sexta-feira, 8 de março de 2024

Varsóvia e Gaza: 80 anos depois, dois guetos e o mesmo nazismo

O judeu assassinado e o judeu assassino. Oitenta anos separam essa brutal metamorfose de um povo perseguido em 1943 pela barbárie nazista na Polônia e convertido, em 2023, em um Estado vingativo que bombardeia impiedosamente hospitais, escolas, ambulâncias, mesquitas, mulheres, crianças e dois milhões de civis inocentes no enclave palestino de Gaza. A dramática inversão de papéis dos judeus atacados no Gueto de Varsóvia para os judeus atacantes no Gueto de Gaza – a inacreditável degeneração do judeu perseguido para o papel de judeu perseguidor – marca talvez o pior retrocesso moral e ético dos princípios civilizatórios de um povo no curto espaço das últimas oito décadas da Humanidade.

A impensável conversão de Israel ao horror nazista tem agora um pretexto de sangue e terror. O silêncio da manhã ensolarada de terça-feira, 7 de outubro, foi quebrado pelo silvo de aproximadamente três mil foguetes disparados de Gaza pelo grupo militar islâmico Hamas sobre a fronteira sul e cidades próximas de Israel, incluindo a capital, Tel Aviv, apenas 70 km ao norte. Eram tantos foguetes no ar que o poderoso “Domo de Ferro”, o sistema antimíssil de defesa de Israel que detecta alvos a até 70 km, ficou sobrecarregado e impotente diante de tantas ameaças desabando dos céus.


O pior viria a seguir. Os foguetes ainda fumegavam no ar quando um punhado de 1.500 homens da brigada Al-Qassam, o braço armado e terrorista do Hamas, ultrapassou as cercas da fronteira com tratores, motos e parapentes com duplas armadas de metralhadoras para o maior e mais brutal ataque ao território de Israel desde sua fundação, em 1948. Em poucas horas, em ação abominável, os terroristas massacraram quase 1.200 homens, mulheres e idosos, incluindo 33 crianças, numa operação que tinha como alvo indefesos civis israelenses, não militares. Quando retornaram a Gaza, os atacantes do Hamas levaram 240 reféns, incluindo 40 crianças. Foi o maior atentado terrorista no mundo desde o 11 de setembro de 2001, quando 19 membros da Al-Qaeda de Bin Laden sequestraram quatro aviões comerciais nos Estados Unidos – atingindo entre eles as torres gêmeas de 110 andares do World Trade Center, em Nova Iorque. Naquele dia morreram 2.996 pessoas em quatro ataques, incluindo os 19 terroristas.

A ação da brigada assassina do Hamas destravou a linguagem mais encanzinada da elite governante de Israel, nivelando no fundo do poço a reação desproporcional de quem se move pela vingança, sem arrefecer sua fúria mesmo diante de bebês, crianças, mulheres e idosos palestinos. Líderes notórios máximos de Israel, incluindo generais, jornalistas, celebridades e destaques das redes sociais, se lambuzaram na defesa da punição coletiva em massa. Um constrangedor surto de desmemória para um povo que sempre lembra ao mundo a brutalidade de que foi vítima na barbárie do Holocausto nazista.

O primeiro ministro Benjamin Netanyahu declarou no mesmo dia do ataque um “estado de guerra” em Israel, e esbravejou com a convicção de quem não se envergonha de anunciar seu ímpeto homicida: “Vamos transformar Gaza em uma ilha deserta e mudar o Oriente Médio. O que faremos com nossos inimigos nos próximos dias repercutirá entre eles por gerações”. Rápido no gatilho, o major-general Yoav Galant, ministro da Defesa de Israel, ecoou o chefe anunciando o inferno iminente: “Estamos lutando contra animais humanos, e estamos agindo de acordo. Vamos impor um cerco completo a Gaza. Não haverá eletricidade, nem alimentos, nem água, nem combustível, tudo será cortado”. A mulher de Netanyahu, Sara, embora psicóloga, completou o desatino numa entrevista de rádio em 10 de outubro, 72 horas após o ataque: “Não os chamo de animais humanos porque isso seria um insulto aos animais”. Tsaji Hanegbi, conselheiro de Segurança Nacional, fez uma distinção para defender os bichinhos: “Dizem que terroristas são animais. Mas, quem tem um cão em casa, sabe que eles não são animais. São monstros”.

Yinon Magal, apresentadora do Canal 14 de direita em Israel, trovejou na sua TV, uma semana após o ataque:“Apaguem Gaza. Não deixem ninguém lá”. Na mesma emissora, um especialista militar de um instituto associado à Universidade de Tel Aviv, Eliyhau Yossian, insistiu: “Não existem inocentes em Gaza, apenas dois milhões de terroristas”. O ministro de Segurança Nacional e líder de um partido de extrema-direita, Itamar Ben-Gvir, repetiu na TV o mantra que extravaza o terror dos atacantes: “Qualquer pessoa que apoia o Hamas deve ser eliminada”.

Até o presidente Isaac Herzog, considerado a face moderada do governo mais extremista e ultradireita da curta história de Israel, perdeu a compostura e rotulou toda a população de mais de 2 milhões da Faixa de Gaza como terrorista, dando ao Hamas uma dimensão que ele não tem: “É uma nação inteira lá fora que é responsável. Não é verdade essa retórica de que os civis de Gaza não sabiam, não se envolveram. Absolutamente, não é verdade. Eles poderiam ter se levantado, poderiam ter lutado contra aquele regime maligno que assumiu o controle da Gaza”, protestou Herzog.

O desatino que afundou a cúpula governante de Israel na ideia de “punição coletiva, sem exceções” foi resumido, sem dó, por um dos militares mais influentes do país. Giora Eiland, 71 anos, hoje na reserva, é um paraquedista que chegou ao posto de general-brigadeiro e foi chefe em 2004, no governo linha dura de Ariel Sharon, do Conselho de Segurança Nacional. “Israel deve criar um desastre humanitário sem precedentes em Gaza. Somente a mobilização de dezenas de milhares e o clamor da comunidade internacional criarão a alavanca para que Gaza fique sem o Hamas ou sem pessoas. Estamos em uma guerra existencial”. A elite governante de Israel assumiu, em poucas horas, o discurso do extermínio do povo palestino. O Fake Repórter, um equilibrado grupo israelense que monitora a desinformação e o ódio, anotou apenas 16 apelos para que Gaza fosse “achatada”, “apagada” ou “destruída” nos 45 dias anteriores a 7 de outubro. Depois do ataque terrorista do Hamas, o sentimento de fúria varreu o país. Em poucas horas, o Twitter (atual X) foi invadido 18 mil vezes por expressões genocidas pedindo o apagamento, a destruição, o achatamento de Gaza e seu povo.

Consumado o ataque de 7 de outubro, as duas nações militarmente mais poderosas do Ocidente, Estados Unidos e Reino Unido, se apressaram em dar um “apoio incondicional”, sem meios-tons e sem ressalvas, a qualquer reação de Israel. O presidente Joe Biden e o premiê Rishi Sunak fizeram questão de ir pessoalmente a Tel Aviv para justificar uma irrestrita licença para matar – ao melhor estilo 007 de James Bond – aos militares de Netanyahu: “Israel tem o direito de se defender”, repetiram o americano e o britânico, sem esclarecer se isso incluiria o direito israelense de chacinar populações civis, mulheres e crianças e bombardear hospitais, escolas, ambulâncias e mesquitas.

Resultado sangrento dessa barbaridade retórica de Washington e Londres: em quase quatro meses, até 16 de fevereiro (dia 133 do conflito), Israel usou e abusou de seu matador “direito de defesa” para liquidar 27.238 mil palestinos, incluindo 11.500 crianças e bebês e 8 mil mulheres – um total cerca de 24 vezes maior do que os israelenses mortos. E 66.452 mil palestinos foram feridos, incluindo mais de 8,6 mil crianças e 6,3 mil mulheres – sete vezes mais do que no lado israelense (8.730 feridos). A lista inicial de 1.405 vítimas judias foi revisada para baixo, para 1.139 mortos, por dados consolidados do governo de Gaza, do Exército de Israel, do Crescente Vermelho, do Ministério da Saúde da Cisjordânia e da rede Al Jazeera. O porta-voz da chancelaria de Israel, Lior Haiat, reconheceu em 10 de novembro que o número caiu porque muitos corpos, não identificados, foram incluídos erradamente na contagem de israelenses mortos, mas descobriram depois que eram de “terroristas”.

A curva desproporcional da violência que mata muito mais palestinos fica evidente num quadro montado pelo jornal O Globo para o período de 55 dias entre 7 de outubro, data do ataque, e 1º de novembro. A contagem começa com uma disparidade entre mortos árabes (426) e judeus (677), equilibra rapidamente quatro dias depois (1.126 palestinos e 1.200 israelenses), vira dois dias mais tarde (1.943 árabes mortos contra 1.300), e dispara numa curva ascendente até o primeiro dia de outubro (8.796 contra 1.402, na lista depois rebaixada para 1.200). O detalhe intrigante é que o total de mortos de Israel estabiliza seis dias após o ataque e mantém a regularidade daí em diante, enquanto as vítimas palestinas disparam geometricamente, dia a dia.

A estatística do matadouro produzido por Israel em Gaza se renova e aumenta a cada hora assombrada por 200 ataques aéreos, como na madrugada de segunda-feira, 4 de dezembro. Nos primeiros seis dias de guerra, de acordo com o Exército israelense, foram jogadas em Gaza 42 bombas a cada 60 minutos. Segundo o escritório de Coordenação de Assuntos Humanitários da ONU (UNOCHA, na sigla em inglês), esse descomunal poder de fogo mata, por hora, 15 pessoas (seis delas crianças), fere outros 35 indivíduos e destrói 12 prédios. Já Agência para Refugiados Palestinos das Nações Unidas (UNRWA, na sigla em inglês), informou em 6 de novembro que um mês de guerra registrava, a cada 10 minutos, a morte de uma criança e ferimentos em outras duas. No início de dezembro, fontes da ONU calculavam mais de 360 mil residências (60% das moradias de Gaza) destruídas ou danificadas pelas dezenas de bombardeios aéreos diários, que atingiram 386 escolas, 122 ambulâncias, 56 mesquitas destruídas e outras 136 danificadas (matando 53 imãs e pregadores), deixando fora de ação 26 dos 35 hospitais de Gaza. Onze padarias foram demolidas, agravando o drama da fome numa população já privada de luz, de água e de combustível.
Luiz Cláudio Cunha (íntegra do artigo pode ser lida aqui

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