segunda-feira, 5 de abril de 2021

Bolsonaro defendia há 22 anos que o Brasil só se salvaria com uma guerra civil

Aqueles que, como este colunista, viveram durante a infância a Guerra Civil Espanhola, em que morreram quase um milhão de pessoas e cerca de 30.000 crianças, sentem calafrios só de falar sobre uma guerra entre irmãos. Lembro que minha mãe fechava as janelas que davam para a estrada para que eu não visse os fuzilamentos. Só ouvia os tiros dos fuzis e das metralhadoras. Era uma guerra entre irmãos. E lembro-me de quando alguns camponeses escondiam de noite o meu pai, que era professor primário, por medo de que viessem fuzilá-lo.

É isso que o presidente Bolsonaro deseja para o Brasil?

Sim, esse era o seu sonho há 22 anos, quando era deputado do chamado baixo clero sem que se destacasse por nada além de sua homofobia, seu desprezo pelas mulheres e a sua defesa da ditadura e da tortura. Em 1999, em uma entrevista ao programa Câmera Aberta, da TV Bandeirantes, disse textualmente: “O voto não vai mudar nada no Brasil. Só vai mudar infelizmente quando partirmos para uma guerra civil, fazendo um trabalho que o regime militar não fez. Matando uns 30.000”.

Infelizmente o Congresso considerou então apenas como extravagâncias as ameaças do deputado militar. Se tivesse sido processado na época, hoje não seria presidente nem sofreríamos as contínuas ameaças de golpes autoritários. Em qualquer democracia do mundo, um deputado que defendesse uma guerra civil na televisão seria processado e destituído do cargo. A Bolsonaro permitiu-se desde o primeiro momento fazer todos os ataques mais ferozes à liberdade e aos valores democráticos e defender os torturadores durante a ditadura que, segundo ele, foi demasiado leve porque deveria ter matado muitos mais. E isso foi defendido em pleno Congresso.

Se na ocasião as instituições do Estado, o Congresso e o STF tivessem intervindo, expulsando-o do cargo, hoje o Brasil certamente não teria mais de 300.000 mortos na pandemia e teria poupado tanta dor.

Bolsonaro já deveria ter sido julgado por seu negacionismo da pandemia e por zombar daqueles que lutavam para salvar vidas. As consequências da inércia das instituições em enfrentar o defensor da ditadura fizeram com que o Brasil chegasse até a se perguntar se estamos na iminência de um novo golpe militar. Pelo que se sabe até agora, as Forças Armadas decidiram interromper essa narrativa quando o ministro da Defesa e seus comandantes deixaram seus cargos, sinalizando que para tudo há limites.

Aqueles que continuam defendendo que ainda não é hora de abrir um processo de impeachment contra ele deveriam pensar que amanhã pode ser tarde demais. Pois imaginar que o frustrado capitão ainda possa se converter à democracia é apenas loucura. Ele carrega no sangue o gosto pela morte e pelas armas.


Estes dias de convulsão política, às vésperas do aniversário do golpe de 1964, com a renúncia do alto comando militar, revelam a gravidade da situação do Brasil. Até quando esperarão os que detêm o poder constitucional para destituir do cargo o capitão do Exército, reformado por subversão? Enquanto isso, o presidente se prepara para dar força e poder às Polícias Militares e, se puder, transformá-las em sua milícia pessoal, um atalho para seus sonhos golpistas.

Até quando o Brasil, em que cerca de 80% da população quer viver em democracia, aceitará passivamente que o chefe do Estado, ao invés de governar o país em um de seus momentos mais dramáticos, trame todos os dias para dar um golpe autoritário? O fato de ter colocado um policial amigo da família do presidente como ministro da Justiça é de uma gravidade difícil de qualificar. É uma ofensa à Justiça e revela os instintos do capitão obcecado pelo mundo das armas, pelo desafio da vida e por tudo o que significa morte e violência.

Para alimentar seu rebanho de fanáticos violentos, o presidente esquece e despreza aqueles que preferem apostar na vida, na empatia e na solidariedade com todos aqueles que sofrem e choram com a dor própria e alheia. Para o presidente, hoje abandonado até pelo que chamava de “meu Exército”, quem se defende da pandemia ouvindo a ciência não passa de um bando de covardes com medo de morrer.

Até quando o Brasil são, o que anseia viver em paz e segurança e que não falte comida no prato de seus filhos, continuará ameaçado por fantasmas de golpes e guerras civis? O Brasil já sofre com seus índices de violência que ceifam mais de 40.000 vidas a cada ano, a maioria de jovens e negros.

O escritor norte-americano Ernest Hemingway se perguntava por quem os sinos dobravam. Oxalá neste Brasil que sabe aproveitar a vida os sinos deixem de soar para anunciar mais mortos e repiquem para festejar de novo a vida.

Até quando, Bolsonaro?

O Brasil é o campeão do mundo em mortes diárias por Covid-19. Tivemos, segundo Margareth Dalcolmo, o março mais triste de nossas vidas e, infelizmente, começa o abril mais triste de nossas vidas.

Estamos isolados no mundo. Não podemos viajar para encontrar nossos parentes no exterior, muito menos para realizar os negócios essenciais num mundo globalizado.

O fantástico Orçamento produzido pelo Centrão é, na verdade, um ataque de gafanhotos à nossa horta financeira. Não há mais governabilidade.

Um leitor me escreve perguntando até quando continuaremos discutindo e argumentando enquanto as pessoas vão morrendo às pencas.

Devo responder que ainda não encontrei outro caminho. Mas era só o que faltava, no auge da maior crise que o Brasil enfrenta ao longo de tantos anos, acrescentar uma pitada de autoflagelação.

Tudo o que podemos fazer é prosseguir isolando Bolsonaro para derrubá-lo no momento em que for possível, ainda que isso só possa acontecer em 22. E julgá-lo também por sua incompetência assassina, quando for possível e tivermos força para que a Justiça não falhe. Bolsonaro tem algumas características que podem absolvê-lo em certos tribunais brasileiros. Uma delas é a grande quantidade de provas contra ele. Já houve no país casos de absolvição por excesso de provas.


No momento, é preciso reunir forças contra a pandemia, salvar vidas. Aqui e ali, Bolsonaro tentará dar golpes de Estado. Mas o vírus não se curva a tanques e canhões. No fundo, a tarefa fundamental continuará a mesma até neutralizarmos essa peste.

Desde o ano passado, sabemos que a vacina é arma estratégica. Só o obtuso presidente ignorava essa realidade. Agora corremos contra o tempo.

Mas temos que buscar outras saídas, diuturnamente. Surgiram remédios que me trazem agora a mesma esperança que tive quando surgiram os coquetéis contra a Aids.

A diferença para mim, que estudo como um leigo desesperado, é que os coquetéis de agora são de anticorpos monoclonais, essas proteínas que o próprio organismo produz para atacar vírus, bactérias e até células cancerosas.

Aliás, meu palpite é que o pulo do gato nasceu aí, dessa luta contra células cancerosas. Os grandes laboratórios aproveitaram o avanço nas pesquisas contra o câncer e sintetizaram anticorpos que podem neutralizar o vírus.

Alguns desses experimentos já passaram pela fase 3 de pesquisa, assim como as vacinas que hoje usamos a conta-gotas no Brasil.

Um deles é da Regeneron e foi usado para curar Donald Trump na véspera das eleições. O outro, com resultados muitos bons, é o da Eli Lilly, que está sendo submetido a um exame da Anvisa para ser licenciado no Brasil.

Esses medicamentos são um pouco diferentes do Remdesivir, aquele que foi aprovado recentemente. O Remdesivir é um antiviral, custa em torno de R$ 20 mil e apenas reduz o tempo de hospitalização. É um custo-benefício duvidoso.

No entanto os anticorpos monoclonais têm um poder maior e, se a Anvisa também chegar a essa conclusão, examinando o material apresentado, teríamos que correr contra o tempo e tentar evitar este massacre cotidiano no Brasil, reduzindo logo o número de mortes.

De qualquer forma, esses remédios não são necessários no mesmo volume que as vacinas. Estas são compradas para toda a população, ou para uma grande parte dela. Os remédios são apenas para uma fração dos doentes que apresentam sintomas mais graves.

Os males da passagem da extrema-direita pelo poder transcendem o governo Bolsonaro. Levaremos anos para repará-los aqui, e talvez anos para podermos olhar o Brasil no espelho do mundo, sem recuarmos horrorizados e constrangidos.

Por isso, caro leitor, nossa tarefa será muito longa e árdua. Temos que lembrar a frase de um personagem de Guimarães Rosa: “Quem mói no áspero não fantasia”.

Pequena apologia da empatia

Andava há muito tempo para escrever sobre o tema da empatia. Mas, depois, assuntos ditos “sérios” tomavam a dianteira: crises de saúde pública, opções políticas certas ou erradas, impactos económicos maiores ou menores. Temas relevantes e considerados prioritários na escala dos habitualmente trazidos aos editoriais analíticos dos jornais e das revistas. E, no entanto, a empatia é um tema seríssimo – estrutural nas nossas vidas, naquilo que somos, nas opções profissionais e políticas que fazemos e no impacto que causamos no mundo.

Hoje, porém, foi o dia: este editorial é sobre empatia. Se não lhe interessar nada, saia agora, caro leitor. Eu compreendo, o assunto não é, nem nunca será, para todos.


E porque é que hoje foi o dia? Porque esta semana tive o privilégio de estar várias horas à conversa com o rei da empatia em Portugal. Chama-se Rui Nabeiro, celebrou 90 anos de uma vida extraordinária, com uma audácia e visão estratégica únicas. Mas não é só isso que o distingue. Empresários e homens de negócios bem-sucedidos há vários. É a forma como sempre – desde os tempos em que o menino Rui deixou de estudar para ajudar os pais até aos dias em que lidera um império nos cafés – manteve como prioridade construir e criar riqueza, mas também respeitar os que estão com ele, partilhar e ajudar os outros. Algo que fez sempre com empenho pessoal, dos casos mais simples que se plantavam na porta da fábrica, pedindo ajuda, às maiores obras de responsabilidade social que apadrinhou. O empático Rui Nabeiro é um ser humano superior, o que se nota nos mais pequenos gestos, e é graças a isso que o legado que deixará é tão excecional.

A palavra empatia deriva do grego empátheia, que significa “com sentido de paixão”. Mas foi só no início do século XX que Edward Titchener e James Ward traduziram o conceito alemão Einfühlung para empatia, assim introduzindo o termo na língua inglesa com o significado psicológico próximo do que tem hoje: esta capacidade de alguém se pôr no lugar do outro, tentando entendê-lo. Nas neurociências modernas, a empatia é uma competência emocional com duas componentes: cognitiva – a capacidade de compreender a perspetiva dos outros – e afetiva – a habilidade de ter reações emocionais por causa da observação das experiências alheias (como chorar, por exemplo). Não há altruísmo genuíno sem empatia.

Durante anos, a academia discutiu se a empatia é genética e inata ou se pode ser estimulada ou ensinada, tal como outros traços psicológicos. Conclui-se que, longe de ser uma característica imutável, a empatia pode ser trabalhada e desenvolvida. E que só há vantagens em treinar e ensinar que se deve ir para além das nossas próprias visões do mundo, para pelo menos tentar, como dizem os ingleses numa das suas felizes expressões, andar nos sapatos de outro homem.

Em 2006, o ainda senador Barack Obama fez um discurso aos graduados de uma universidade e disse: “Fala-se muito neste país sobre o défice federal. Mas acho que devemos falar mais sobre o nosso défice de empatia – a capacidade de nos colocarmos no lugar de outra pessoa, para ver o mundo através daqueles que são diferentes de nós –, a criança que está com fome, o metalúrgico despedido, a mulher imigrante que limpa o vosso dormitório.”

Vivemos tempos bem diferentes daqueles em que Barack Obama ainda só sonhava com a Casa Branca. Entretanto, explodiram redes sociais onde as pessoas revelam o pior de si próprias, escondidas atrás de um ecrã, e onde se sentem confortáveis, nas suas bolhas alimentadas por sinistros algoritmos, para descarregar frustrações, destilar ódio, espalhar mentiras e discórdia. E onde se julga o outro à velocidade vertiginosa de um like ou de um share insultuoso. O mundo entrincheirou-se, veio a “cultura do cancelamento”, e a cova que nos separa daqueles que criticamos e desprezamos parece cada vez mais funda. A empatia é cada vez menos praticada – e, porém, nunca nos fez tanta falta como agora. Sim, razão e empatia podem, e devem, andar de braços dados. E Rui Nabeiro é a prova viva disso.

Até quando?

Tristeza e desânimo é o que nos causa o fato de que, há exatamente 57 anos do golpe de 1964, quepes e fardas voltem a ocupar as páginas dos jornais e hoje também as redes sociais. Com 81 anos de idade, pergunto-me quando é que nossa República será capaz de se autogovernar dentro dos parâmetros da democracia, descartando a tutela militar? Ao longo dos 33 anos que se seguiram à redemocratização de 1985, acreditamos que caminhávamos nessa direção. Achávamos que o profissionalismo, a não interferência na política, passara a ser a marca da atuação de nossas Forças Armadas. Mas o fatídico tuíte do comandante do Exército, general Villas Bôas, em 3 de abril de 2018, pressionando o STF às vésperas do julgamento de um habeas corpus em favor de Lula, veio nos desenganar. As Forças Armadas, particularmente o Exército, continuavam, e continuam, convencidas de seu papel tutelar da República, expresso, segundo elas, nas palavras “garantias dos poderes constitucionais” do artigo 142 da Constituição.

A situação agravou-se quando os militares endossaram a candidatura do capitão indisciplinado e entraram em massa, de generais a oficiais subalternos, nos quadros governamentais, seja por ideologia, seja por fisiologismo, seja pelas duas coisas. Os alertas sobre o perigo que isso poderia representar para a unidade e a imagem das Forças Armadas não foram ouvidos. Ao longo de dois anos, ficaram claros os sinais de que o presidente buscava apoiar-se nelas, até para desafiar os outros poderes da República. Só aos poucos a ficha foi caindo e chegou ao ponto de conflito aberto quando, nesta semana, os comandantes das três Forças decidiram colocar seus cargos à disposição, sendo, a seguir, demitidos para que o governo salvasse a própria cara. Não me lembro de caso semelhante na história da República.


O chefe do Executivo está no pior momento de seu mandato até agora, torpedeado pela volta de Lula à disputa política, pela adesão da população à vacinação e pela postura do Centrão, menos submissa e menos fisiológica do que esperava. A tentativa de fazer uso político do Exército, embutida na expressão “o meu Exército”, assustou o alto-comando da Força. Começou a ficar claro que os militares tinham embarcado numa canoa furada, capaz de afundar a corporação. A reação ficou clara na frase do então ministro da Defesa, general Fernando de Azevedo e Silva, segundo a qual as Forças Armadas são instituições do Estado, e não de governos. Até mesmo o general vice-presidente alertou: nos quartéis, quando a política entra por uma porta, a disciplina sai pela outra. A politização leva à divisão e à quebra da disciplina, baluarte de qualquer organização militar. O grande erro político de João Goulart em 1964 foi ter apoiado os sargentos e os marinheiros.

Em que tudo isso vai dar, não se sabe, mas é positivo que os militares pareçam ter percebido o erro que cometeram. Se persistir em seus propósitos, o presidente ficará cada vez mais vulnerável. E só vai piorar a situação se insistir também em cortejar o apoio das polícias militares, tema também delicado para as Forças Armadas. Dito isso, nosso problema central persiste: quando nossa República será capaz de resolver suas crises sem dar margem à interferência militar? Desde o início, ela admitiu em todas as suas constituições, exceto na do Estado Novo, um papel político para os militares. Interprete-se esse papel como se quiser, mas ele está lá. E crises é o que não nos faltará levando em conta a dimensão de nossa desigualdade social, os mais de 60 milhões de brasileiros que precisaram do auxílio emergencial. Ou a República acaba com a desigualdade, ou a desigualdade inviabiliza a República, impedindo-a de se autogovernar.

Pensamento do Dia

 


Cai o mito do valentão

Na semana do trágico 31 de março, data que desde os tempos de deputado Jair Bolsonaro glorifica, o presidente tentou endurecer com comandantes militares e acabou enquadrado pelas três Forças. Teve ainda de fazer novas mesuras ao Centrão para agradar o presidente da Câmara Arthur Lira (PP-AL), que o ameaçou com o “sinal amarelo” do impeachment, e ao mensaleiro Valdemar da Costa Neto, dono do PL. Acuado, no dia seguinte aos 57 anos do golpe que pela primeira vez ele não comemorou, o “Rambo Bolsonaro” virou o que sempre foi: um sonoro 1º de abril.

Mas o escancaramento da fragilidade de Bolsonaro não o fará mudar. Sua obsessão por destruir o país para proteger a si e aos seus se manterá a todo vapor. Continuará usando a mesma tática miliciana da ameaça permanente. A única que ele conhece, que rendeu frutos para ele e os filhos, todos - exceto Jair Renan, que já já chega lá, e a jovem Laura - lançados precocemente pelo papai nas delícias da vida pública. 


A invertida que Bolsonaro tomou do ex-ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica, além da imposição dos critérios hierárquicos na indicação dos novos titulares, reforçou o papel institucional das Forças e expôs um cenário no mínimo curioso. Os militares, que já foram os bichos-papões, se tornaram defensores da democracia e das Forças Armadas como instituições de Estado, em contraponto a um presidente civil autocrata, que anseia por um Exército para chamar de seu. 

Nas redes sociais, o filho Eduardo até tentou manter o clima pró-64, com a publicação de um vídeo patético do pai, ao lado do irmão Flávio e dele, ao som de marcha militar e ditos em favor do golpe, com um surpreendente encerramento: “Brasil acima de tudo”, gravado em 2014.

Dizem, mas não há quem prove, que a força de Bolsonaro está nos baixos escalões das Forças Armadas e das Polícias Militares estaduais. De fato, é nessa turma que se concentra o empenho do presidente, nas dezenas de formaturas de jovens militares a que ele comparece e, mais gravemente, no reforço direto e indireto às tentativas de insurreições nas polícias estaduais. 

Agiu assim nos motins - que ele chamava de greves - de policiais do Ceará e do Espírito Santo. Tentou agora na Bahia, com sua militância virtual em ordem unida para transformar em herói um PM enlouquecido que abriu fogo contra seus pares em suposta defesa do fim das restrições à circulação determinada pelo governador.

Ainda que possam, hipoteticamente, serem seduzidos pelo blá-blá-blá bolsonarista, não é crível - e até então não mensurável - que jovens recrutas das Forças Armadas e das Polícias Militares prefiram uma aventura desvairada à estabilidade da carreira militar. Afinal, gente infame e “mau militar” como o capitão Bolsonaro é exceção e não regra. 

Mesmo aquinhoados com reajustes, investimentos, assento em milhares de cargos no governo e todo tipo de privilégio, os fardados, como se viu, não parecem estar dispostos a aventuras. Portanto, representam baixo risco. O perigo reside nas armas em mãos de civis, autorizadas e estimuladas por Bolsonaro. 

Para a montagem dessa tropa ele desrespeitou pareceres técnicos, retirou poderes de controle do Exército e da Polícia Federal. Mais do que triplicou a posse de revólveres, multiplicou por 10 o poder de fogo dos armamentos, a quantidade e letalidade das munições autorizadas para aqueles que possuem porte de armas, também facilitado. 

Muitos comparam o esquema miliciano bolsonarista ao que Hugo Chávez implantou na Venezuela. Mas Bolsonaro, felizmente, não tem a inteligência do líder bolivariano. Imita grosseiramente alguns fundamentos. Naufraga nas tentativas de aliciamento das Forças Armadas e da Justiça. Na política, come nas mãos do Centrão.

Por mais que force a barra, também não tem tido êxito na guerra cotidiana contra a imprensa, um dos eixos que impede golpismos e regimes de exceção. Já tentou calar a Folha de S. Paulo, demonizou o Estadão, O Globo e a revista Veja. Seus fiéis mais afoitos chegaram a plantar boatos de que, a exemplo do que Chávez fez com a RCTV, Bolsonaro não renovaria a concessão da TV Globo, que só vence depois de o mandato dele terminar.

Mas o presidente tenta as suas "venezueladas". Cancelou, ilegalmente, a participação da Folha em licitação pública, estimulou empresários a não anunciar no jornal, ameaçou ministros que dessem entrevistas. Editou Medida Provisória, que caducou, liberando empresas de publicarem seus balanços em jornais. Na semana passada, ao sancionar a nova Lei de Licitações, no mesmo 1º de abril, vetou a obrigação de publicação dos editais de compras, serviços e obras no Diário Oficial da União e em jornais de circulação nacional. 

A nova tentativa de asfixiar os veículos de imprensa que o incomodam coincide com a gracinha feita para a TV Record. A partir de amanhã, a TV Brasil, que Bolsonaro jurou vender ou fechar durante a campanha de 2018, começa a exibir os 242 capítulos de “Os Dez Mandamentos”, comprados do bispo pela bagatela de R$ 3,2 milhões. Para agradar aliados, até pagar caro por reprise vale. 

As armações bestiais de confronto com militares podem até servir para desviar o foco das graves crises sanitária, econômica e social, das quais o presidente se esforça para tirar o corpo fora. Mas tanto os movimentos diversionistas como as artimanhas para calar a imprensa são inúteis. No Brasil real, com média de mais de 3 mil mortos por dia pela Covid-19, hospitais em pane com doentes amontoados, medicamentos para intubação e oxigênio no limite, miséria e fome, Bolsonaro não terá replay. Ou nem termina a primeira temporada. 
Mary Zaidan

Brasil se radicaliza

Uma reforma ministerial feita nesta semana pelo presidente do Brasil, Jair Bolsonaro, para aplacar o descontentamento por sua péssima gestão da pandemia abriu uma crise de consequências imprevisíveis. A destituição do ministro da Defesa e a renúncia em uníssono da cúpula militar, algo inédito desde a restauração da democracia, aumentam a preocupação pelo rumo ao que o mandatário submete seu país no pior da pandemia.

A saída do ministro da Defesa e dos comandantes do Exército, Marinha e Aeronáutica é grave porque, sem dúvida, ocorreu pelas pressões constantes do mandatário ultradireitista. Bolsonaro, um capitão reformado que nunca escondeu sua admiração pela ditadura, pretendia que as Forças Armadas apoiassem suas batalhas políticas extremistas. A cúpula militar enviou um sinal de alarme sobre as atitudes autoritárias do presidente, que quer ser reeleito em 2022, ao renunciar antes de se submeter às suas exigências. É muito preocupante que, neste delicado momento sanitário e com uma economia em franca recessão, o novo titular da Defesa tenha estreado no cargo com uma exaltação pública do golpe de 1964.

Bolsonaro lotou seu Governo de militares, reformados e na ativa, o que coloca as Forças Armadas em uma complexa tessitura diante da qual estas foram frequentemente ambíguas. É preciso lembrar que são uma instituição de Estado e não partidária. A renúncia da cúpula militar deve ser vista como um gesto em defesa do papel constitucional da instituição. O Brasil não pode se permitir que os militares ameacem a democracia; é necessário exigir seu apego absoluto à lei e à Constituição. Por isso é urgente um maior distanciamento dos militares com os gestos autoritários de Bolsonaro, que corroem sistematicamente a democracia.

Essa crise militar chega, além disso, em um momento extremamente delicado para o Brasil, que na quarta-feira voltou a bater um recorde de mortos pelo coronavírus, com quase 3.900 em 24 horas. A nefasta gestão da pandemia por parte de Bolsonaro, contrariando a OMS e confrontando governadores, coloca seu país como epicentro mundial de contágios e mortes. É prioritário deter a expansão do vírus, cuidar dos doentes e acelerar a vacinação para empreender uma recuperação. A nomeação do general que deteve as infecções nos quartéis como novo comandante do Exército dá certa margem de esperança após dias agitados. Tudo o que não evitar distrações e oferecer solidez e certeza diante da pandemia e das penúrias econômicas aprofundará esta crise em que o presidente tem grande responsabilidade. Uma responsabilidade da qual os militares não estão isentos.

A paciência acabou

Um poderoso Coronel pernambucano recebeu no majestoso alpendre da Casa Grande, fiel aliado da oligarquia rural. Zé da Cacimba, muito querido, bom coração, distribuía com os moradores água potável, preciosidade para o sertão esturricado.

“Coroné, (patente da Guarda Nacional) tirando o chapéu em sinal de respeito e obediência, tô com um problema com o delegado do meu munícípio: tá perseguindo nossos eleitores e o homem é forte. Só sai de lá com ordem do Governador. A gente sabe que o sinhô manda nele…” Aí o Coronel interrompeu o suplicante: “Zé, se tu não sabe, aprende: ninguém governa Governador”. E convidou o amigo para tomar um café com o insuperável bolo de bacia da veneranda Dona Nininha.

A velha sabedoria também se aplicaria universalmente, ou seja, ninguém “preside” Presidente. Mas Bolsonaro não preside: desgoverna.


Nos últimos dias de março, nove encontros foram articulados pela cúpula do Congresso para intervir nos rumos do governo. As reuniões mobilizaram Presidentes do Senado, da Câmara, empresariado, intelectuais, e claro, “o mercado”, ente gasoso, sem endereço ou CNPJ, mas que funciona como termômetro das expectativas econômicas. Só que desta vez, somaram-se atores que efetivamente botam a mão na debilitada economia real. São os que produzem bens e serviços para compradores cada dia mais pobres, respaldados no sólido documento com 2.000 signatários que sabem o que dizem.

É um “movimento cívico”, disse o cientista político Luiz Felipe d’Avila para ocupar “o vácuo de poder” e “um alerta de que a sociedade mais do que perdeu a paciência, está perdendo a confiança no governo”.

O Presidente da Câmara, Arthur Lyra, ameaçou: “está apertando um sinal amarelo para quem quiser enxergar; Os remédios políticos do Parlamento são todos amargos; alguns, fatais”. O “Centrâo”, canta Ângela Maria, “tem o destino da lua que a todos encanta e não é de ninguém”.

Refém do “Centrão”, Bolsonaro formou o “Ministério da Obediência”; levou uma enquadrada do compromisso institucional das Forças Armadas com a democracia; engoliu, contrariado, a saída de Ernesto Araújo, discípulo de Olavo de Carvalho e Steve Bannon, expoentes do Tradicionalismo, ideologia bizarra que alimenta a autocracia populista da extrema direita.

Os erros estratégicos do Presidente decorrem do pecado original: completa inaptidão para governar e vontade ditatorial incontrolável. Bolsonaro é governo e oposição ao mesmo tempo. Um paradoxo para além da figura de linguagem: é perigosamente real. Ou muda, o que é improvável, ou joga o país numa grave crise institucional o que é indesejável.

O Testamento de Judas na pandemia

“Eu sei que alguém descobre / Falhas no meu testamento”
Joaquim Apolinário. Testamento do Judas. 1886. (*)

Neste sábado de aleluia, Judas Iscariotes, ministro das Finanças do Inferno, visitou países de cinco continentes, entre eles a America First e o Brasil abaixo de tudo. Aqui viu bonecos de pano com a cara do genocida pendurados em postes das cidades. Fugiu ao se deparar com 330 mil mortos pelo coronavirus. Passou antes por Manaus. No bairro de Aparecida, sofreu a tradicional malhação e se vingou deixando seu testamento em versos psicografado pelo irreverente e desabusado Edilson, o Gaguinho, gênio da poesia popular. Tirem as crianças da sala. Ei-lo aqui.


 

1
Sou Judas Iscariotes / Neguei máscara, vacina.
Dei cloroquina pra Cristo / Olhem só a minha sina.

2
Por isso sou malhado / com porrada na cacunda
No sábado de Aleluia vou / moer vidro com a bunda.

3
Mas antes de me ferrarem / e de me enforcar outra vez
Eis aqui o inventário / do que eu lego pra vocês.

4
Ao Trump bundão eu deixo / o túmulo do faraó
E a espada do centurião / pra enfiar no fiofó.

5
Pra atormentar sua vida / deixo o discurso do Lula.
Ao mentiroso Jair Messias / Burro como uma mula

6
Deixo o exemplo do Temer / ao vice Mourão Mourão
Catuca por baixo que ELE cai / com impeachment e lockdown.

7
Deixo ao Dudu, o 03 / a embaixada em Mianmar
Pra ele fritar hamburger / no Burger King de lá

8
A Carlucho, o 02 da fake news / que escorrega no quiabo
Deixo a máscara que não usa / para enfiar no seu rabo.

9
As trintas moedas repasso / ao 01 da Rachadinha
Mansão, chocolate, iate / Queiroz deu sua lavadinha

10
Ao ministério do Zero Zero / escolhido no capricho
As ratazanas do Centrão / jogo na lata do lixo.

11
Lego armas, vacina não/ à familícia e ao gado
Tudo pau de amarrar égua / com o orifício corrugado

12
O Posto Ipiranga vazio / que nem pastel do Beiçola
Paulo Guedes nega tudo / e põe no PIB meia sola.

13
Ernesto Araújo, seu pária / Que merda de chanceler!
Te deixo spray de Israel / Ninguém te ama nem te quer.

14
Ao obediente Pazzuelo / Lego o mapa do Amapá
O Zé Gotinha com fuzil / no dia D na hora H.

15
Para o Marcelo Quidroga / que não sabe o que quer!
Deixo a vachina da China / pra ele virar jacaré.

16
A corda que me enforquei / e a tripa cagaiteira
Lego ambas pra Damares / se pendurar na goiabeira.

17
Ao “imprecionante” Weintraub / de Kafta um grande fã
Deixo cannabis no campus / e as balbúrdias do Satã.

18
Ao ministro Milton Ribeiro, / da palmatória defensor.
De pedagogo oprimido / a “paudagogo” opressor.

19
Nem tudo que reluz é Moro / mas cai tudo que balança
Ao “conje” suspeito eu deixo / a Edith Piá de herança

20
Ao incendiário da Amazônia / ao Salles abridor de porteira
Deixo o fogo do inferno / Pra ele arder na caldeira

21
Ao general Heleno de Troia / Que gosta de um tititi
Deixo toda a lambança / Cometida no Haiti.

22
À senadora Kátia Abreu / Que ficou no ora veja
A mão que te afaga / É a mema que te apedreja.

23
Tou certo ou tou errado? / Para a Regina Porcina,
Que foi sem nunca ter sido / Deixo um trono na latrina.

24
Lego a Amargo dos Palmares / Pra aprender a ser gente,
Um pixaim de pentelho / Na careca reluzente.

25
Ao garantista Kássio Nunes / Que pensa que a lei destrincha
Deixo-lhe o Gilmar Mendes / Pra chamar ele na chincha.

26
Ao Procurador Augusto Aras / Deixo-lhe muitas gavetas
Que nunca serão abertas / Pra esconder do Bozo as tretas

27
Palloci minh’alma gêmea / Teu destino é como o meu
Pra tirar o loló da seringa, / Traíste mais do que eu.

28
Ao bode libidinoso / Metido num trumbico
Defendo a Isa Penna / Até o Cury fazer bico

29
Para Wilson Lima governador / Lego a operação sangria,
Com dinheiro da saúde,/ Não se faz patifaria.

30
De mãos dadas com o povo? / Ventiladores de hospital
Comprados em adega de vinho / É coveiro em funeral.

31
Lá onde perdi as botas / Ao mulato inzoneiro
Lego o nojo desses pulhas / E a crença no brasileiro.

32
Agora eu volto pro inferno / lá tá melhor do que aqui
Neste fim de Quaresma / Deixo-vos o Taquiprati.
José Ribamar Bessa Freire

(*) O potiguar Joaquim Apolinário de Medeiros (1852-1919) fez um testamento do Judas em 1886, preservado na memória da mãe do Câmara Cascudo, que transmitiu oralmente os versos para seu filho. Trechos foram publicados por ele em “Vaqueiros e Cantadores”. Rio. Ediouro. 200 (pgs 65-66).