sexta-feira, 1 de abril de 2022

Uma nota mentirosa e assinada também pelos três comandantes de tropas

A nota comemorando a ditadura militar de 64, divulgada ontem à noite pelo Ministério da Defesa, é a pior já divulgada neste governo. Ser assinada pelo general de pijama Walter Braga Netto, que está saindo do cargo para ser candidato a vice na chapa de Jair Bolsonaro, era de se esperar. Mas o grave é ter as assinaturas do general, do almirante e do brigadeiro que comandam as tropas. Nesse ponto é uma ameaça ao país. Não se pode esquecer o contexto. Bolsonaro é um defensor de ditaduras, sente “embrulho no estômago” como disse outro dia, de respeitar a Constituição, e passou três anos e três meses no poder vomitando ameaças golpistas. Bolsonaro está disputando a reeleição, em situação desfavorável nas pesquisas, e ontem mesmo voltou a fazer ameaças. Esse contexto piora muito a nota.


Uma solitária verdade na nota é que “não se pode reescrever a história”. De fato. Mas é isso que eles tentam fervorosamente. Há um trecho que diz: “Nos anos seguintes ao dia 31 de março de 1964, a sociedade brasileira conduziu um período de estabilização, de crescimento econômico e de amadurecimento político”. Uma coleção de mentiras. Não foi a sociedade, foram os militares que conduziram o país. Tanto que quando houve a possibilidade de um vice assumir, Pedro Aleixo, quando Costa e Silva ficou incapacitado e morreu, o país passou a ser dirigido por uma junta militar. Os generais conduziram o país para 21 anos de ditadura militar e não um período de estabilização. O país cresceu no começo dos anos 70, mas houve duas recessões, calote da dívida externa e no fim o país estava com uma hiperinflação que foi debelada apenas na democracia. O governo fechou o Congresso, aposentou ministros do Supremo, cassou e exilou, censurou a imprensa. É triste ter que lembrar de novo, de novo, de novo.

Os fatos históricos são inarredáveis. O que eles querem dizer com o trecho em que afirmam que “as Forças Armadas” observaram “estritamente o regramento constitucional”. Eles rasgaram a Constituição, fizeram outra e também a rasgaram com os atos institucionais, principalmente o AI-5 que suspendeu todos os resquícios de democracia. As Forças Armadas instalaram dentro dos seus quartéis máquinas de prisão, tortura, morte e ocultação de cadáveres. Em vez de pedirem desculpas ao país, afrontam ano a ano a verdade histórica.

Nesse ano, repito, é mais grave porque as ameaças à democracia por parte do presidente têm a chancela de militares da ativa que mentem, mentem novamente, sobre fatos que aconteceram há 58 anos. O Brasil é um caso único. As Forças Armadas dos nossos vizinhos não têm o desplante de mentir sobre a História e afrontar os seus países, da forma que fazem as Forças Armadas brasileiras.

Brasil da Carochinha

 


Que falta faz Millôr Fernandes

Filho de imigrantes, nascido no subúrbio carioca do Meyer em 1923, Millôr Fernandes começou a escrever na revista "O Cruzeiro" aos 16 anos e teve uma das carreiras mais longevas do jornalismo brasileiro. Foi desenhista, dramaturgo e tradutor, mas preferia ser chamado de jornalista: "para evitar qualquer pretensão", dizia. Faleceu há dez anos, em 27 de março de 2012, e deixou um vácuo na imprensa e no debate público. Que falta faz Millôr nesses tempos polarizados. Que falta faz seu ceticismo.

Falo do ceticismo analisado por Michael Oakeshott, aquele que se contrapõe à fé extrema na política: ceticismo como dúvida constante sobre construções racionais que se arvoram a criar sociedades perfeitas. Segundo Millôr: "Se uma pessoa estava no governo, eu ficava contra. Isso em qualquer época".


Mas o ceticismo milloriano não se aplicava apenas ao poder institucional, e sim a ideologias de um modo geral. Após ser demitido de O Cruzeiro (por causa de uma sátira à Bíblia), Millôr publicou a "Pif-Paf" um mês após o golpe militar. A revista criticava a ditadura, óbvio, mas também se opunha à esquerda dogmática. Tiradas irônicas como "Os comunistas são contra o lucro, nós somos apenas contra os prejuízos" ou "Esta revista será de esquerda nos números pares e de direita nos números ímpares" permeavam as edições. Imagine essa postura em plena Guerra Fria, comunismo versus capitalismo: quando todos tomam partido, é preciso coragem para não tomar partido algum.

Atualmente, vemos dicotomia semelhante: quem critica Bolsonaro é chamado de petista e quem critica Lula vira logo bolsonarista. Como se a oposição a "A" implicasse necessariamente apoio a "B", ou seja, uma falácia lógica grotesca. O mesmo se dá com o identitarismo: qualquer crítica a práticas ou conceitos do movimento é tachada de racismo, machismo, homofobia etc. Nesse ambiente político tóxico e abafado, que falta nos faz uma lufada de ceticismo. Que falta nos faz Millôr Fernandes.

O vírus russo

Existe uma complexidade de causas que ajudam a compreender esta loucura de invadir militarmente e de forma violenta uma nação vizinha e irmã. Desde a ambição de restaurar o império perdido do regime soviético e dos czares, ou o receio da expansão da NATO e da crescente influência da União Europeia e seus valores humanistas e democráticos junto às fronteiras da Rússia, mas também a necessidade de buscar apoio político entre a população cada vez mais insatisfeita com o Kremlin.

A história czarista e soviética pautou-se por uma russificação forçada da população ucraniana, que levou à morte de milhões de camponeses durante a colectivização da agricultura nos anos 30. A partir de 1991, a recuperação da soberania de Kyev foi encarada pelo nacionalismo russo como uma perda significativa e um atentado à própria identidade russa, ajudando a criar um discurso nacionalista e ortodoxo centrado na igreja Oriental, cuja liderança passou a considerar Putin como o defensor da cultura russa e dos russos que vivem fora do país.

O Patriarca Kirill referiu-se em 2012 ao consulado de Putin como “um milagre de Deus” pelo que o chefe da Igreja Ortodoxa Russa passou a considerá-lo como uma espécie de defensor dos valores cristãos tradicionais num mundo confuso e em ebulição.

O tom religioso do discurso do ditador russo é inconfundível. Como bem recorda o historiador Martyn Whittock, em 2015 Putin justificou a anexação da Crimeia como tendo tanto “significado sagrado para a Rússia, como o Monte do Templo para judeus e muçulmanos” e referindo-se aquele território roubado à Ucrânia como sendo “a fonte espiritual da formação da nação russa (…) uma vez que foi neste solo espiritual que nossos ancestrais reconheceram para sempre a sua nacionalidade”. Temos aqui, portanto, um casamento claro entre o nacionalismo e a religião ortodoxa russa, a partir duma reescrita da História.

Coisa semelhante passou-se no Donbas em 2014, quando um sacerdote ortodoxo declarou que o Ocidente e os ucranianos pretendiam estabelecer “um governo satânico planetário”, a partir do início duma “guerra global, não por recursos ou território mas pela destruição do verdadeiro cristianismo, a ortodoxia.”

Mas foi quando a Igreja Russa e o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla cortaram relações e que este, enquanto autoridade sobre toda a Ortodoxia Oriental (e a quem cabe reconhecer uma igreja nova), sancionou a autonomia da Igreja Ortodoxa Autocéfala ucraniana, que as coisas azedaram, uma vez que o patriarcado de Moscovo a queria integrada na da Rússia. O processo iniciado em 2018 e consumado no ano seguinte retirou a autoridade que os clérigos russos tinham sobre os ucranianos, uma vez que a população ortodoxa ucraniana representava a considerável fatia de cerca de vinte e cinco por cento do patriarcado de Moscovo. Ou seja, a liderança ortodoxa russa perdeu assim um quarto dos fiéis.

Mas esta foi uma decisão contestada por vários patriarcados, com destaque para o de Moscovo, que deseja ver a igreja ortodoxa ucraniana incorporada na da Rússia. Segundo Filipe d’Avillez “Os russos olham para Constantinopla, que tem atualmente cerca de cinco mil fiéis ortodoxos [e pensam]: ‘por que raio é que este tipo há de mandar no mundo ortodoxo, quando nós somos a maior igreja ortodoxa e a mais influente?’ Estão há vários anos a posicionarem-se para assumir esse papel”. A verdade é que embora a invasão russa resulte duma doutrina geopolítica, ela também encontra raízes no nacionalismo ortodoxo de pendor apocalíptico.

José Eduardo Franco falava há dias à CNN Portugal sobre a “ligação estratégica de Putin à religião. Ele percebe que o nacionalismo não pode ser afirmado sem Deus. O religioso é sempre uma espécie de cimento que une as pessoas”. Com efeito, a herança histórica do ateísmo ajudou Putin a abrir os olhos e compreender porque “faliu o projecto soviético de criar um império sem Deus”.

Mas talvez o problema da Rússia tenha sido sempre a sua vastidão territorial, como José Milhazes faz questão de nos recordar através do filósofo Nikolai Berdiáev: “O panorama da alma russa corresponde ao panorama da Rússia, a mesma falta de limites, falta de formas, alcançando a infinidade”.

Entretanto, o portal 7 Margens afirma que “Mais de 500 teólogos, presbíteros e académicos de todo o mundo e de várias denominações cristãs, na grande maioria ortodoxos, já assinaram um texto, sob o título “uma Declaração sobre o Ensino do ‘Mundo Russo’ (Russkii Mir)”, no qual criticam de forma dura “a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022”, apresentando-a como “uma ameaça histórica para um povo de tradição cristã ortodoxa”. E a condenação é dura: “Rejeitamos a heresia do ‘mundo russo’ e as ações vergonhosas do governo da Rússia ao desencadear a guerra contra a Ucrânia que flui desse ensinamento vil e indefensável com a conivência da Igreja Ortodoxa Russa, como profundamente não-ortodoxa, não-cristã e contra a humanidade.”

Durante a pandemia falou-se tanto no “vírus chinês” que andámos distraídos com o russo. Mas este parece ser bem mais perigoso e destrutivo, até porque invoca o nome de Deus em vão.

Até quando...

Até quando, Catilina, abusarás da nossa paciência?
Por quanto tempo a tua loucura há de zombar de nós?
A que extremos se há de precipitar a tua desenfreada audácia?
Nem a guarda do Palatino,
nem a ronda noturna da cidade,
nem o temor do povo,
nem a afluência de todos os homens de bem,
nem este local tão bem protegido para a reunião do Senado,
nem a expressão do voto destas pessoas, nada disto conseguiu perturbar-te?
Não te dás conta que os teus planos foram descobertos?
Não vês que a tua conspiração a têm já dominada todos estes que a conhecem?
Quem, dentre nós, pensas tu que ignora o que fizeste na noite passada e na precedente, onde estiveste, com quem te encontraste, que decisão tomaste?
Oh tempos, oh costumes!

Marcus Tullius Cicero, 63 a.C.

Dicionário Brasileiro da Corrupção

Uma ideia jogada ao acaso nesta coluna na quinta última foi recebida com entusiasmo por alguns leitores: a de um Dicionário Brasileiro da Corrupção. Nunca foi feito, e não por falta de material. Mesmo ignorando a Colônia e o Império, que tinham costumes próprios, o que se poderá levantar de sujeira a partir da República, em 1889, encherá volumes. Afinal, é uma das grandes especialidades do Brasil: o uso da República para práticas não republicanas, como roubar, desviar, desfalcar, falsificar, sonegar, subornar, aliciar, perverter —em suma, corromper.

Uns mais, outros menos, todos os governos desde Deodoro caíram na farra, com destaque para os autoritários e para os que se elegeram como vestais. Os primeiros, pelo motivo óbvio: quanto mais ditadura, mais censura e menos controle pelas leis, pela sociedade e pela imprensa, donde mais corrupção. O famoso mar de lama em que o governo constitucional de Getúlio Vargas se afundou em 1954 não passou de um filete diante do que se roubou de 1964 a 1985 sob os militares —que, não por acaso, tomaram o poder para, entre outras, "combater a corrupção".


E aí temos a segunda categoria: a dos governos que, quanto mais "puros", mais sujos. Jair Bolsonaro atualiza mensalmente sua bravata: "Três anos e três meses de governo, três anos e três meses sem corrupção". Certo —desde que você não conte a destruição da Amazônia para venda ilegal, a importação das vacinas fantasmas, o comércio da morte pela cloroquina, os ministérios reduzidos a balcões, a rachadinha, o patrimônio imobiliário da família, os cheques para a primeira-dama, as mamatas para os amigos, o suborno de militares e outros usos e abusos de bilhões.

Que não passam de ninharia diante da entrega do cofre para o Centrão. Isso, sim, consagrará Bolsonaro e lhe garantirá a capa do Dicionário.

Deixo de graça a sugestão. Convidem-me para o lançamento.