sexta-feira, 8 de março de 2024
O que está havendo com o mundo?
Apesar de investigado e provavelmente condenado, Trump aparece como favorito nas eleições americanas. Milei foi eleito na Argentina e continua cometendo erros sobretudo contra a população. Em El Salvador, o recém eleito Bukele, o presidente que se fantasia de jovem, decreta a prisão em massa de supostos milicianos sem se preocupar em envolver nisso pessoas inocentes. E não estou incluindo nem Putin, nem Zelensky e nem Netanyahu. No Brasil, depois das opiniões sensatas sobre o conflito em Gaza, Lula vê sua popularidade entre os evangélicos despencar mais ainda.
Se deixarmos, o Brasil também vai continuar sua trajetória rumo ao fascismo através do seu Congresso conservador e das forças reacionárias que ressurgiram depois do advento do bolsonarismo. Eu até insisto em não chamar de bolsonarismo. Bolsonaro não tem estofo para criar uma ideologia. Fascismo e extrema direita são termos mais apropriados e que apareceram de vez com o favorecimento, aí sim, de Bolsonaro. Tirando alguns países da Europa do norte, e assim mesmo são poucos, e outros em que o nível de desenvolvimento humano já chegou a um bom padrão, são poucos os países que colocam a população trabalhadora como prioridade. “Farinha pouca, meu pirão primeiro” é o ditado mais usado.
Temos a China como contraponto desta situação, mas com uma realidade bem diferente da nossa e com aquela população toda impossível exigir um governo com mais liberdade. Aliás, onde essa liberdade está sendo usada de modo democrático e por todos? É complicada a situação do mundo. Afora as guerras horríveis que vemos com o apoio dos países produtores de armas, assistimos também a espetáculos dantescos nos países bem pobres do Caribe, da América Latina ou da África em que a violência, a ausência do Estado e o abandono do resto do mundo agravam terrivelmente a situação. O que acontece no Haiti, no Sudão, em Gaza mesmo com o silêncio do mundo me deixa perplexo.
Claro que guerras sempre existiram e o ser humano não passou a ser perverso agora. O que mudou foi a comunicação. Ficamos sabendo de tudo imediatamente e sem filtro. E isso também espanta porque em tantos anos, usando como exemplo a minha trajetória de vida, muito pouca coisa mudou. Os ricos continuam mais ricos, os poderosos mais poderosos e explorando os mais fracos, as guerras e a fome matando, a religião oprimindo as pessoas e, a cereja do bolo, as big techs hoje se dando bem e estabelecendo novos padrões de comunicação, entretenimento e conhecimento.
Como sempre, o que sobra é para poucos e o que interessa é a ignorância disfarçada de informação para muitos. Não é por menos que as fake news se estabeleceram com tanto sucesso. A mentira tem mais sabor, é mais glamurosa e nos deixa livre para inventar o que quisermos. A verdade é insossa, apesar de real. Não interessa aos poderosos que ela exista. Espalhar mentiras virou o objetivo dessa gente no mundo. E que mundo este nosso se tornou? Um mundo de mentiras em que a verdade vai acabar determinando o prazo de validade. Esse não há mentira que transforme. Do jeito que está vai sobrar pouco tempo.
Se deixarmos, o Brasil também vai continuar sua trajetória rumo ao fascismo através do seu Congresso conservador e das forças reacionárias que ressurgiram depois do advento do bolsonarismo. Eu até insisto em não chamar de bolsonarismo. Bolsonaro não tem estofo para criar uma ideologia. Fascismo e extrema direita são termos mais apropriados e que apareceram de vez com o favorecimento, aí sim, de Bolsonaro. Tirando alguns países da Europa do norte, e assim mesmo são poucos, e outros em que o nível de desenvolvimento humano já chegou a um bom padrão, são poucos os países que colocam a população trabalhadora como prioridade. “Farinha pouca, meu pirão primeiro” é o ditado mais usado.
Temos a China como contraponto desta situação, mas com uma realidade bem diferente da nossa e com aquela população toda impossível exigir um governo com mais liberdade. Aliás, onde essa liberdade está sendo usada de modo democrático e por todos? É complicada a situação do mundo. Afora as guerras horríveis que vemos com o apoio dos países produtores de armas, assistimos também a espetáculos dantescos nos países bem pobres do Caribe, da América Latina ou da África em que a violência, a ausência do Estado e o abandono do resto do mundo agravam terrivelmente a situação. O que acontece no Haiti, no Sudão, em Gaza mesmo com o silêncio do mundo me deixa perplexo.
Claro que guerras sempre existiram e o ser humano não passou a ser perverso agora. O que mudou foi a comunicação. Ficamos sabendo de tudo imediatamente e sem filtro. E isso também espanta porque em tantos anos, usando como exemplo a minha trajetória de vida, muito pouca coisa mudou. Os ricos continuam mais ricos, os poderosos mais poderosos e explorando os mais fracos, as guerras e a fome matando, a religião oprimindo as pessoas e, a cereja do bolo, as big techs hoje se dando bem e estabelecendo novos padrões de comunicação, entretenimento e conhecimento.
Como sempre, o que sobra é para poucos e o que interessa é a ignorância disfarçada de informação para muitos. Não é por menos que as fake news se estabeleceram com tanto sucesso. A mentira tem mais sabor, é mais glamurosa e nos deixa livre para inventar o que quisermos. A verdade é insossa, apesar de real. Não interessa aos poderosos que ela exista. Espalhar mentiras virou o objetivo dessa gente no mundo. E que mundo este nosso se tornou? Um mundo de mentiras em que a verdade vai acabar determinando o prazo de validade. Esse não há mentira que transforme. Do jeito que está vai sobrar pouco tempo.
Vita brevis?
Não dispomos de pouco tempo, mas desperdiçamos muito. A vida é longa o bastante e nos foi generosamente concedida para a execução de ações as mais importantes, caso toda ela seja bem aplicada. Porém, quando se dilui no luxo e na preguiça, quando não é despendida em nada de bom, somente então, compelidos pela necessidade derradeira, aquela que não havíamos percebido passar, sentimos que já passou. É assim que acontece: não recebemos uma vida breve, mas a fazemos; dela não somos carentes, mas pródigos. Tal como amplos e magníficos recursos, quando vêm para um mau detentor, são dissipados num instante, ao passo que, por mais modestos que sejam, se entregues a um bom guardião, crescem pelo uso que se faz deles, assim também a nossa existência é bastante extensa para quem dela bem dispõe.
Sêneca, "Sobre a brevidade da vida"
Sêneca, "Sobre a brevidade da vida"
Varsóvia e Gaza: 80 anos depois, dois guetos e o mesmo nazismo
O judeu assassinado e o judeu assassino. Oitenta anos separam essa brutal metamorfose de um povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza. A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade.
A impensável conversão de Israel ao horror nazista tem agora um pretexto de sangue e terror. O silêncio da manhã ensolarada de terça-feira, 7 de outubro, foi quebrado pelo silvo de aproximadamente três mil foguetes disparados de Gaza pelo grupo militar islâmico Hamas sobre a fronteira sul e cidades próximas de Israel, incluindo a capital, Tel Aviv, apenas 70 km ao norte. Eram tantos foguetes no ar que o poderoso “Domo de Ferro”, o sistema antimíssil de defesa de Israel que detecta alvos a até 70 km, ficou sobrecarregado e impotente diante de tantas ameaças desabando dos céus.
O pior viria a seguir. Os foguetes ainda fumegavam no ar quando um punhado de 1.500 homens da brigada Al-Qassam, o braço armado e terrorista do Hamas, ultrapassou as cercas da fronteira com tratores, motos e parapentes com duplas armadas de metralhadoras para o maior e mais brutal ataque ao território de Israel desde sua fundação, em 1948. Em poucas horas, em ação abominável, os terroristas massacraram quase 1.200 homens, mulheres e idosos, incluindo 33 crianças, numa operação que tinha como alvo indefesos civis israelenses, não militares. Quando retornaram a Gaza, os atacantes do Hamas levaram 240 reféns, incluindo 40 crianças. Foi o maior atentado terrorista no mundo desde o 11 de setembro de 2001, quando 19 membros da Al-Qaeda de Bin Laden sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos – atingindo entre eles as torres gêmeas de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque. Naquele dia morreram 2.996 pessoas em quatro ataques, incluindo os 19 terroristas.
A ação da brigada assassina do Hamas destravou a linguagem mais encanzinada da elite governante de Israel, nivelando no fundo do poço a reação desproporcional de quem se move pela vingança, sem arrefecer sua fúria mesmo diante de bebês, crianças, mulheres e idosos palestinos. Líderes notórios máximos de Israel, incluindo generais, jornalistas, celebridades e destaques das redes sociais, se lambuzaram na defesa da punição coletiva em massa. Um constrangedor surto de desmemória para um povo que sempre lembra ao mundo a brutalidade de que foi vítima na barbárie do Holocausto nazista.
O primeiro ministro Benjamin Netanyahu declarou no mesmo dia do ataque um “estado de guerra” em Israel, e esbravejou com a convicção de quem não se envergonha de anunciar seu ímpeto homicida: “Vamos transformar Gaza em uma ilha deserta e mudar o Oriente Médio. O que faremos com nossos inimigos nos próximos dias repercutirá entre eles por gerações”. Rápido no gatilho, o major-general Yoav Galant, ministro da Defesa de Israel, ecoou o chefe anunciando o inferno iminente: “Estamos lutando contra animais humanos, e estamos agindo de acordo. Vamos impor um cerco completo a Gaza. Não haverá eletricidade, nem alimentos, nem água, nem combustível, tudo será cortado”. A mulher de Netanyahu, Sara, embora psicóloga, completou o desatino numa entrevista de rádio em 10 de outubro, 72 horas após o ataque: “Não os chamo de animais humanos porque isso seria um insulto aos animais”. Tsaji Hanegbi, conselheiro de Segurança Nacional, fez uma distinção para defender os bichinhos: “Dizem que terroristas são animais. Mas, quem tem um cão em casa, sabe que eles não são animais. São monstros”.
Yinon Magal, apresentadora do Canal 14 de direita em Israel, trovejou na sua TV, uma semana após o ataque:“Apaguem Gaza. Não deixem ninguém lá”. Na mesma emissora, um especialista militar de um instituto associado à Universidade de Tel Aviv, Eliyhau Yossian, insistiu: “Não existem inocentes em Gaza, apenas dois milhões de terroristas”. O ministro de Segurança Nacional e líder de um partido de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir, repetiu na TV o mantra que extravaza o terror dos atacantes: “Qualquer pessoa que apoia o Hamas deve ser eliminada”.
Até o presidente Isaac Herzog, considerado a face moderada do governo mais extremista e ultradireita da curta história de Israel, perdeu a compostura e rotulou toda a população de mais de 2 milhões da Faixa de Gaza como terrorista, dando ao Hamas uma dimensão que ele não tem: “É uma nação inteira lá fora que é responsável. Não é verdade essa retórica de que os civis de Gaza não sabiam, não se envolveram. Absolutamente, não é verdade. Eles poderiam ter se levantado, poderiam ter lutado contra aquele regime maligno que assumiu o controle da Gaza”, protestou Herzog.
O desatino que afundou a cúpula governante de Israel na ideia de “punição coletiva, sem exceções” foi resumido, sem dó, por um dos militares mais influentes do país. Giora Eiland, 71 anos, hoje na reserva, é um paraquedista que chegou ao posto de general-brigadeiro e foi chefe em 2004, no governo linha dura de Ariel Sharon, do Conselho de Segurança Nacional. “Israel deve criar um desastre humanitário sem precedentes em Gaza. Somente a mobilização de dezenas de milhares e o clamor da comunidade internacional criarão a alavanca para que Gaza fique sem o Hamas ou sem pessoas. Estamos em uma guerra existencial”. A elite governante de Israel assumiu, em poucas horas, o discurso do extermínio do povo palestino. O Fake Repórter, um equilibrado grupo israelense que monitora a desinformação e o ódio, anotou apenas 16 apelos para que Gaza fosse “achatada”, “apagada” ou “destruída” nos 45 dias anteriores a 7 de outubro. Depois do ataque terrorista do Hamas, o sentimento de fúria varreu o país. Em poucas horas, o Twitter (atual X) foi invadido 18 mil vezes por expressões genocidas pedindo o apagamento, a destruição, o achatamento de Gaza e seu povo.
Consumado o ataque de 7 de outubro, as duas nações militarmente mais poderosas do Ocidente, Estados Unidos e Reino Unido, se apressaram em dar um “apoio incondicional”, sem meios-tons e sem ressalvas, a qualquer reação de Israel. O presidente Joe Biden e o premiê Rishi Sunak fizeram questão de ir pessoalmente a Tel Aviv para justificar uma irrestrita licença para matar – ao melhor estilo 007 de James Bond – aos militares de Netanyahu: “Israel tem o direito de se defender”, repetiram o americano e o britânico, sem esclarecer se isso incluiria o direito israelense de chacinar populações civis, mulheres e crianças e bombardear hospitais, escolas, ambulâncias e mesquitas.
Resultado sangrento dessa barbaridade retórica de Washington e Londres: em quase quatro meses, até 16 de fevereiro (dia 133 do conflito), Israel usou e abusou de seu matador “direito de defesa” para liquidar 27.238 mil palestinos, incluindo 11.500 crianças e bebês e 8 mil mulheres – um total cerca de 24 vezes maior do que os israelenses mortos. E 66.452 mil palestinos foram feridos, incluindo mais de 8,6 mil crianças e 6,3 mil mulheres – sete vezes mais do que no lado israelense (8.730 feridos). A lista inicial de 1.405 vítimas judias foi revisada para baixo, para 1.139 mortos, por dados consolidados do governo de Gaza, do Exército de Israel, do Crescente Vermelho, do Ministério da Saúde da Cisjordânia e da rede Al Jazeera. O porta-voz da chancelaria de Israel, Lior Haiat, reconheceu em 10 de novembro que o número caiu porque muitos corpos, não identificados, foram incluídos erradamente na contagem de israelenses mortos, mas descobriram depois que eram de “terroristas”.
A curva desproporcional da violência que mata muito mais palestinos fica evidente num quadro montado pelo jornal O Globo para o período de 55 dias entre 7 de outubro, data do ataque, e 1º de novembro. A contagem começa com uma disparidade entre mortos árabes (426) e judeus (677), equilibra rapidamente quatro dias depois (1.126 palestinos e 1.200 israelenses), vira dois dias mais tarde (1.943 árabes mortos contra 1.300), e dispara numa curva ascendente até o primeiro dia de outubro (8.796 contra 1.402, na lista depois rebaixada para 1.200). O detalhe intrigante é que o total de mortos de Israel estabiliza seis dias após o ataque e mantém a regularidade daí em diante, enquanto as vítimas palestinas disparam geometricamente, dia a dia.
A estatística do matadouro produzido por Israel em Gaza se renova e aumenta a cada hora assombrada por 200 ataques aéreos, como na madrugada de segunda-feira, 4 de dezembro. Nos primeiros seis dias de guerra, de acordo com o Exército israelense, foram jogadas em Gaza 42 bombas a cada 60 minutos. Segundo o escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (UNOCHA, na sigla em inglês), esse descomunal poder de fogo mata, por hora, 15 pessoas (seis delas crianças), fere outros 35 indivíduos e destrói 12 prédios. Já Agência para Refugiados Palestinos das Nações Unidas (UNRWA, na sigla em inglês), informou em 6 de novembro que um mês de guerra registrava, a cada 10 minutos, a morte de uma criança e ferimentos em outras duas. No início de dezembro, fontes da ONU calculavam mais de 360 mil residências (60% das moradias de Gaza) destruídas ou danificadas pelas dezenas de bombardeios aéreos diários, que atingiram 386 escolas, 122 ambulâncias, 56 mesquitas destruídas e outras 136 danificadas (matando 53 imãs e pregadores), deixando fora de ação 26 dos 35 hospitais de Gaza. Onze padarias foram demolidas, agravando o drama da fome numa população já privada de luz, de água e de combustível.
A impensável conversão de Israel ao horror nazista tem agora um pretexto de sangue e terror. O silêncio da manhã ensolarada de terça-feira, 7 de outubro, foi quebrado pelo silvo de aproximadamente três mil foguetes disparados de Gaza pelo grupo militar islâmico Hamas sobre a fronteira sul e cidades próximas de Israel, incluindo a capital, Tel Aviv, apenas 70 km ao norte. Eram tantos foguetes no ar que o poderoso “Domo de Ferro”, o sistema antimíssil de defesa de Israel que detecta alvos a até 70 km, ficou sobrecarregado e impotente diante de tantas ameaças desabando dos céus.
O pior viria a seguir. Os foguetes ainda fumegavam no ar quando um punhado de 1.500 homens da brigada Al-Qassam, o braço armado e terrorista do Hamas, ultrapassou as cercas da fronteira com tratores, motos e parapentes com duplas armadas de metralhadoras para o maior e mais brutal ataque ao território de Israel desde sua fundação, em 1948. Em poucas horas, em ação abominável, os terroristas massacraram quase 1.200 homens, mulheres e idosos, incluindo 33 crianças, numa operação que tinha como alvo indefesos civis israelenses, não militares. Quando retornaram a Gaza, os atacantes do Hamas levaram 240 reféns, incluindo 40 crianças. Foi o maior atentado terrorista no mundo desde o 11 de setembro de 2001, quando 19 membros da Al-Qaeda de Bin Laden sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos – atingindo entre eles as torres gêmeas de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque. Naquele dia morreram 2.996 pessoas em quatro ataques, incluindo os 19 terroristas.
A ação da brigada assassina do Hamas destravou a linguagem mais encanzinada da elite governante de Israel, nivelando no fundo do poço a reação desproporcional de quem se move pela vingança, sem arrefecer sua fúria mesmo diante de bebês, crianças, mulheres e idosos palestinos. Líderes notórios máximos de Israel, incluindo generais, jornalistas, celebridades e destaques das redes sociais, se lambuzaram na defesa da punição coletiva em massa. Um constrangedor surto de desmemória para um povo que sempre lembra ao mundo a brutalidade de que foi vítima na barbárie do Holocausto nazista.
O primeiro ministro Benjamin Netanyahu declarou no mesmo dia do ataque um “estado de guerra” em Israel, e esbravejou com a convicção de quem não se envergonha de anunciar seu ímpeto homicida: “Vamos transformar Gaza em uma ilha deserta e mudar o Oriente Médio. O que faremos com nossos inimigos nos próximos dias repercutirá entre eles por gerações”. Rápido no gatilho, o major-general Yoav Galant, ministro da Defesa de Israel, ecoou o chefe anunciando o inferno iminente: “Estamos lutando contra animais humanos, e estamos agindo de acordo. Vamos impor um cerco completo a Gaza. Não haverá eletricidade, nem alimentos, nem água, nem combustível, tudo será cortado”. A mulher de Netanyahu, Sara, embora psicóloga, completou o desatino numa entrevista de rádio em 10 de outubro, 72 horas após o ataque: “Não os chamo de animais humanos porque isso seria um insulto aos animais”. Tsaji Hanegbi, conselheiro de Segurança Nacional, fez uma distinção para defender os bichinhos: “Dizem que terroristas são animais. Mas, quem tem um cão em casa, sabe que eles não são animais. São monstros”.
Yinon Magal, apresentadora do Canal 14 de direita em Israel, trovejou na sua TV, uma semana após o ataque:“Apaguem Gaza. Não deixem ninguém lá”. Na mesma emissora, um especialista militar de um instituto associado à Universidade de Tel Aviv, Eliyhau Yossian, insistiu: “Não existem inocentes em Gaza, apenas dois milhões de terroristas”. O ministro de Segurança Nacional e líder de um partido de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir, repetiu na TV o mantra que extravaza o terror dos atacantes: “Qualquer pessoa que apoia o Hamas deve ser eliminada”.
Até o presidente Isaac Herzog, considerado a face moderada do governo mais extremista e ultradireita da curta história de Israel, perdeu a compostura e rotulou toda a população de mais de 2 milhões da Faixa de Gaza como terrorista, dando ao Hamas uma dimensão que ele não tem: “É uma nação inteira lá fora que é responsável. Não é verdade essa retórica de que os civis de Gaza não sabiam, não se envolveram. Absolutamente, não é verdade. Eles poderiam ter se levantado, poderiam ter lutado contra aquele regime maligno que assumiu o controle da Gaza”, protestou Herzog.
O desatino que afundou a cúpula governante de Israel na ideia de “punição coletiva, sem exceções” foi resumido, sem dó, por um dos militares mais influentes do país. Giora Eiland, 71 anos, hoje na reserva, é um paraquedista que chegou ao posto de general-brigadeiro e foi chefe em 2004, no governo linha dura de Ariel Sharon, do Conselho de Segurança Nacional. “Israel deve criar um desastre humanitário sem precedentes em Gaza. Somente a mobilização de dezenas de milhares e o clamor da comunidade internacional criarão a alavanca para que Gaza fique sem o Hamas ou sem pessoas. Estamos em uma guerra existencial”. A elite governante de Israel assumiu, em poucas horas, o discurso do extermínio do povo palestino. O Fake Repórter, um equilibrado grupo israelense que monitora a desinformação e o ódio, anotou apenas 16 apelos para que Gaza fosse “achatada”, “apagada” ou “destruída” nos 45 dias anteriores a 7 de outubro. Depois do ataque terrorista do Hamas, o sentimento de fúria varreu o país. Em poucas horas, o Twitter (atual X) foi invadido 18 mil vezes por expressões genocidas pedindo o apagamento, a destruição, o achatamento de Gaza e seu povo.
Consumado o ataque de 7 de outubro, as duas nações militarmente mais poderosas do Ocidente, Estados Unidos e Reino Unido, se apressaram em dar um “apoio incondicional”, sem meios-tons e sem ressalvas, a qualquer reação de Israel. O presidente Joe Biden e o premiê Rishi Sunak fizeram questão de ir pessoalmente a Tel Aviv para justificar uma irrestrita licença para matar – ao melhor estilo 007 de James Bond – aos militares de Netanyahu: “Israel tem o direito de se defender”, repetiram o americano e o britânico, sem esclarecer se isso incluiria o direito israelense de chacinar populações civis, mulheres e crianças e bombardear hospitais, escolas, ambulâncias e mesquitas.
Resultado sangrento dessa barbaridade retórica de Washington e Londres: em quase quatro meses, até 16 de fevereiro (dia 133 do conflito), Israel usou e abusou de seu matador “direito de defesa” para liquidar 27.238 mil palestinos, incluindo 11.500 crianças e bebês e 8 mil mulheres – um total cerca de 24 vezes maior do que os israelenses mortos. E 66.452 mil palestinos foram feridos, incluindo mais de 8,6 mil crianças e 6,3 mil mulheres – sete vezes mais do que no lado israelense (8.730 feridos). A lista inicial de 1.405 vítimas judias foi revisada para baixo, para 1.139 mortos, por dados consolidados do governo de Gaza, do Exército de Israel, do Crescente Vermelho, do Ministério da Saúde da Cisjordânia e da rede Al Jazeera. O porta-voz da chancelaria de Israel, Lior Haiat, reconheceu em 10 de novembro que o número caiu porque muitos corpos, não identificados, foram incluídos erradamente na contagem de israelenses mortos, mas descobriram depois que eram de “terroristas”.
A curva desproporcional da violência que mata muito mais palestinos fica evidente num quadro montado pelo jornal O Globo para o período de 55 dias entre 7 de outubro, data do ataque, e 1º de novembro. A contagem começa com uma disparidade entre mortos árabes (426) e judeus (677), equilibra rapidamente quatro dias depois (1.126 palestinos e 1.200 israelenses), vira dois dias mais tarde (1.943 árabes mortos contra 1.300), e dispara numa curva ascendente até o primeiro dia de outubro (8.796 contra 1.402, na lista depois rebaixada para 1.200). O detalhe intrigante é que o total de mortos de Israel estabiliza seis dias após o ataque e mantém a regularidade daí em diante, enquanto as vítimas palestinas disparam geometricamente, dia a dia.
A estatística do matadouro produzido por Israel em Gaza se renova e aumenta a cada hora assombrada por 200 ataques aéreos, como na madrugada de segunda-feira, 4 de dezembro. Nos primeiros seis dias de guerra, de acordo com o Exército israelense, foram jogadas em Gaza 42 bombas a cada 60 minutos. Segundo o escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (UNOCHA, na sigla em inglês), esse descomunal poder de fogo mata, por hora, 15 pessoas (seis delas crianças), fere outros 35 indivíduos e destrói 12 prédios. Já Agência para Refugiados Palestinos das Nações Unidas (UNRWA, na sigla em inglês), informou em 6 de novembro que um mês de guerra registrava, a cada 10 minutos, a morte de uma criança e ferimentos em outras duas. No início de dezembro, fontes da ONU calculavam mais de 360 mil residências (60% das moradias de Gaza) destruídas ou danificadas pelas dezenas de bombardeios aéreos diários, que atingiram 386 escolas, 122 ambulâncias, 56 mesquitas destruídas e outras 136 danificadas (matando 53 imãs e pregadores), deixando fora de ação 26 dos 35 hospitais de Gaza. Onze padarias foram demolidas, agravando o drama da fome numa população já privada de luz, de água e de combustível.
Luiz Cláudio Cunha (íntegra do artigo pode ser lida aqui)
Os sistemas de defesa no caos climático
Nem as forças armadas escaparão da necessidade de se prepararem para as transformações do clima decorrentes do aquecimento global. Na verdade, principalmente elas precisarão correr para se adaptarem ao caos climático que avança a passos largos mundo afora.
Segundo a revista Diálogos Soberania e Clima (edição especial V3. Nº1 2024), os sistemas de defesa atuais sofrerão impactos de desastres naturais e de seus efeitos, da mesma forma que outros setores públicos e privados, ou com maior intensidade.
Para se ter uma ideia, segundo um relatório do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, cerca de metade das 3.500 instalações de defesa norte-americanas relataram já terem sofrido algum efeito adverso de episódios climáticos como ventos fortes, inundações, incêndios florestais ou secas intensas.
Essa vulnerabilidade física (e da adequação tecnológica) das instalações e dos equipamentos de defesa diante dos extremos climáticos será, sem dúvida, um dos aspectos com maior relevância no planejamento de investimentos e atividades do setor nos próximos anos e já consta dos documentos oficiais de defesa de diversos países, inclusive no Brasil.
A mudança climática afetará também a própria capacidade operacional militar em assuntos como comunicações, eficiência de armamentos, mobilidade aérea, marítima e terrestre, entre outros itens da atividade cotidiana típica das missões de defesa, incluídas aqui as operações de defesa civil para emergências em casos de desastres ambientais, cada vez mais frequentes, intensos e imprevisíveis.
No entanto, o desafio mais importante que as mudanças climáticas vão impor aos sistemas de defesa é o aumento da ameaça às diferentes soberanias nacionais do modo como as conhecemos hoje. A pressão interna e externa, resultante dos desastres climáticos, sobre os Estados nacionais poderá ampliar conflitos entre países e a desestabilização de governos, segundo a revista Diálogos Soberania e Clima.
Os fatores envolvem a disputa por terras agricultáveis, fontes de energia, água, alimentos, locais de moradia, bem como migrações em massa, epidemias, fuga de secas, nevascas, ondas de calor ou frio e inundações, por exemplo. Tudo isso implica em deslocamentos de populações, mas também de governos, empresas e infraestruturas (e consequentemente de fronteiras…).
Nesse cenário, os principais aliados das forças armadas serão os organismos multilaterais, os órgãos de diplomacia e a sociedade civil, que funcionarão como amortecedores, negociadores e mediadores dos interesses geopolíticos sujeitos às adaptações compulsórias a uma realidade que ainda sequer conhecemos.
Segundo a revista Diálogos Soberania e Clima (edição especial V3. Nº1 2024), os sistemas de defesa atuais sofrerão impactos de desastres naturais e de seus efeitos, da mesma forma que outros setores públicos e privados, ou com maior intensidade.
Para se ter uma ideia, segundo um relatório do Departamento de Defesa dos Estados Unidos, cerca de metade das 3.500 instalações de defesa norte-americanas relataram já terem sofrido algum efeito adverso de episódios climáticos como ventos fortes, inundações, incêndios florestais ou secas intensas.
Essa vulnerabilidade física (e da adequação tecnológica) das instalações e dos equipamentos de defesa diante dos extremos climáticos será, sem dúvida, um dos aspectos com maior relevância no planejamento de investimentos e atividades do setor nos próximos anos e já consta dos documentos oficiais de defesa de diversos países, inclusive no Brasil.
A mudança climática afetará também a própria capacidade operacional militar em assuntos como comunicações, eficiência de armamentos, mobilidade aérea, marítima e terrestre, entre outros itens da atividade cotidiana típica das missões de defesa, incluídas aqui as operações de defesa civil para emergências em casos de desastres ambientais, cada vez mais frequentes, intensos e imprevisíveis.
No entanto, o desafio mais importante que as mudanças climáticas vão impor aos sistemas de defesa é o aumento da ameaça às diferentes soberanias nacionais do modo como as conhecemos hoje. A pressão interna e externa, resultante dos desastres climáticos, sobre os Estados nacionais poderá ampliar conflitos entre países e a desestabilização de governos, segundo a revista Diálogos Soberania e Clima.
Os fatores envolvem a disputa por terras agricultáveis, fontes de energia, água, alimentos, locais de moradia, bem como migrações em massa, epidemias, fuga de secas, nevascas, ondas de calor ou frio e inundações, por exemplo. Tudo isso implica em deslocamentos de populações, mas também de governos, empresas e infraestruturas (e consequentemente de fronteiras…).
Nesse cenário, os principais aliados das forças armadas serão os organismos multilaterais, os órgãos de diplomacia e a sociedade civil, que funcionarão como amortecedores, negociadores e mediadores dos interesses geopolíticos sujeitos às adaptações compulsórias a uma realidade que ainda sequer conhecemos.
As chacinas de mercado
“Viu só? Tá pensando o quê? Batemos o recorde de mortes em São Paulo; não tem Rio, não tem Pernambuco, não tem pra ninguém, meu amigo. Foi o maior índice de homicídios em cinco anos. Cinco mil e trezentas pessoas entre janeiro e dezembro. Os jornais ficam dizendo que há uma crueldade banalizada por nós. Que é isso, ‘mermão’?
‘Nonada’ – não há mais a ‘crueldade’. As novas chacinas de São Paulo estão além do bem e do mal. Há crueldade num abatedouro de frangos? Não. Os frangos são decapitados por diligentes carrascos de branco, limpinhos, como num Auschwitz higiênico. Nem nos matadouros há crueldade, apenas operários mal pagos entre mugidos tristes. O mesmo nas chacinas. Ninguém sente nada. E nós nem nos preocupamos em tapar as pistas. Sabe por quê? Porque estávamos cumprindo tarefas, cuidando de nossos interesses. Fazemos parte de uma empresa escura, invisível, mas que progride muito nas periferias. O que vocês chamam de ‘crime organizado’ é organizado mesmo. Não é aquela criminalidade babaca do Rio e outros Estados primitivos. O dinheiro que o tráfico arrecada aqui, nesta cidade tão rica, é aplicado com seriedade em bens de capital e em rentáveis investimentos. Nossos chefes são sérios, previdentes. Eles investem muito em postos de gasolina adulterada que rende mais, claro, eles têm motéis meio escrotos, não são ‘Bahamas’ ou algo assim, mas a tigrada tem onde trepar numa boa, têm não digo supermercados, mas muitos mercadinhos legais. Claro que eles têm muito mais grana do que nós, mas nós fazemos parte do negócio, somos os peões de uma nova visão de mundo da periferia: o crime neoliberal, o crime copiado dos métodos de tantos ‘cachoeiras’ e de mensaleiros didáticos. Nós somos a base desse sistema e podemos subir na carreira se cumprirmos as ordens dos chefes – uma rede organizada, com amigos federais, estaduais e municipais. O PCC rege hoje todas as cadeias de São Paulo; temos até reunião plenária na prisão, com votação e tudo, temos a contribuição obrigatória (hoje está por volta de 800 paus por mês) para proteção e regalias da malandragem. Quem não paga vai pro lixo, em todos os sentidos. Nós pagamos com nossas ações de intimidação que a ‘mídia conservadora’ chama de ‘chacinas’.
Estamos aprendendo muito com os craques do Oriente. Nossos ataques, como os deles, não são previsíveis – a gente sai armado e o acaso nos leva às vítimas e é até melhor que sejam inocentes, para que ninguém mais se sinta ‘protegido’. Mas há uma diferença entre nossos ‘presuntos’ e os ‘presuntos’ do Oriente. Lá, eles matam e são mortos por religião ou se explodem felizes por uma causa política. Nós, não. A gente não pensa em ir para o céu feito os homens-bomba. Nós obedecemos às ordens dos celulares da chefia de dentro das prisões… Aliás, como podemos respeitar uma polícia que não consegue nem bloquear celulares? Mas, como você quer saber, sim, há um prazer nisso tudo, devo confessar. O grande prazer é matar neles a nossa vida escrota, ordinária, matar neles nosso destino miserável. Entendeu? A gente gosta até mesmo de exibir, jogar na cara dos playboys nossa ferocidade. Tem que dar medo neles. Outro dia, a gente decapitou dois X-9’s. Dá trabalho. Esguicha muito sangue, tanto que a gente cobre o quengo do elemento com uma toalha na hora da degola. Eu já tinha visto a decapitação de um refém no Iraque, na internet. Êta, gente competente! O árabe foi serrando com a faca, assim, devagar, o pescocinho duro e o americano só deu uma estrebuchada na hora do corte, só deu um mugidinho.
Matar ainda é a maior diversão… Você já matou alguém? Não? Não sabe o que está perdendo… O prazer de sair com uma metralhadora, ali, no tiro ao alvo, os otários levando susto, é de matar de rir; a cara do babaca voltando do trabalho e a gente acertando ele na porta de casa, a esposinha berrando, criancinhas chorando, dá uma adrenalina legal, parece que fica tudo bonito em volta. Outro dia, num botequim que tinha uns babacas dentro quando a gente tacou fogo, o néon ficou mais forte, tudo ficou luminoso! Aliás, a morte matada parece mesmo um milagre. Os caras que estavam ali, folgando, bebendo, rindo, levam chumbo e de repente ficam todos quietinhos, obedientes, não se mexem mais. É superlegal. Os caras viram coisas. Eu confesso que me sinto leve nessas ‘paradas’… E tem mais: a gente não gosta de matar na moita… Os ‘presuntos’ têm de ser vistos, ali, caídos; afinal, fomos nós que criamos tudo aquilo… Legal é o prazer de abrir uma cerveja, acender um baseado e ficar vendo na TV a nossa ‘obra’. É uma curtição irada; parece uma exposição de pintura, uma ‘instalação’ – aqueles corpos na estrada, em posições diferentes, as autoridades falando em ‘providências’, é o maior barato… Dá orgulho. Dá vontade de sair na rua e gritar: ‘Fui eu!!!’
‘Nonada’ – não há mais a ‘crueldade’. As novas chacinas de São Paulo estão além do bem e do mal. Há crueldade num abatedouro de frangos? Não. Os frangos são decapitados por diligentes carrascos de branco, limpinhos, como num Auschwitz higiênico. Nem nos matadouros há crueldade, apenas operários mal pagos entre mugidos tristes. O mesmo nas chacinas. Ninguém sente nada. E nós nem nos preocupamos em tapar as pistas. Sabe por quê? Porque estávamos cumprindo tarefas, cuidando de nossos interesses. Fazemos parte de uma empresa escura, invisível, mas que progride muito nas periferias. O que vocês chamam de ‘crime organizado’ é organizado mesmo. Não é aquela criminalidade babaca do Rio e outros Estados primitivos. O dinheiro que o tráfico arrecada aqui, nesta cidade tão rica, é aplicado com seriedade em bens de capital e em rentáveis investimentos. Nossos chefes são sérios, previdentes. Eles investem muito em postos de gasolina adulterada que rende mais, claro, eles têm motéis meio escrotos, não são ‘Bahamas’ ou algo assim, mas a tigrada tem onde trepar numa boa, têm não digo supermercados, mas muitos mercadinhos legais. Claro que eles têm muito mais grana do que nós, mas nós fazemos parte do negócio, somos os peões de uma nova visão de mundo da periferia: o crime neoliberal, o crime copiado dos métodos de tantos ‘cachoeiras’ e de mensaleiros didáticos. Nós somos a base desse sistema e podemos subir na carreira se cumprirmos as ordens dos chefes – uma rede organizada, com amigos federais, estaduais e municipais. O PCC rege hoje todas as cadeias de São Paulo; temos até reunião plenária na prisão, com votação e tudo, temos a contribuição obrigatória (hoje está por volta de 800 paus por mês) para proteção e regalias da malandragem. Quem não paga vai pro lixo, em todos os sentidos. Nós pagamos com nossas ações de intimidação que a ‘mídia conservadora’ chama de ‘chacinas’.
Estamos aprendendo muito com os craques do Oriente. Nossos ataques, como os deles, não são previsíveis – a gente sai armado e o acaso nos leva às vítimas e é até melhor que sejam inocentes, para que ninguém mais se sinta ‘protegido’. Mas há uma diferença entre nossos ‘presuntos’ e os ‘presuntos’ do Oriente. Lá, eles matam e são mortos por religião ou se explodem felizes por uma causa política. Nós, não. A gente não pensa em ir para o céu feito os homens-bomba. Nós obedecemos às ordens dos celulares da chefia de dentro das prisões… Aliás, como podemos respeitar uma polícia que não consegue nem bloquear celulares? Mas, como você quer saber, sim, há um prazer nisso tudo, devo confessar. O grande prazer é matar neles a nossa vida escrota, ordinária, matar neles nosso destino miserável. Entendeu? A gente gosta até mesmo de exibir, jogar na cara dos playboys nossa ferocidade. Tem que dar medo neles. Outro dia, a gente decapitou dois X-9’s. Dá trabalho. Esguicha muito sangue, tanto que a gente cobre o quengo do elemento com uma toalha na hora da degola. Eu já tinha visto a decapitação de um refém no Iraque, na internet. Êta, gente competente! O árabe foi serrando com a faca, assim, devagar, o pescocinho duro e o americano só deu uma estrebuchada na hora do corte, só deu um mugidinho.
Matar ainda é a maior diversão… Você já matou alguém? Não? Não sabe o que está perdendo… O prazer de sair com uma metralhadora, ali, no tiro ao alvo, os otários levando susto, é de matar de rir; a cara do babaca voltando do trabalho e a gente acertando ele na porta de casa, a esposinha berrando, criancinhas chorando, dá uma adrenalina legal, parece que fica tudo bonito em volta. Outro dia, num botequim que tinha uns babacas dentro quando a gente tacou fogo, o néon ficou mais forte, tudo ficou luminoso! Aliás, a morte matada parece mesmo um milagre. Os caras que estavam ali, folgando, bebendo, rindo, levam chumbo e de repente ficam todos quietinhos, obedientes, não se mexem mais. É superlegal. Os caras viram coisas. Eu confesso que me sinto leve nessas ‘paradas’… E tem mais: a gente não gosta de matar na moita… Os ‘presuntos’ têm de ser vistos, ali, caídos; afinal, fomos nós que criamos tudo aquilo… Legal é o prazer de abrir uma cerveja, acender um baseado e ficar vendo na TV a nossa ‘obra’. É uma curtição irada; parece uma exposição de pintura, uma ‘instalação’ – aqueles corpos na estrada, em posições diferentes, as autoridades falando em ‘providências’, é o maior barato… Dá orgulho. Dá vontade de sair na rua e gritar: ‘Fui eu!!!’
Hoje em dia, somos obrigados a criar notícias, fazer ‘mídia’, temos de chamar atenção e cada vez está ficando mais difícil – é tanto crime, que a gente tem de caprichar… Você veja, a turminha lá do Elias Maluco inventou o ‘micro-ondas’. Bacana, obra de arte: o cara queimando dentro dos pneus é dos espetáculos mais emocionantes que já vi, chega a dar medo mesmo na gente que está acostumado – aqueles gritos e, aos poucos, o silêncio, com o cara virando cinza, dá um alívio, como uma purificação… É demais…
Mas, o que me dá tranquilidade, ‘mermão’, é que nós sabemos que no Brasil é impossível resolver o ‘problema da violência’, como os playboys chamam…
O que tinha de ser feito ninguém consegue fazer mais: atacar a rede do tráfico de pó e armas que começa nos oficiais graúdos, passa por políticos e autoridades até chegar a nós, os pés de chinelo. A gente é peão. Não há mais crueldade; apenas defesa de mercado, para que nossos chefes e nós possamos sustentar nossas famílias dignamente.”
Mas, o que me dá tranquilidade, ‘mermão’, é que nós sabemos que no Brasil é impossível resolver o ‘problema da violência’, como os playboys chamam…
O que tinha de ser feito ninguém consegue fazer mais: atacar a rede do tráfico de pó e armas que começa nos oficiais graúdos, passa por políticos e autoridades até chegar a nós, os pés de chinelo. A gente é peão. Não há mais crueldade; apenas defesa de mercado, para que nossos chefes e nós possamos sustentar nossas famílias dignamente.”
Arnaldo Jabor
Em Gaza como em Odessa n’O Couraçado Potemkin
A Humanidade parece caminhar para um mundo ilógico e afastar-se de uma das características mais nobres dos seres humanos – os sentimentos que a fazem aproximar-se dos outros e estender a mão para ajudar.
Ao ver as imagens das forças israelenses a metralhar populares esfomeados junto dos camiões com ajuda humanitária, na passada quinta-feira, há naquela metralha a percepção de que quem dispara perdeu a essência que o faz distinguir de todos os outros animais.
Quem assim atira à queima-roupa contra gente maltrapilha nunca mais vai ser quem era por ter ultrapassado os limites do que a alma humana é capaz de suportar.
Eram esfomeados, perseguidos como presas de caça, corridos de todos os lugares de Gaza, sob a mais avançada tecnologia militar de matar, que o único mal que fizeram foi nascerem na Palestina e serem palestinianos.
Outrora, os nazis davam ordens para matar judeus, por serem judeus, ao preço mais barato.
Agora são os dirigentes de Israel que dão ordens às suas Forças Armadas para expulsar, como animais bravios, os famintos e doentes palestinos de Gaza, há cinco meses escorraçados do Norte para o Sul, do Sul para o Norte, de um canto para o outro apenas por serem palestinianos.
Não há espaço dentro do coração de cada ser humano para aguentar a suprema malvadez de disparar friamente sobre crianças, mulheres, idosos que para aliviar a fome, por já não terem ervas, raízes, rações de animais e procuravam comida junto dos camiões com ajuda.
Metralhar à queima-roupa gente indefesa só em cinema, como n’O Couraçado de Potemkin, de Serguei Eisenstein, quando os carrascos do czar dispararam sobre a população em fuga, em Odessa, dirigindo-se para uma escadaria monumental em que se estremece com a violência e se vê carros de bebés desgovernados serem projetados numa impiedade sem limites.
Em Gaza, mais de um século depois, um dos bastiões do Ocidente com regras, como alegam constantemente, assistiu-se a um episódio de igual ressonância. Palestinos baleados como presas, tal como nos comedouros de caça, pela tropa do novo Macbeth do Médio Oriente.
E, no entanto, as emoções não estão viradas para os palestinos que já “aceitamos” não serem exatamente iguais a outros seres humanos com o estatuto e a estirpe de ocidentais.
Eles estão do outro lado por não aceitarem que a sua terra não é deles. No caso, queriam comida que os dirigentes israelenses negam, como na Idade Média, para impor a rendição.
Para o Ocidente, Israel tem o direito a defender-se e os palestinos a morrer de fome ou baleados pelo grande aliado.
Esta Europa supercivilizada, em que só é permitido matar três perdizes e vinte tordos por caçada, convive com a brutalidade dos carniceiros que ordenaram a matança de mais de cem palestinos famintos, num total de mais de trinta mil, um terço crianças, nestes cinco meses.
Ao ver as imagens das forças israelenses a metralhar populares esfomeados junto dos camiões com ajuda humanitária, na passada quinta-feira, há naquela metralha a percepção de que quem dispara perdeu a essência que o faz distinguir de todos os outros animais.
Quem assim atira à queima-roupa contra gente maltrapilha nunca mais vai ser quem era por ter ultrapassado os limites do que a alma humana é capaz de suportar.
Eram esfomeados, perseguidos como presas de caça, corridos de todos os lugares de Gaza, sob a mais avançada tecnologia militar de matar, que o único mal que fizeram foi nascerem na Palestina e serem palestinianos.
Outrora, os nazis davam ordens para matar judeus, por serem judeus, ao preço mais barato.
Agora são os dirigentes de Israel que dão ordens às suas Forças Armadas para expulsar, como animais bravios, os famintos e doentes palestinos de Gaza, há cinco meses escorraçados do Norte para o Sul, do Sul para o Norte, de um canto para o outro apenas por serem palestinianos.
Não há espaço dentro do coração de cada ser humano para aguentar a suprema malvadez de disparar friamente sobre crianças, mulheres, idosos que para aliviar a fome, por já não terem ervas, raízes, rações de animais e procuravam comida junto dos camiões com ajuda.
Metralhar à queima-roupa gente indefesa só em cinema, como n’O Couraçado de Potemkin, de Serguei Eisenstein, quando os carrascos do czar dispararam sobre a população em fuga, em Odessa, dirigindo-se para uma escadaria monumental em que se estremece com a violência e se vê carros de bebés desgovernados serem projetados numa impiedade sem limites.
Em Gaza, mais de um século depois, um dos bastiões do Ocidente com regras, como alegam constantemente, assistiu-se a um episódio de igual ressonância. Palestinos baleados como presas, tal como nos comedouros de caça, pela tropa do novo Macbeth do Médio Oriente.
E, no entanto, as emoções não estão viradas para os palestinos que já “aceitamos” não serem exatamente iguais a outros seres humanos com o estatuto e a estirpe de ocidentais.
Eles estão do outro lado por não aceitarem que a sua terra não é deles. No caso, queriam comida que os dirigentes israelenses negam, como na Idade Média, para impor a rendição.
Para o Ocidente, Israel tem o direito a defender-se e os palestinos a morrer de fome ou baleados pelo grande aliado.
Esta Europa supercivilizada, em que só é permitido matar três perdizes e vinte tordos por caçada, convive com a brutalidade dos carniceiros que ordenaram a matança de mais de cem palestinos famintos, num total de mais de trinta mil, um terço crianças, nestes cinco meses.
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