sábado, 14 de maio de 2016

Deu no New York Times

O jornal The New York Times, o mesmo que meses atrás considerou o Petrolão “o maior escândalo financeiro da história da humanidade”, deu mostras esta semana de que não se conecta consigo mesmo – ou por esquizofrenia ou por amnésia. Ou ambas.

Em editorial, considerou que Dilma Roussef paga “preço desproporcionalmente grande por irregularidades administrativas”. O editorialista parece compadecido com a ex-presidente e assume seu ponto de vista, que, na essência, subscreve a narrativa petista.

Segundo dados iniciais do governo que entra, o déficit de R$ 96 bilhões que a equipe econômica anterior admitiu é bem superior. Não incluiu a queda de arrecadação (algo acima de R$ 100 bilhões) e a renegociação da dívida com os estados (R$ 8 bilhões).

Não é só. A equipe de Dilma previu algo que não existe: arrecadação de R$ 12 bilhões com a CPMF, que, mesmo com as negativas do Congresso, supunha vir a obter (estelionato contábil), além de mais de R$ 230 bilhões de restos a pagar na Saúde.

Como essa conta não sairá do bolso do editorialista do jornal norte-americano, é fácil considerá-la banal.

Mas o mais grave é que o jornal sabe que não se trata “apenas” disso. As pedaladas e as fraudes fiscais, gravíssimas e inconstitucionais – e, portanto, passíveis de impeachment –, estão longe de esgotar o repertório de delinquências do governo que sai.

No pedido aceito por Câmara e Senado, não gostam os delitos de 2014 – ano eleitoral, em que chegaram ao paroxismo, para burlar as eleições -, sob o argumento cretino, do procurador-geral Rodrigo Janot, de que a Constituição (artigo 86, parágrafo 4º) não permite que o presidente, na vigência de seu mandato, seja julgado por atos estranhos ao exercício de suas funções.

O dispositivo constitucional foi aprovado ao tempo em que não existia reeleição. E foi interpretado de maneira defensiva à presidente, considerando absurdamente que seu primeiro mandato nenhuma relação tinha com o segundo, quando o delito praticado visou exatamente a permitir a reeleição.

Ou seja, a acusação que restou – mesmo assim suficiente para a penalidade que lhe está sendo imposta – é desproporcionalmente menor que a praticada. Trata apenas dos crimes fiscais de 2015.

Isso, claro, sem levar em conta o que já se sabe sobre a Lava Jato, em que dirigentes das maiores empreiteiras do país contam uma mesma história: a campanha de Dilma foi nutrida com dinheiro roubado da Petrobras. E embora o mesmo NYT tenha considerado esse escândalo como colossal e incomparável a qualquer outro, sabe-se que não é o único, nem possivelmente o maior.

Há ainda diversas caixas-pretas por abrir. Algumas, como BNDES e Eletrobrás, só pela pontinha que já se puxou, sinalizam rombos equivalentes. A Caixa Econômica Federal está quebrada, idem os fundos de pensão e o Banco do Brasil.

Há o Dnit, as verbas estatais que nutrem blogs sujos na internet, “movimentos sociais”, que se comportam como milícias fascistas, e ONGs que são células partidárias.

Mas bastaria a Petrobras para justificar a responsabilização penal do governo e da presidente, que comandava o Ministério de Minas e Energia e o conselho administrativo da estatal quando a roubalheira sistêmica começou, em 2003.

Se Dilma não roubou dinheiro, deixou que roubassem - e roubou votos de eleitores de boa fé, o que é mais grave ainda.

Al Capone foi preso por sonegação ao imposto de renda, crime modesto, se comparado ao conjunto de sua obra. Mas a polícia, ao prendê-lo por tal motivo, sabia com quem estava lidando. E, a partir do fio daquela meada, chegou ao restante.

É o que ocorrerá com a organização criminosa (expressões do ministro Celso de Melo, do STF, e do próprio Janot) que acaba de ser afastada. De pedalada em pedalada, as investigações chegarão à esfera penal, e aí ficará claro que Dilma está sendo punida pela mais amena das acusações que sobre ela e seu governo recaem.

As projeções mais otimistas sobre a economia brasileira – e que excluem os danos morais, culturais e a guerra ideológica instalada sobretudo nas universidades – falam em pelo menos uma década de sufoco para que o país comece a se recuperar. Não para que avance, mas para que retorne à posição modesta que ocupava antes de ser alvo das tropas de ocupação do PT.

Se Temer não expuser todo o prontuário administrativo do governo Dilma, contribuirá para que a versão petista acabe iludindo mais pessoas de boa fé – e nutrindo os interesses das de má fé. Não se sabe em qual das duas categorias se insere o editorialista do NYT.

Vem aí o Mandela do ABC

Atenção para a nova narrativa da elite vermelha (são os maiores narradores do mundo), de saída do palácio: estão sem grana. Começaram a espalhar que estão pagando seus advogados milionários do próprio bolso, a duras penas. É de cortar o coração. A razão, todos sabem: o produto do roubo de uma década, na corrente solidária do mensalão e do petrolão, foi integralmente doado a instituições de caridade. Os guerreiros do povo brasileiro não querem nada para eles. Só a glória de terem colocado um país na lona na base da conversa fiada.

A saudosa Dilma Rousseff avisou que vai resistir no Palácio da Alvorada. “É só o começo, a luta vai ser longa”, avisou a patroa do Bessias. E milagrosamente a gangue dos movimentos sociais S.A. saiu incendiando o Brasil, bloqueando ruas e estradas, difundindo os altos ideais do parasitismo profissional. Não pensem que sai barato uma mobilização cívica dessas. A mortadela é só o símbolo. É preciso um caixa poderoso para manter tantos vagabundos em estado de prontidão. Devem ser as famosas vaquinhas do Vaccari.


Pode-se dizer que o PT chegou, assim, ao nirvana. Passou um agradável verão de 13 anos e meio à sombra do contribuinte, fez o seu pé-de-meia muito bem feito e voltou para o seu lugar natural nesta existência: jogar pedra e reger a bagunça – protegido pelos melhores advogados e santificado pela fina flor da desonestidade intelectual.

A cena do escritor Adolfo Pérez Esquivel no Senado defendendo Dilma Rousseff de um golpe de Estado mostrou a importância do Prêmio Nobel da Paz: manter uma opinião pública em perfeita comunhão com suas ilusões pequeno-burguesas de bondade, enxergando no espelho um herói socialista. Enquanto Lula não for preso, continuará regendo esse repertório dos inocentes úteis e ativistas de aluguel, investindo sua gorda poupança no rendimento seguro do coitadismo. Depois que for apanhado por Sergio Moro, virará preso político – um Nelson Mandela do ABC, esperando para retomar o que é dele (o Brasil). Isso não tem fim.

A chance que o país tem de confinar a narrativa coitada no seu nicho folclórico é alguém se dispor a governar isto aqui. O Palácio do Planalto foi transformado num bilhete de Mega Sena, onde o felizardo e seus churrasqueiros vão passar longas férias inventando slogans espertos, botando ministro da Educação para caçar mosquito e outras travessuras do arraial. Se aparecer um governo por ali, a essa altura do campeonato, será uma revolução.

Se houver de fato a investidura de uma política econômica de verdade, com Henrique Meirelles na Fazenda e Ilan Goldfajn no Banco Central (ou qualquer outro que não aceite ser capacho de populista), as férias remuneradas da elite vermelha poderão começar a acabar. Se houver de fato a desinfecção da pantomima terceiro-mundista na política externa, faltará a ressurreição da democracia interna. O Brasil vive hoje uma democracia particular, na qual a gangue companheira que depenou o Estado faz chantagens emocionais ao vivo – constrangendo qualquer possível liderança legítima com seu exército de bolsistas sociais. Estamos na metade do caminho para a Venezuela, na metade do percurso para o chavismo e seu totalitarismo branco.

Um governo de verdade pode dar meia volta com relativa facilidade, bastando algo que os políticos atuais de todas as correntes rezam para não ter de exercer: autoridade. Bloqueou rua? O Estado vai lá e desbloqueia. Ele serve para isso, seus funcionários e representantes são pagos para isso – zelar pelo interesse da coletividade. Os monopolistas do bem gritarão que estão sendo reprimidos, na sua velha tática de jogar areia nos olhos da plateia. Cabe a um governo de verdade enxotá-los com a lei, esteja a plateia enxergando ou não.

No Plano Real, antes de nascer gloriosa a moeda forte, o governo penou para implantar a responsabilidade fiscal – essa que está depondo Dilma Rousseff – contra a gritaria geral. Isso dói. Tem alguém aí disposto a esse sacrifício, prezado Michel Temer? Se não tiver, ouça um bom conselho: melhor ficar em casa.

A lenda petista continuará dizendo que se trata de um golpe para entregar o país ao PMDB de Eduardo Cunha. Só há um antídoto eficaz para essa praga renitente: um governo que governe.

Alternância no poder é a melhor maneira de aperfeiçoar a democracia

Defendo o capitalismo, embora injusto, me alinho com os valores ocidentais, mas jamais conheci um país desenvolvido cujo povo fosse pobre – principalmente no quesito educacional. Considero os governos socialistas pelo mundo afora – e não essa chula cleptocracia lulopetista – socialmente mais justos. O que se quer é uma direita empreendedora e liberal e uma esquerda socialmente inclusiva – ambas bem intencionadas, éticas e honestas – se revezando no poder.

No meu mundo moram os republicanos e os democratas, os tories e os labours, les socialistes e os da UMP, os portugas do PSD e do PS, a democrazia cristiana e o partito comunista, o PP e o PSOE, a CDU/CSU e o SPD versus o SPD alemãos, todos eles variando suas posturas no espectro ideológico e suas decisões políticas – mais à esquerda ou mais à direita ou mais ao centro – conforme a vida muda, pois o meu mundo é mutante e plural e tolerante e civilizado e não quero outro.credito em democracia.

Creio que as mídias, os blogs, as redes sociais deveriam funcionar como catalisadores para as nossas opiniões e frustrações. Espaços onde pudéssemos dar curso ao nosso senso de necessária justiça. Mas mesmo justiça é uma palavra ou definição relativa, com base em nossas próprias crenças individuais.

Nós estamos vivendo em um mundo socialmente complexo, partilhado por pessoas com todos os tipos de vivência, com crenças sociais, políticas e religiosas diferentes, onde temos de aprender a conviver e respeitar uns aos outros e a viver dentro das leis.

Se não fizermos isso, é melhor que nos prepararemos para o sepultamento da humanidade/civilização como a conhecemos atualmente.

Juergen Habermas nos forneceu a melhor base para a compreensão e consequente valorização das comunicações hoje em dia. Ele fala de “esferas públicas” como lugares onde as pessoas se reúnem, como iguais, como aqui, para tentar criar “significado” e para constituir normas para o projeto humano em curso.

Ele escreve sobre uma “ética do discurso”, que, baseada na razão, mantém uma conversa democrática empírica. E que esse é o valor mais alto na teoria política republicana recente.

Tenho avaliado que estamos nos radicalizando cada vez mais. Pergunto: quando finalmente formos situação, será que permitiremos oposição?

Aprendi, com os meus muitos anos, que os principais problemas e obstáculos para criar uma convivência viável para a humanidade e uma relação civilizada, na maioria das vezes são criados por grupos ou indivíduos radicais.

Eu, pessoalmente, não acredito em escolhas à esquerda ou à direita – muito menos extremadas – mas simplesmente em liberdade versus tirania.

Aqui reside a raiz dos nossos problemas. As oscilações do pêndulo entre tirania e liberdade são permanentemente rejuvenescidas pelas ilusões de como se viver de forma “mais justa”.

Essas ilusões são manipuladas pelos assuntos da política, mas a “moralidade” dos comportamentos sociais deve ser ditada pelo nosso anseio de viver em liberdade e pela nossa repulsa contundente de viver sob opressão.

A falácia da legitimidade

O principal argumento de Dilma Rousseff e do PT para repudiar o “golpe” que afastou provisoriamente do cargo a chefe de governo mais impopular da história é a legitimidade de um mandato conquistado com o voto de 54 milhões de brasileiros. Legitimidade que, para os petistas, não se estende ao vice-presidente eleito na mesma chapa, com o mesmo número de votos. Legitimidade que os petistas negam ao Supremo Tribunal Federal para estabelecer o rito a ser seguido pelo processo de impeachment no Legislativo. Legitimidade que o PT nega igualmente ao Congresso Nacional para deliberar, por ampla maioria de votos, sobre a admissibilidade do processo de impeachment e, em consequência, transferir provisoriamente ao sucessor constitucional de Dilma o comando do governo.

Legítimo, no Brasil, só o PT. E isso explica o fato de os petistas terem anunciado que não reconhecerão a investidura de Michel Temer na Presidência interina, farão oposição radical a seu governo “ilegítimo” e recusar-se-ão até mesmo a examinar, no Congresso, toda e qualquer medida proposta pelo “usurpador”.

A disposição de radicalizar ao extremo a oposição ao governo cuja legitimidade não reconhecem foi anunciada por parlamentares petistas logo após a decisão do Senado de dar sequência ao processo de impeachment. Enquanto os senadores debatiam a questão, na madrugada de quinta-feira, deputados petistas e seus aliados do PC do B se reuniam na Câmara para discutir a melhor maneira de reagir à derrota considerada inevitável. O deputado Paulo Teixeira (PT-SP) foi um dos primeiros a anunciar o lançamento do movimento intitulado “Temer jamais será presidente, será sempre golpista” ou, opcionalmente, apenas “Temer, o golpista”:

“Nenhum documento assinado por Michel Temer tem qualquer valor, são todos nulos”. E por isso, explicou, a bancada petista não levará em consideração nenhuma proposta enviada pelo novo governo.

A petista gaúcha Maria do Rosário negou legitimidade às decisões do Congresso sobre o impeachment: “Nem sempre a maioria tem razão. A maioria desse Parlamento é golpista”. Ou seja, quem legitima a atuação de senadores e deputados não é o voto popular: é o discernimento dos petistas. Linha auxiliar do lulopetismo, a deputada Luciana Santos (PC do B-PE) compartilha do peculiar entendimento do PT a respeito de quem tem ou não tem direito de falar em nome do povo: “Vamos ter dois presidentes, uma eleita com 54 milhões de votos e outro, ilegítimo, sem voto nenhum”. Raciocínio – ou absoluta falta dele – que escamoteia o fato de que, em eleição para chefe de Executivo, o voto é dado não apenas a quem encabeça a chapa, mas também a seu parceiro.

Essas manifestações de indisfarçável rancor de petistas e aliados diante da adversidade dão a exata medida da mentalidade autoritária, antidemocrática, do grupo político que se julga dono da verdade e durante mais de 13 anos manipulou a opinião pública, particularmente os segmentos menos informados da população. Apresentam-se como monopolistas da defesa do bem comum, protetores dos fracos e oprimidos contra a sanha segregadora das elites impiedosas. Derrotados, fazem-se de vítimas e não têm a dignidade de assumir erros, cuja responsabilidade transferem a inimigos – alguns imaginários –, como fez Dilma Rousseff em todas as oportunidades que teve desde o início da tramitação do processo do impeachment.

Diante disso, pode-se prever que o lulopetismo não terá o menor escrúpulo de sabotar o governo Temer em tudo que estiver a seu alcance, agora mais restrito. No Congresso, está praticamente isolado, sem votos suficientes para se opor à maioria parlamentar que está sendo construída em torno do novo governo. Nas ruas, certamente continuará contando com a militância das entidades e movimentos como CUT, UNE, MTST, que gravitam em seu entorno e dos cofres públicos que certamente lhes serão fechados. O que indica que o País provavelmente terá que se habituar às “manifestações legítimas” de grupelhos de vândalos que infernizarão a vida dos brasileiros nas ruas e estradas.

Teses e narrativas

O Partido dos Trabalhadores adotou, durante anos, a prática democrática de debater teses apresentadas por seus grupos organizados, chamados de “tendências”. Ao chegar ao poder, esta prática foi reduzida pela centralização criada para fazer o governo funcionar. As “tendências” foram perdendo força e suas teses, aos poucos, abandonadas.

Nos últimos meses, o partido passou a adotar “narrativas”, criadas conforme a interpretação de alguns dirigentes ou seus marqueteiros, para serem transformadas em lendas acreditadas sem contestações, o contrário do debate de teses. À exceção de alguns poucos líderes, a exemplo de Tarso Genro, que se mantêm fiéis a teses.

Charge (Foto: Miguel)

Foi propalada a lenda de que os programas de transferência de renda foram inventados e criados, em 2004, pelo governo Lula. A narrativa ignora o programa Bolsa Escola, criado pelo governo do PT no Distrito Federal, em 1995, espalhado para diversas cidades, inclusive São Paulo, no governo da Marta Suplicy, e depois adotado pelo governo Fernando Henrique, em 2001.

O programa foi ampliado com o nome de Bolsa Família, mas, ao relegar o aspecto educacional, transformou-se em instrumento de assistência social. Em 2009, foi criada a narrativa de que o pré-sal era um produto do governo Lula e que suas receitas salvariam o Brasil, especialmente educação e saúde. Anos depois, estes setores não viram os resultados prometidos, e a Petrobras luta para sobreviver após a rapinagem do petrolão.

Vendeu-se a narrativa de que o Brasil havia superado o quadro de pobreza e que 35 milhões ingressaram na classe média, como a família que recebesse em 2012 renda per capita mensal entre R$ 291 e R$ 1.091. Este baixo valor e a elevada e persistente inflação desmoralizaram a narrativa.

Apresentaram a lenda de que as generosas desonerações fiscais seriam capazes de transformar a crise mundial em uma marolinha brasileira. Graças às cotas, positivas, mas localizadas e restritas a raras pessoas, houve a narrativa de que os filhos de todos os pobres tinham vagas nas universidades, mesmo sem a melhoria da educação básica, porque raríssimos pobres terminam o ensino médio com qualidade.

Agora, passa-se a narrativa de que o impeachment é golpe, mesmo se for comprovado crime de responsabilidade previsto na Constituição. Individualmente, cada um pode ter razões para duvidar se as gravidades dos fatos apresentados na petição do impeachment justificam a destituição de uma presidente eleita por mais de 53 milhões de votos.

Mas não há razão para acreditar na narrativa de golpe, se o procedimento estiver seguindo as normas, leis e ritos constitucionais, conforme seguiu no caso do ex-presidente Fernando Collor. Esta narrativa é, porém, um direito do partido na estratégia eleitoral para 2018. É lamentável, porém, que o partido das “teses” tenha se transformado no partido das “narrativas”.

Atenção, profetas!

Vivemos uma época de Dilmas magras e quem sabe o que vai acontecer nos próximos meses ou está mentindo ou é petista.
Agamenon Mendes Pedreira 

Câmara premia com mordomias a imoralidade

Existem políticos piores e melhores. Mas ficou mais difícil distinguir uns dos outros depois que a Lava Jato comprovou que a política virou apenas mais uma ramificação do crime organizado. Há dez dias, o STF afastou Eduardo Cunha do mandato e da poltrona de presidente da Câmara. Fez isso porque, “além de representar risco para as investigações penais” abertas contra ele, o deputado tornou-se “um pejorativo que conspira contra a própria dignidade da Câmara”.

A Suprema Corte concluiu que a presença de Cunha no comando feria os “princípios de probidade e moralidade que devem governar o comportamento dos agentes políticos.'' O que fez a Câmara? Bem, a mesa diretora da Casa acaba de baixar uma resolução concedendo à improbidade todas as mordomias que o dinheiro —do contribuinte— pode pagar.


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Mesmo sem trabalhar, Cunha receberá salário integral. Coisa de R$ 33.763 por mês. Continuará morando na residência oficial da Câmara, assentada à beira de um lago, no bairro mais caro e elegante da Capital. Ali, Cunha terá cama, comida e roupa lavada com verbas públicas. Manterá também a prerrogativa de usar carro oficial com motorista, avião da FAB, seguranças, e até R$ 92 mil para pagar os salários dos funcionários de um gabinete cujo titular o STF suspendeu por tempo indeterminado.

Tudo foi feito em perfeito desacordo com a opinião dos técnicos da Câmara, que opinaram a favor da supressão de regalias de Cunha. O primeiro-secretário da Câmara, deputado Beto Mansur (PRB-SP), alegou que, na falta de melhor critério, os deputados que dirigem a Casa decidiram que Cunha deveria receber as mesmas regalias concedidas à presidente afastada Dilma Rousseff.

Seria injusto dizer que a decisão da Câmara representa mais um caso de corporativismo. Já não se trata de mero espírito de corpo, mas de espírito de porco. Se os resíduos mentais que inspiram esse tipo de decisão fossem concretos, não haveria esgoto que bastasse.

A diferença democrática

Em 1992 bastaram menos de quatro meses entre a denúncia e a decisão de renunciar. No atual, já foram oito meses, e podem ser mais seis até o final. O rito é o mesmo, o rigor, não. O parecer que hoje discutimos possui 128 páginas, o mesmo parecer de 1992 continha meia página, com apenas dois parágrafos. Em 1992 fui instado a renunciar, na suposição de que as acusações fossem verdadeiras. Me utilizei de advogados particulares, dois anos depois fui absolvido de todas as acusações no Supremo Tribunal Federal
Senador Fernando Collor de Mello, em seu voto a favor do impeachment

O crepúsculo das esquerdas latino-americanas

Um após outro, os ícones das esquerdas latino-americanas caem como peças de um dominó que avança de forma inexorável. Deve-se falar em esquerdas, no plural, pois os projetos políticos encarnados pelo chavismo, pelo kirchnerismo, pelo PT brasileiro ou por Evo Morales são diferentes entre si. Mas é de uma evidência cristalina o fato de que grande parte das formações soi-disant progressistas do subcontinente, que dominaram o cenário durante uma longa década, já escutam soar suas badaladas fúnebres.

O chavismo, que conduz a Venezuela rumo a uma hiperinflação de estilo zimbabuense em meio a taxas de criminalidade terríveis, sofreu uma derrota acachapante nas últimas eleições legislativas; o kirchnerismo foi despejado da Casa Rosada; Evo Morales recebeu um sonoro não diante do seu desejo de se perpetuar no poder; até mesmo Michelle Bachelet assiste vê fendas enormes se abrirem em sua antiga reputação impoluta devido às manobras realizadas por seu filho; agora, o projeto político inaugurado pelo carismático Lula, mantido por Rousseff e admirado, à sua hora, por meio mundo, sofre o seu próprio Armagedon, com o impeachment de vento em popa e o país inteiro se afundando no gelo da recessão e na lama da corrupção.


O que levou a esse Crepúsculo dos Deuses ("Götterdämmerung", a quarta e última ópera do ciclo do Anel dos Nibelungos), de dramaticidade wagneriana? Obviamente, cada caso tem as suas próprias explicações. Mas é possível listar alguns denominadores comuns.

Sem dúvida, o fim da bonança em relação às matérias primas fez secar abruptamente o fluxo de dinheiro que financiou boa parte da festa na região. Com níveis distintos, todos esses projetos enfocaram bastante a redistribuição de renda, mas talvez não atentaram o suficiente para o fomento da geração de riqueza, investimento, diversificação. Burocracias desesperadoras, protecionismo, corrupção e expropriações em diferentes gradações, conforme o caso, não ajudaram em nada a vários países da região a se prepararem para a violenta aterrissagem por que passam agora.

Por outro lado, a perpetuação no poder é sempre tóxica, e tende a gerar excrescências tumorais corruptas até mesmo nos lares com credenciais democráticas das mais consolidadas.

Contra esses cânceres, trava-se neste momento, em vários países da região, uma verdadeira ofensiva judicial, por vezes bastante violenta (era mesmo necessário deter Lula para que ele desse depoimento?); esse aspecto, que à primeira vista deixaria Montesquieu feliz, se transforma muito rapidamente de virtude em vício quando adquire os traços de uma luta política por meios judiciais.

A questão do equilíbrio entre os poderes traz à tona os grandes riscos de ordem sistêmica que a América Latina enfrenta nessa gigantesca transição política regional. Quase todos os pilares imprescindíveis de uma vida democrática saudável estão sendo – e serão – submetidos a duras provas. Oxalá as diferentes sociedades civis, cada vez mais amadurecidas, consigam encaixar essa mudança política nos trilhos de uma alternância democrática ordenada, com políticas inclusivas inteligentes, com admissão leal das derrotas, com vitórias que evitem gestos revanchistas que normalmente levam apenas a incêndios políticos e à miséria econômica. Parafraseando o célebre desafio lançado por Dante ao seu próprio intelecto ao empreender a construção da Divina Comédia: América Latina, “qui si parrà la tua nobilitate”. Aqui se medirá a sua nobreza, a sua capacidade de realizar uma tarefa que se anuncia como descomunal. Boa sorte.