sábado, 11 de fevereiro de 2017

O Estado contra o cidadão

Que o Estado brasileiro passa por uma crise muito grande, não há dúvidas. Não se deve brincar com esse tipo de crise, embora boa parte dos que fazem parte do sistema esteja brincando. Problemas à frente por causa da crise do aparelho estatal, do descuido e da má-fé dos que deveriam por ele zelar já começaram a respingar na sociedade. O Estado hoje protege o cidadão? Parece que não. A reação ao que acontece hoje certamente terá resposta daqui a dois anos, nas eleições de 2018.

O que assusta mais não são apenas os sintomas de um Estado à beira da falência. O que assusta é a constante inversão do papel do Estado. Há casos em que, em vez de proteger o cidadão, razão de sua existência, o Estado o ameaça. 

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O motim da PM do Espírito Santo é um exemplo disso. O direito de ir e vir do cidadão foi comprometido por um movimento que, diferentemente de outros, tem armas na mão. O comércio foi obrigado a fechar as portas por causa dos saques, as varas da Justiça não funcionaram, os bancos não abriram as portas. O medo se instalou porque uma das partes do Estado, justamente seu aparelho armado, voltou-se contra a sociedade sob a desculpa de que os 10,3 mil policiais do Estado têm o piso salarial mais baixo do País, cerca de R$ 2,46 mil, quando a média brasileira é de R$ 3,98 mil. E estão sem reposição das perdas com a inflação há três anos.

Poderiam ter criado comitês de negociação com o governo. Mas preferiram assustar ainda mais uma população assustada com a falta de segurança para tentar o aumento salarial na marra. O resultado imediato foi a ocorrência de uma matança. A suspeita é de que foi deliberada. Enquanto a PM se recolhia aos quartéis, esquadrões da morte eliminavam pessoas que consideravam indesejadas.

O Estado brasileiro se volta contra o cidadão também quando faz dos presídios masmorras medievais. E permite que essas prisões sejam dominadas pelo crime organizado, a mais perfeita leitura da omissão do Estado no setor em que o cidadão – o preso não deixa de ser cidadão porque está preso – é o mais desprotegido entre os desprotegidos.

O desrespeito do Estado contra o cidadão que deveria proteger não se resume à área de segurança. Está presente quando o sistema governamental, em vez de montar um aparato que evite a sonegação, passa a oferecer ao agente público gratificação correspondente à quantidade de multas que ele conseguir aplicar nos que tentam fugir dos impostos. Significa que esse agente só conseguirá aumentar seu patrimônio se houver alguém praticando uma atividade criminosa. Para ele, o fim do crime é o fim de uma boa renda mensal. Não pode ser por aí.

Há ainda afronta ao cidadão quando um dos braços do Estado, o Senado, elege para presidir a Comissão de Constituição e Justiça um senador que é investigado pela suspeita de malfeitos em Angra 3, Belo Monte e Petrobrás. Ou quando um partido como o PMDB claramente monta um script para tentar evitar que siga avante a apuração feita pelo Ministério Público e pela Polícia Federal a respeito da participação de políticos no recebimento de dinheiro de propinas. Sem falar que dez integrantes da mesma CCJ são investigados pela Justiça.

Também não se pode esquecer que a sociedade se sente acuada pelo Estado, que deveria estar a serviço dela, quando o presidente da República dá status de ministro ao amigo e assessor Moreira Franco, de forma tão rápida, que não fica outra percepção que não a de qual tal decisão tinha por objetivo protegê-lo da Justiça de primeira instância.

O presidente Michel Temer pode até dizer que não houve nada disso. Mas será difícil convencer o cidadão comum, que amarga o desemprego, de que não se buscou privilegiar ainda mais alguém que, a rigor, já tem muitos privilégios.

Paisagem brasileira

Pedra da Gávea (Rio), Carlos Balliester

O velório de Maquiavel

Não há dúvida de que o presidente Michel Temer é um virtuose da velha política, um craque dos bastidores.

Acaba de eleger os presidentes da Câmara e do Senado, exibindo uma maioria de fazer inveja ao Lula dos tempos do Mensalão. Indicou para o STF um homem de sua confiança, Alexandre de Moraes, que adiante poderá vir a julgá-lo.

Livrou-se, dessa forma, de um problemático ministro da Justiça e ganhou um aliado estratégico na Corte Suprema. De quebra, criou dois ministérios – o dos Direitos Humanos e o da Secretaria Geral da Presidência -, colocando neste um de seus mais próximos colaboradores, Moreira Franco, blindando-o na Lava Jato.

Denunciado na delação da Odebrecht, onde, sob o apelido de Gato Angorá, é acusado de receber propinas, Moreira, agora ministro, fica abrigado na amigável esfera do STF, salvo de Sérgio Moro.

Com o Ministério dos Direitos Humanos, entregue à tucana Luislinda Valois, consolida a aliança com o PSDB. Pouco importa que a redução de ministérios tenha sido um de seus compromissos de posse. Com os que acaba de criar, Temer garante sua maioria parlamentar, na base do toma lá dá cá. Cargos por votos.

O problema é que a velha política, com suas manobras e engenhosidades, só funciona para dentro; só produz aplausos e admiração nos bastidores. O efeito é oposto na opinião pública, farta de maquiavelismos. Essa é a grande mudança imposta pelo Brasil da Lava Jato, que, ao que parece, ainda não foi percebida pelos políticos.

Ainda agem movidos pelos velhos paradigmas, em que a busca de resultados (não necessariamente administrativos) põe tudo o mais, inclusive (e sobretudo) os fundamentos morais mais elementares da governança, em segundo ou mesmo nenhum plano.

Isso explica, por exemplo, a abundância de ministros demitidos em menos de um ano de governo. Só Dilma Roussef ultrapassou essa marca, mas Temer parece empenhado em não ficar para trás. Moreira é sua mais nova aposta.

Sua posse foi suspensa por mais de um juiz de primeira instância e terá veredito definitivo no STF, por meio do ministro Celso de Mello. Pode não ser tecnicamente a mesma situação de Lula, que já era réu quando nomeado para a Casa Civil por Dilma.

Moralmente, porém, é.

Moreira está citado com detalhes nas planilhas da Odebrecht. Deveria, ele próprio, abster-se de pôr em dúvida sua presunção de inocência. Ao aceitar o guarda-chuva ministerial, sinaliza em sentido oposto. Lula foi barrado por Gilmar Mendes; vejamos o que dirá Celso de Melo. O país acompanha tudo de perto – e essa é, repita-se, a grande novidade na política.

Na velha política, ignora-se tal fenômeno. Temer, segundo se noticiou – e ninguém desmentiu -, pediu à presidente do STF, Cármen Lúcia, que não quebrasse o sigilo das delações para não interferir no resultado das eleições para as presidências da Câmara e do Senado. Pedido aceito, as eleições consumaram-se sem surpresas. E as delações continuam sob total sigilo.

Tornou-se recorrente comparar a Lava Jato à sua similar italiana Operação Mãos Limpas, ocorrida entre 1992 e 1996, que também passou um trator sobre a política daquele país. Ao final, porém, não resistiu às manobras de bastidores, que resultaram em mudanças na legislação, que devolveram o país às práticas habituais.

Aqui, tenta-se o mesmo. Esta semana, a Câmara quis votar em regime de urgência proposta que retirava do TSE o direito de cobrar dos partidos prestação de contas. Não conseguiu.

As redes sociais derrotaram mais uma vez a manobra, já tentada antes em relação às dez medidas contra a corrupção, propostas pelo Ministério Público, e ao projeto de abuso de autoridade, que impunha sanções penais aos investigadores.

Esse é o diferencial destes tempos de Lava Jato em relação à Operação Mãos Limpas: a pulverização da informação, via internet. Não há mais como controlá-la, nem muito menos as reações que provoca e as mudanças que impõe. É uma viagem sem volta.

No futuro, que já começou, o político terá de ser honesto, senão por razões de ordem moral, por imperativo tecnológico.

Igualdade zero

 
As críticas às prisões preventivas refletem, no fundo, o lamentável entendimento de que há pessoas acima da lei e que ainda vivemos em uma sociedade de castas, distante de nós a igualdade republicana 
Sérgio Moro Moro, em despacho que mantém Eduardo Cunha na cadeia

Brasil só tem segurança no nome do ministério

Você já ouviu falar em José Levi Mello? Provavelmente, não. Trata-se da pessoa que responde interinamente pelo Ministério da Justiça. Tenta tapar o buraco aberto com a indicação do ministro Alexandre de Moraes para o Supremo Tribunal Federal. Moraes bateu em retirada num instante em que a bela intenção do governo de tranquilizar a nação com um plano nacional de segurança não resistiu às sucessivas desmoralizações dos surtos de violência que pipocam em diferentes pedaços do mapa brasileiro, dentro e fora dos presídios.

Até bem pouco, quando o açanhamento das fações criminosas nos presídios desafiava a autoridade do Estado, o Ministério da Justiça era apenas irrelevante numa crise capitaneada pelos governos estaduais. Hoje, quando as Políciais Militares acham que podem fazer greve com o revolver no coldre, o governo pode começar a poensar seriamente em arrendar o belo prédio da pasta da Justiça para uma rede hoteleira.


A ousadia da Polícia Militar do Espírito Santo, paralisada há uma semana, transborda para o Rio de Janeiro. E não há ministro da Justiça em Brasília. Para não ser chamado de omisso, Michel Temer solta nota oficial conclamando os PMs a respeitarem a lei. Simultaneamente, Temer negocia a escolha do futuro minstro da Justiça com a barriga encostada no balcão.

Hoje, o mais cotado para o posto é um deputado: Rodrigo Pacheco. Pertence ao PMDB, um partido que está mais preocupado em controlar os ímpetos da Polícia Federal na Lava Jato. No momento, o único lugar onde existe segurança no Brasil é no nome do ministério, que foi rebatizado na semana passada por Temer. Chama-se agora Ministério da Justiça e Segurança Pública. Não caia na gargalhada. O caso é sério!

Imagem do Dia

Céu de Atacama (Chile), Francisco Negroni

A farsa como política

Um promotor ansioso por uma carreira política e que, para tanto, já se filiou não a uma mas a três agremiações partidárias, é ungido para um tribunal onde julgará o destino daqueles responsáveis por promovê-lo. Um investigado é escolhido para presidir a Comissão de Constituição e Justiça, e um senador, também sob investigação, defende o colega: “Não há demérito em ser investigado”. A lista segue. Tem até ministro nomeado só pelo foro privilegiado. Está óbvia a peça que entrou em cartaz.

A classe política, acuada que foi pelas investigações da Lava Jato e pela pressão das ruas, está, passo a passo, retomando o controle do espetáculo, cuja cena havia sido roubada pelo Judiciário e pelo Ministério Público. Foi apenas um intervalo, e ele parece estar acabando. A campainha já soou mais de uma vez, os protagonistas estão mostrando aos coadjuvantes o seu lugar.

No meio da temporada, houve ator que precisasse fugir do oficial de Justiça, ignorar sentenças ou fazer de conta que não entendeu o que o juiz mandou. Mas, quase sempre, acrobacias jurídicas distraíram os espectadores pelo tempo necessário até que instância superior restabelecesse a ordem no camarim.


Foi necessário realizar a morte cênica de alguns personagens menos quistos pela opinião pública, é verdade. Não foi doloroso para o elenco, porém. Eram pouco simpáticos ao resto da trupe. Ovacionados, deixaram-se levar pelos aplausos da plateia. Emergentes, pensavam ter aprendido todos os truques da profissão. Desdenharam os colegas de palco, afetando superioridade. Na primeira vaia, perderam seus papéis.

Contando ter satisfeito o público irrequieto, os veteranos começaram a reescrever o roteiro. Da coxia, onde costumam atuar, alguns viraram foco dos holofotes. Desacostumados à luz, que sempre lhes parece em excesso, às vezes tropeçam em cena. Quando esquecem as falas, improvisam um monólogo no qual trocam próclises por ênclises e mesóclises, na esperança de a forma pernóstica superar as lacunas de conteúdo. Tem funcionado.

Entre perplexa e resignada, a audiência não sabe se ri ou se chora. Mais importante para os protagonistas, nem sequer se emociona. Melhor assim, pois se não aplaude, o público tampouco apupa. Apáticas, as panelas permanecem na cozinha, junto com os tomates e os ovos. E os velhos atores vão tomando conta da cena, nomeando um ministro aqui, um juiz acolá, todos da trupe.

Não é difícil antever aonde esse enredo vai dar. É uma peça que já foi encenada incontáveis vezes pelos mesmos artistas, e, antes deles, por seus pais, tios, avós e até bisavós.

O teatro cômico que protagonizam é burlesco e trivial. O que falta de trama, sobra em tramoia. Abundam situações ridículas – quase sempre involuntárias – que não levam a lugar algum, mas compram tempo para os atores seguirem ocupando a ribalta. Até que o espectador, entediado, ameace subir ao palco.

Aí os diretores promovem um figurante a estrela, da noite para o dia. Com auxílio da maquiagem, ele – às vezes, ela – faz qualquer papel, de playboy a lixeiro. Com sorriso plastificado, dente facetado, cabelo plantado e jeito vaselinado, o ex-figurante se torna a cara da companhia. Faz sucesso, mas dura pouco. Sempre há uma cara nova para encenar velhos papéis.

As instituições

Dia desses meditava sobre como é fundamental, para a própria sobrevivência da raça humana, a preservação da autoridade moral de suas instituições - algo óbvio, aliás.

Nossas instituições perdem a confiança do povo quando seus membros são escolhidos por métodos obscuros ou injustos. Nossas instituições se desmoralizam quando seus membros ficam sujeitos às benesses ou às vinganças do poder político ou econômico. Nossas instituições são corroídas por dentro quando seus membros, por falta de transparência, não são devidamente recompensados ou punidos. Nossas instituições são alvo de escárnio quando os corruptos compram suas inocências com a ajuda dos recursos que desviaram.

Eis aí uma grave crise que flagela a humanidade: a institucional. Contemplem o mundo, e percebam que mais da metade de sua população já não confia plenamente nas instituições de seus países - seja naqueles mais miseráveis e primitivos ou nos mais ricos e sofisticados.

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O custo desta crise é a crescente dificuldade de recrutarmos verdadeiros defensores do bem - desde o mais humilde funcionário até a mais alta autoridade. O exercício idealista e sério de uma função pública passou a ser não mais uma profissão, mas um sacerdócio reservado a alguns poucos que se dispõem a pagar elevado preço pessoal.

Mudar isto é possível - basta que se torne absolutamente transparente a vida profissional de cada habitante do mundo das leis, permitindo à população a depuração e o aperfeiçoamento das instituições. Que seja obrigatória a divulgação de todo valor gasto por empresas com autoridades, políticos ou instituições, seja a que título for. Que se apure, com transparência, se criminosa a origem dos recursos destinados por acusados de corrupção ao pagamento de multas e defesas judiciais caríssimas, muitas vezes tão ricas em técnica quanto pobres em ética. Que as instituições tenham verdadeira independência orçamentária e financeira, com base em percentuais da arrecadação, não mais ficando sujeitas a pressões políticas ou barganhas de qualquer tipo.

Esta é uma luta penosa e feroz, quase tão antiga quanto a própria humanidade - mas dessas lutas às quais não podemos nos furtar. Afinal, como exclamava sabiamente Disraeli, "as pessoas podem formar comunidades, mas as instituições, e só elas, criam uma nação"!

Pedro Valls Feu Rosa

A hora do aneurisma

             I

Não é fácil ter poder,
Dar ordens na Esplanada,
Comer do bom e melhor,
Sendo babado e babada,
E de repente acordar
Preso, lascado e sem nada!

            II

Dilma botou pra correr
O meu amigo Israel
Por errar num powerpoint,
(A besteira de um papel),
O coitado correu tanto
Que quase ficou pinel.
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            III

Dava carão em soldado,
Coronel e capitão,
Deu desprezo a Suplicy
(Foi grande a humilhação),
Mas depois foi afastada
E ficou na solidão.

              IV


Agora Eduardo Cunha,
Que mandava em todo mundo,
Que comandou o impeachment,
Causando um cisma profundo,
Está preso na cadeia
Sem ter nem da calça o fundo.

              V

Diz que tem um aneurisma
Seu apelo derradeiro
Por isso deve ser solto
E se tratar no estrangeiro
Porém, se a cabeça dói
É por falta do dinheiro.

Criminalidade e crise civilizatória

Vi pela TV cenas de criminalidade e terror nas ruas de Vitória e municípios vizinhos. Policiais militar e civil estão em greve: querem aumento, o que é justo, mas inviável em face da crise em que estamos submersos. A bandidagem (e não só a bandidagem: vi um casal carregando um sofá) aproveitou – houve arrastões, destruição de lojas, saques, invasão de residências, tiroteios, queima de ônibus e carros, um horror que obrigou os cidadãos a se trancarem em casa, o que não impediu que 80 pessoas fossem assassinadas. Em meio a tudo isso, ocorreu uma tentativa de linchamento de um ladrão - o que é algo tão inaceitável quanto as ocorrências citadas.

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Ao ver tais cenas, lembrei-me de um filme – não é grande coisa, mas pode ser visto - chamado “Warriors: os selvagens da noite”, de Walter Hill. A história, em si, não é lá grande coisa: as gangues de Nova York perseguem, durante uma noite inteira, uma tribo de Coney Island (os Warriors), injustamente acusada de matar o líder de uma gangue rival e bem mais poderosa. O episódio ocorreu durante uma espécie de comício no Central Park, onde estavam reunidos nove membros de todas as gangues de Nova York para ouvir uma proposta de um sujeito (o tal que seria assassinado durante seu discurso), que todos os elementos de todas as gangues, mesmo rivais, respeitavam.

O líder convocou a reunião para fazer uma proposta: a união de todas as gangues, o que faria a “nova organização” se tornar mais poderosa que a força policial da cidade, na proporção de cinco meliantes contra um policial. “A cidade seria nossa, caras, ninguém faria nada sem a nossa permissão” - profetizou. Foi ovacionado – e, em meio à euforia dos presentes, que pareciam aprovar a ideia, o líder foi alvejado e morto por um tiro dado por um psicótico, que acusou os Warriors de serem os responsáveis pelo disparo. No tumulto, os Warriors conseguem fugir – e a perseguição e o filme propriamente dito têm início.

É certo que a união entre facções criminosas, que dominam espaços e negócios, é sempre improvável, mas não é impossível, embora a carga de ódio entre elas seja um elemento difícil de ser superado. Poder (econômico e político) não se divide, mas, em certas circunstâncias, a unidade entre facções torna-se necessária e mesmo imprescindível. A aliança entre o Comando Vermelho e a Família do Norte (em luta contra o Primeiro Comando da Capital) é exemplo disso.

O instinto de sobrevivência e a busca de força exigem a união de facções antes rivais ou inimigas. Diante da força policial, a dispersão da bandidagem em facções rivais apenas as enfraquece, levando-as a derrotas contínuas e poucas vitórias. Essa era a mensagem do líder diante de representantes das gangues nova-iorquinas.

Agora, imaginem, por hipótese, uma aliança entre o Primeiro Comando da Capital (PCC), Comando Vermelho (CV), Família do Norte (FDN), Amigos dos Amigos (ADA), Primeiro Grupo Catarinense (PGC), Sindicato do Crime (SDC – Rio Grande do Norte), Bonde dos 40 (Maranhão), Okaida (Paraíba) entre outras organizações criminosas espalhadas pelo Brasil, que dominam o mercado das drogas e armas. Imaginem se elas resolvessem atuar em conjunto, pondo fim, mesmo temporariamente, à rivalidade e guerra entre elas.

O PCC, por exemplo, está presente em todos os estados brasileiros e faz negócios na Bolívia, Colômbia, Argentina, Venezuela, Paraguai, Peru, Chile e Guiana Francesa. Se fosse uma empresa (não é empresa, mas é um negócio capitalista, regido pela lei do valor), o PCC teria a envergadura de uma multinacional. As estimativas informam que só a citada facção fatura mais de R$ 200 milhões por ano. O tráfico de drogas no Brasil, segundo a revista Época, movimenta bilhões de reais anualmente.

O CV controla o crime no Rio de Janeiro – e possui braços nas regiões Norte e Nordeste e bases no Paraguai, na Colômbia, Bolívia, no Peru e na Venezuela. A FDN é aliada do CV e as duas dominam a rota de tráfico de drogas pelo Rio Solimões, oriundas da tríplice fronteira Brasil-Peru-Colômbia, em Tabatinga. Em Manaus, as pichações em muros indicam a aliança: “FDN-CV”.

Depois dos acontecimentos nas penitenciárias de Manaus, Bela Vista e Natal, muito se tem publicado a respeito da violência e segurança no Brasil. As interpretações variam - o que talvez seja um sintoma de que estamos longe de entender a questão em sua totalidade. E olha que estamos falando apenas do mercado de drogas e contrabando de armas. Ontem, li uma reportagem sobre tráfico internacional de animais silvestres: só no Brasil, o giro anual desse negócio supera os nove bilhões de reais. Animais silvestres brasileiros são enviados para os grandes mercados mundiais: Europa, Estados Unidos e Japão. E o comércio de pessoas, mulheres e crianças que são levados para os mercados de prostituição europeu e americano? A criminalidade em escala mundial é um fenômeno que dá a ideia exata da crise civilizatória do planeta. Crise sem solução, diga-se.

Aos meus amigos sugiro a leitura de quatro livros essenciais: “Mac Máfia: crime sem fronteiras”, “O dono do morro: um homem e a batalha pelo Rio”, ambos de Misha Glenny; “Os senhores do crime: as novas máfias contra a democracia”, de Jean Ziegler; “Violência”, de Slavoj Zizek.