Existe uma complexidade de causas que ajudam a compreender esta loucura de invadir militarmente e de forma violenta uma nação vizinha e irmã. Desde a ambição de restaurar o império perdido do regime soviético e dos czares, ou o receio da expansão da NATO e da crescente influência da União Europeia e seus valores humanistas e democráticos junto às fronteiras da Rússia, mas também a necessidade de buscar apoio político entre a população cada vez mais insatisfeita com o Kremlin.
A história czarista e soviética pautou-se por uma russificação forçada da população ucraniana, que levou à morte de milhões de camponeses durante a colectivização da agricultura nos anos 30. A partir de 1991, a recuperação da soberania de Kyev foi encarada pelo nacionalismo russo como uma perda significativa e um atentado à própria identidade russa, ajudando a criar um discurso nacionalista e ortodoxo centrado na igreja Oriental, cuja liderança passou a considerar Putin como o defensor da cultura russa e dos russos que vivem fora do país.
O Patriarca Kirill referiu-se em 2012 ao consulado de Putin como “um milagre de Deus” pelo que o chefe da Igreja Ortodoxa Russa passou a considerá-lo como uma espécie de defensor dos valores cristãos tradicionais num mundo confuso e em ebulição.
O tom religioso do discurso do ditador russo é inconfundível. Como bem recorda o historiador Martyn Whittock, em 2015 Putin justificou a anexação da Crimeia como tendo tanto “significado sagrado para a Rússia, como o Monte do Templo para judeus e muçulmanos” e referindo-se aquele território roubado à Ucrânia como sendo “a fonte espiritual da formação da nação russa (…) uma vez que foi neste solo espiritual que nossos ancestrais reconheceram para sempre a sua nacionalidade”. Temos aqui, portanto, um casamento claro entre o nacionalismo e a religião ortodoxa russa, a partir duma reescrita da História.
Coisa semelhante passou-se no Donbas em 2014, quando um sacerdote ortodoxo declarou que o Ocidente e os ucranianos pretendiam estabelecer “um governo satânico planetário”, a partir do início duma “guerra global, não por recursos ou território mas pela destruição do verdadeiro cristianismo, a ortodoxia.”
Mas foi quando a Igreja Russa e o Patriarcado Ecuménico de Constantinopla cortaram relações e que este, enquanto autoridade sobre toda a Ortodoxia Oriental (e a quem cabe reconhecer uma igreja nova), sancionou a autonomia da Igreja Ortodoxa Autocéfala ucraniana, que as coisas azedaram, uma vez que o patriarcado de Moscovo a queria integrada na da Rússia. O processo iniciado em 2018 e consumado no ano seguinte retirou a autoridade que os clérigos russos tinham sobre os ucranianos, uma vez que a população ortodoxa ucraniana representava a considerável fatia de cerca de vinte e cinco por cento do patriarcado de Moscovo. Ou seja, a liderança ortodoxa russa perdeu assim um quarto dos fiéis.
Mas esta foi uma decisão contestada por vários patriarcados, com destaque para o de Moscovo, que deseja ver a igreja ortodoxa ucraniana incorporada na da Rússia. Segundo Filipe d’Avillez “Os russos olham para Constantinopla, que tem atualmente cerca de cinco mil fiéis ortodoxos [e pensam]: ‘por que raio é que este tipo há de mandar no mundo ortodoxo, quando nós somos a maior igreja ortodoxa e a mais influente?’ Estão há vários anos a posicionarem-se para assumir esse papel”. A verdade é que embora a invasão russa resulte duma doutrina geopolítica, ela também encontra raízes no nacionalismo ortodoxo de pendor apocalíptico.
José Eduardo Franco falava há dias à CNN Portugal sobre a “ligação estratégica de Putin à religião. Ele percebe que o nacionalismo não pode ser afirmado sem Deus. O religioso é sempre uma espécie de cimento que une as pessoas”. Com efeito, a herança histórica do ateísmo ajudou Putin a abrir os olhos e compreender porque “faliu o projecto soviético de criar um império sem Deus”.
Mas talvez o problema da Rússia tenha sido sempre a sua vastidão territorial, como José Milhazes faz questão de nos recordar através do filósofo Nikolai Berdiáev: “O panorama da alma russa corresponde ao panorama da Rússia, a mesma falta de limites, falta de formas, alcançando a infinidade”.
Entretanto, o portal 7 Margens afirma que “Mais de 500 teólogos, presbíteros e académicos de todo o mundo e de várias denominações cristãs, na grande maioria ortodoxos, já assinaram um texto, sob o título “uma Declaração sobre o Ensino do ‘Mundo Russo’ (Russkii Mir)”, no qual criticam de forma dura “a invasão russa da Ucrânia em 24 de fevereiro de 2022”, apresentando-a como “uma ameaça histórica para um povo de tradição cristã ortodoxa”. E a condenação é dura: “Rejeitamos a heresia do ‘mundo russo’ e as ações vergonhosas do governo da Rússia ao desencadear a guerra contra a Ucrânia que flui desse ensinamento vil e indefensável com a conivência da Igreja Ortodoxa Russa, como profundamente não-ortodoxa, não-cristã e contra a humanidade.”
Durante a pandemia falou-se tanto no “vírus chinês” que andámos distraídos com o russo. Mas este parece ser bem mais perigoso e destrutivo, até porque invoca o nome de Deus em vão.
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