amor de Deus! Quem é que tinha a coragem de vir assim, honestamente, explicar os factos, receber sugestões, pôr-se, numa palavra, em contacto directo com o respeitável público? Aldrabão! Sempre a mesmíssima coisa! Mas não era isso que lhe fazia cabelos brancos. Dava o mundo inteiro como testemunha da sua isenção e da sua honradez…
- Duvidam?
O silêncio de todos bastava-lhe como resposta.
Miguel Torga, “Rua”
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