quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Pensamento do Dia


Embasbacados

A versão oficial da conquista do Novo Mundo pelos europeus é que tudo começou com a chegada ao que viria a ser o México do espanhol Hernán Cortés, que embasbacou o império asteca antes de derrotá-lo, facilmente, assoviando, nas armas. Os nativos nunca tinham visto um cavalo, o que dirá mosquetes e outros instrumentos de guerra, e sucumbiram ao poder de fogo e ao garbo dos espanhóis. O que explicaria a relativa docilidade do imperador Montezuma diante dos invasores.

Não foi bem assim. Com a esquadra de Cortés viajou, além de um exército, um notário real, cuja função era assegurar que a posse das novas terras pela Espanha obedecesse a todos os trâmites legais — da Espanha. A rendição de Montezuma fez parte do embasbacamento que precedeu à chacina. Uma cultura fundada na cerimônia como a asteca teve seu primeiro encontro com uma cultura legalista e não resistiu. Um império de gestos rígidos mostrou-se impotente diante de um império de palavras maleáveis e foi enrolado pelo jargão jurídico antes de perder a guerra e a terra.


Em toda a conquista da América repetiu-se a formalidade da leitura do “Requerimento” que proclamava a posse da terra pela Coroa espanhola e a transformação dos nativos em seus súditos. Se os nativos não estivessem presentes na leitura do “Requerimento”, não importava: o notário estava lá e daria fé.

Cristóvão Colombo declarou formalmente diante de índios caribenhos que tomava posse das suas ilhas para o rei da Espanha “y no me fué contradicho”, como ele mesmo escreveu depois. Argumentar que ninguém ali poderia contradizê-lo porque nenhum nativo tinha ideia do que ele estava dizendo seria apelar para o bom senso, algo sem nenhuma majestade histórica. A conquista europeia da América deixou, entre outras, a tradição da lei como instrumento de enrolação.

Em toda a América persiste a mesma divisão entre brancos e índios dos tempos de Cortés e Montezuma. De vez em quando, um se recusa a ser embasbacado e tenta contradizer a hipocrisia reinante, mas nunca vai longe.

Toffoli ainda não é a Constituição

O Brasil, apesar de tudo, vai decolar. Porque quer, porque precisa e porque agora pode, com ou sem a anuência dos analistas que, ou porque ainda não entenderam ou porque já entenderam perfeitamente o quê depende de quê dão preferência absoluta ao Bolsonaro de sempre sobre o Paulo Guedes de nunca antes na história deste país … que é o Bolsonaro que proporciona.

Vai decolar não só porque a necessidade tem muita força mas porque vem aí o choque da energia industrial a gás, o mesmo tipo de impulso de raiz que, ha um par de anos, teve força para virar o jogo nos EUA, porque está determinado a sair do seu isolamento e reintegrar-se às correntes financeiras e de comércio do mundo, porque retirou-se definitivamente do túmulo da bandalheira sindical getulista onde jazia ao lado da Argentina e quer mais…

Lula já entendeu que assim é e que se assim for o sonho acaba. Ele morre falando sozinho. Por isso anda azedo feito limão. A conferir se o Brasil fará dele mais uma dose de limonada purgativa ou, como prenunciam os primeiros ensaios, apenas uma omelete.


Por baixo da gordura retórica de que se costumam cercar as análises do drama brasileiro jaz, frio e muito básico, um país assaltado a mão armada de lei onde os roubados são roubados na primeira instância e os ladrões não são presos nem depois da quarta. Como consequência o orçamento público foi apropriado praticamente inteiro pela privilegiatura que o lulismo tornou morbidamente obesa e o investimento público desapareceu. Não são mais que a amputação desses quase 40% do PIB e, principalmente, que a ressaca da sistematização da empulhação que se requer para tornar possível a convivência com uma iniquidade tão repulsiva essa miséria e essa violência crônicas em que o país anda mergulhado.

Não há argumento tragável contra a reforma radical disso tudo. Certamente não será apontando a Venezuela de Maduro e a Cuba dos Castro, defendendo a privilegiatura ou mantendo estatais nas mãos dos mais notórios barões da bandidocracia que “o homem mais honesto do Brasil” vai seduzir os brasileiros e expandir para muito além das fronteiras do Baixo Leblon o que resta da esquerda antidemocrática. PSOL, PC do B e PCO, mais o MST, foi tudo que ele conseguiu incluir na sua lista de agradecimentos na porta da cadeia.

A batalha final do lulismo, para além das incursões de praxe no território do crime, vai se ater, portanto, à tentativa de atribuir aos outros o “direito autoral” do PT sobre a miséria do Brasil. Jogar pobres contra ricos pra valer seria, aliás, a esta altura, o meio mais contundente de denunciar a privilegiatura. O IBGE pôs em R$ 27.213 o limite acima do qual está o 1% mais rico da população. Considerando 220 milhões de brasileiros é de 2,2 milhões de pessoas que estamos falando. Desconte-se daí a dezena de milhares de “super ricos” mais o que resta do Brasil meritocrático ainda não reduzido a viver de bico e o que sobra é um numero muito parecido com o dos funcionários federais dos três poderes ativos ou aposentados para os quais esses R$ 27 mil para cima é o mínimo que vem escrito no holerite, aquele documento feito para esconder o grosso do que recebem sob mil disfarces para sustentar o vidão que levam. 36,1 vezes, considerado só o valor nominal, os R$ 754 por mês de que tira o seu sustento a metade mais pobre dos brasileiros; 67% a mais do que ganham trabalhadores em funções idênticas na economia privada, aquela que cria e não apenas consome riquezas.

No mesmo estudo o IBGE põe em R$ 5.214 o limite acima do qual estão os 10% mais ricos do país (haja miséria!). O salário de início das carreiras federais está, em média nos 9 mil reais. E mesmo nos estados e nos municípios cujo funcionalismo compõe a pequena nobreza do Império da Privilegiatura será difícil encontrar quem esteja abaixo desse patamar. Tudo pago com o dinheiro que “não há” para investir nos requisitos mínimos para que os miseráveis saiam da miséria: infraestrutura, educação, saude e segurança públicas.

Seria moleza, portanto, ganhar uma discussão sobre pobres contra ricos e o papel do estado como o “mais justo distribuidor da riqueza nacional” não fosse o acesso à política um privilégio exclusivo da privilegiatura sem distinção da ideologia alegada, o que certamente inibirá uma clara exposição de quem são os ricos do Brasil pelas partes envolvidas nessa disputa. Sem povo na rua não vai, portanto…

Desde pelo menos 1956, quando o 20º Congresso do Partido Comunista Soviético confirmou oficialmente ao mundo que “o sonho” não passara de um pesadelo afogado em sangue a violência física, a corrupção e a violência semântica, vulgo mentira, têm sido os únicos argumentos dos inimigos da democracia. A conquista do sindicato dos bancários e do controle dos fundos de pensão das estatais, rezava o Plano Gushiken que o companheiro Dirceu, sob as ordens de Lula, executou à risca, seriam o “Abre-te Césamo” da caverna do poder para o PT. Nasce aí o “jornalismo de acesso” aos pecadilhos financeiros dos adversários mais incômodos oferecidos pela “PT-POL”, como eram chamadas nas redações dos anos 90 as “fontes” sob o comando do companheiro Berzoini. Uma vez lá, “Ésley & Ésley Lavanderias Planetárias” fariam do dinheiro para sempre um não problema para os autores do “maior assalto a um Tesouro Nacional da história da humanidade”.

Mas “no meio do caminho tinha um Sérgio Moro. Tinha um Sérgio Moro no meio do caminho. O Brasil nunca se esquecerá desse acontecimento na vida de suas retinas tão fatigadas”…

Para quê o excelentíssimo “amigo do amigo” do pai do Marcelo Odebrecht quer agora, depois da dos hackers da Lava Jato, a pacoteira de informações do Coaf sobre as “movimentações atípicas” de dinheiro da mulher dele e da daquele outro ministro de súbitas convicções jurídicas adquiridas e de mais 599.998 brasileiros entre os quais se incluem todos os elementos-chave do jogo do poder eu não faço a mais vaga ideia. Mas o certo é que ele não tem esse direito. Nenhuma lei, nenhuma norma constitucional lhe dá o poder de requere-la. “C’est pas lui la Constitution”, ainda…

Esmagados pelo presente

No 1.º ano de seu papado, Francisco apontou como o problema mais urgente que a Igreja enfrentava um tema surpreendente. Era o desemprego dos jovens, também apresentado como um dos mais sérios males do mundo atual. Em mais de uma ocasião o pontífice ecoou a preocupação, apontando o risco de uma “geração perdida” e criticando uma sociedade que descartava os jovens.

Para o papa, o elevado desemprego jovem é problemático não apenas pela falta de trabalho em si, mas pela falta de esperança. Os jovens foram “esmagados pelo presente”. Ao contrário das pessoas mais velhas, não têm lembranças para recordar. Mas tampouco teriam um amanhã para ansiar, como deveria ser na juventude. “Você me diz: é possível viver esmagado sob o peso do presente? Sem uma memória do passado e sem o desejo de olhar adiante para o futuro para construir algo, um futuro? Você conseguiria ir adiante assim?”

Se a crise do desemprego jovem na Europa chamou atenção até do Vaticano, os esmagados seguem largamente menosprezados por aqui. Nas eleições de 2018, tiveram protagonismo, excepcionalmente, apenas na ideia da “carteira de trabalho verde e amarela”. O plano foi apresentado na semana passada e, apesar de desidratado, foi recebido com antipatia pela opinião pública.


A taxa de desemprego ainda é de 27% entre os jovens de 18 a 24 anos. Apesar de alguma melhora desde o pior da crise, ela ainda supera 30% em vários Estados do Nordeste e do Norte. Mesmo no período áureo do mercado de trabalho, sempre foi o dobro da taxa geral, e nunca cedeu abaixo de 14%. Os jovens são, de longe, os mais afetados pelo desemprego. Sem experiência, qualificação ou contatos, são também embarreirados pelas mesmas regras trabalhistas dos demais – ao contrário do que ocorre em países desenvolvidos.

No início do mês, o IBGE divulgou a Síntese de Indicadores Sociais de 2018. Vivem abaixo da linha da pobreza 3 em cada 10 brasileiros entre 15 e 29 anos.

A faixa etária é também destaque em outra estatística, sendo os mais afetados pela violência urbana: são mais de 60% das vítimas de homicídios. Em 2017, quase 36 mil jovens entre 15 e 29 anos foram assassinados – novo recorde. Os nossos esmagados morrem.

É claro que a desgraça da juventude brasileira não deve motivar qualquer intervenção estatal. Mas o contrato de trabalho verde e amarelo está longe de ser uma iniciativa mal concebida. Ao contrário, vai ao encontro da literatura científica mais nova sobre a experiência internacional.

As evidências mais recentes sobre políticas de emprego desse tipo preconizam desonerações seletivas, com foco em grupos específicos (no caso os jovens) e na contratação (apenas novas vagas estão desoneradas, vedada a troca de antigos por novos). Essas são duas ressalvas que diminuem o custo da mudança (e que marcam as principais diferenças da proposta com a desoneração de Dilma).

O badalado Emmanuel Saez – o economista de Berkeley que assessora a democrata Elizabeth Warren – publicou em outubro estudo sobre a experiência recente da Suécia. Ele e coautores mostram que a desoneração feita para jovens melhorou o emprego durante e após sua vigência (foi promovida pela centro-direita, e desfeita pela esquerda). O efeito foi positivo, e crescente, tanto para os beneficiados que saíram do programa porque ficaram mais velhos (por exemplo, pelo ganho de experiência) quanto para os jovens que não foram beneficiados pela desoneração (depois que ela se extinguiu).

A redução do custo lá foi de 12%, bem abaixo da redução do custo de cerca de 30% do contrato verde e amarelo (principalmente INSS e FGTS). Já Alessio Brown, do Instituto de Economia do Trabalho da Alemanha, compila efeitos positivos de subsídios a contratação, focalizados, na Alemanha, Austrália, Áustria, França, Polônia e Reino Unido (além da Suécia). Apesar da maior burocracia e dos custos administrativos da política focalizada, ela teria custo efetivo maior do que uma desoneração irrestrita.

O Congresso pode aperfeiçoar a medida: o financiamento pela arrecadação com a contagem de tempo do seguro-desemprego para o INSS deve ser substituído (afinal vigoram renúncias previdenciárias para faculdades e o agro) e os com mais de 55 anos podem ser incluídos (apesar do baixo desemprego, desligados têm dificuldade de reinserção). Outras políticas também merecem ser discutidas.

O essencial é que os esmagados não percam nossa atenção.

Toffoli vota por quatro horas num idioma novo : toffolês

Relator do caso sobre o compartilhamento de dados sigilosos dos órgãos de controle, o presidente do Supremo Tribunal Federal, Dias Toffoli, alcançou uma proeza rara. Pronunciou um dos mais longos votos da centenária história da Corte —mais de quatro horas de pregação. E não foi compreendido nem pelos companheiros de toga. Toffoli expressou-se num idioma muito parecido com o português, só que muito mais confuso: o toffolês.

Quem conseguiu ouvir toda a explanação de Toffoli sem cochilar ficou com a impressão de que ele votou a favor da imposição de condições para o compartilhamento de dados sigilosos sem autorização judicial.


O ex-Coaf, rebatizado de UIF, não poderia entregar aos investigadores senão dados genéricos. Detalhamentos, só com autorização judicial. A continuidade dos inquéritos congelados desde julho —o de Flávio Bolsonaro e outras 935 investigações— ficaria condicionada a uma análise caso a caso.

As restrições seriam ainda maiores para a Receita Federal. Após apalpar os dados enviados pelo Fisco, o Ministério Público seria obrigado a comunicar imediatamente a abertura de uma investigação ao juiz, que supervisionaria o inquérito.

As explicações soaram claras como a gema. Munidos de todas as informações transmitidas por Toffoli, os repórteres tiraram suas próprias confusões. E foram constrangidos a cercar o orador no início da noite para pedir-lhe que trocasse em miúdos o voto que começara a ler no expediente da manhã.

"Em relação ao Coaf, pode sim compartilhar informações", declarou Toffoli. "Mas ele é uma unidade de inteligência. O que ele compartilha não pode ser usado como prova. É um meio de obtenção de prova". Ora, ora, ora. Então, não haveria nada de novo sob o Sol, pois a coisa já funciona exatamente assim.

Mais tarde, em novo esforço de tradução do toffolês para o português, o gabinete de Toffoli informou que, no caso do Coaf, não há novas limitações. Como assim? Considerando-se que os relatórios produzidos pelo órgão não incluem documentos detalhados, poderiam continuar circulando no formato atual.

Se é assim, por que diabos o descongelamento do inquérito contra Flávio Bolsonaro e os outros 935 dependeriam de análises posteriores? Nada foi dito sobre esse paradoxo.

No voto, Toffoli dissera que o Ministério Público não poderia, em hipótese nenhuma, "encomendar relatórios" ao Coaf. Na tradução do gabinete, procuradores e promotores podem requisitar complementos de informações recebidas do Coaf.

Toffoli repetiu várias vezes a expressão "lenda urbana". Fez isso, por exemplo, ao assegurar que o julgamento iniciado nesta quarta não tem nada a ver com Flávio Bolsonaro.

O relator reiterou a doutrina Saci-Pererê ao sustentar que a liminar que concedera em julho, a pedido da defesa do primogênito de Jair Bolsonaro, havia paralisado "poucos processos". Faltou explicar por que considera o congelamento de 935 inquéritos pouca coisa.

Alguns ministros esforçaram-se para reprimir um sorriso interior enquanto ouviam Toffoli. Com a ironia em riste, um dos colegas de presidente do Supremo referiu-se ao voto dele como "uma grande homenagem ao Dia da Consciência Negra".

Num flerte com o politicamente incorreto, o ministro declarou: "O voto do relator foi um autêntico samba do crioulo ".

Vivo, Sérgio Porto, o magistral criador do samba, discordaria. Seu crioulo entoou: "Joaquim José / Que também é / Da Silva Xavier / Queria ser dono do mundo / E se elegeu Pedro II". Não dizia coisa com coisa. Mas era taxativo.

Dias Toffoli, por gelatinoso, terá de explicar-se novamente diante dos seus pares nesta quinta-feira, pois vários deles foram dormir ruminando dúvidas sobre o voto de dimensões amazônicas.