sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Pensamento do Dia

 


A imigração e o neofascismo

O fascismo, em sua definição nos trabalhos de Hannah Arendt, De Felipe e Mosse, é um sistema onde um grupo radical de direita se acerva do poder com discurso de ódio contra um inimigo interno e um inimigo externo. O fascismo prevalece quando há uma compressão das classes médias, receosas do socialismo e cansadas da falta de benefícios dos sistemas eleitorais democráticos, como ocorrido na Alemanha e na Itália nas décadas de 1920 a 1940, e hoje em países da Europa, nos Estados Unidos, Brasil, Argentina e outros. Na Alemanha, o inimigo externo era a Rússia e o comunismo, o inimigo interno os judeus; no Brasil, externo a Venezuela e Cuba, interno a esquerda; nos Estados Unidos, externo os países do mundo que “se aproveitam” das relações comerciais com os US, interno os imigrantes e a esquerda.


A questão imigratória é um problema crescente no mundo. No final do século XIX e início do século XX, os imigrantes europeus que vinham para as américas eram trabalhadores qualificados, espremidos no mercado de trabalho em seus países, diante dos países americanos com suas fronteiras em expansão. Atualmente, a grande massa de imigrantes é de trabalhadores sem qualificação, que tangem a pobreza, excedentes em seus países. Hoje, o percentual de imigrantes nos Estados Unidos é de 15,3% de sua população total, Canadá 21,3%, Alemanha 18,8%, Inglaterra 13,8%, França 13,1%. Na Rússia, 8,0%. Na China, 0,1%, Índia 0,4%, Coreia do Sul 3,4%, Japão 2,2%. No Brasil, 0,4%, México 0,9%, Argentina 5,0%.

De 1960 a 2024, o PIB dos Estados Unidos caiu de 40% para 26% do PIB mundial; o da União Europeia (ou dos países que hoje integram a União Europeia) de 22% para 17%; a China de 4% para 17%; os países do BRICS hoje somando 29%. O Brasil, de 1,2% para 1,9%.

O discurso político contra a imigração se dá, principalmente, nos Estados Unidos, Canadá, e países da Europa. No Canadá, país que até há pouco tempo estimulava a imigração de mão-de-obra qualificada, cresce a aversão aos imigrantes, que geram o aumento do preço dos imóveis, com pressão no sistema de saúde e de bens sociais. Na Inglaterra, manifestações contra a imigração nesta semana gravaram a suástica nazista em vários prédios do governo. Na Alemanha, o AfD (Alternative für Deutschland) superou, pela primeira vez nas pesquisas, a preferência partidária em relação aos outros partidos, com 26% da população. Na Espanha, com população de 49 milhões e 85 milhões de turistas ano, ocorreram neste ano manifestações contra a presença dos turistas em seu país, que geram o aumento do preço da moradia devido aos Airbnb, aumento do preço da comida, e sobrecarga do sistema urbano. No Brasil e Argentina, países com problemas crônicos de falta de desenvolvimento, e na ausência de percentuais significativos de imigrantes, o discurso interno é contra a esquerda e os liberais. Neste último ano, o Departamento de Ciências Sociais da USP foi atacado 8 vezes por extremistas da direita, ataques contra os “comunistas” da USP. Na China, Índia e outros países da Ásia, o crescimento econômico e das classes médias, devido ao processo de urbanização, industrialização e tecnologia, e na ausência de fluxos imigratórios significativos, livra esses países desta questão, pelo menos por enquanto.

E assim vamos caminhando para o absurdo.

Com PEC vergonhosa, Câmara chafurda em seu esgoto moral

Com a aprovação da PEC da blindagem, já consagrada como PEC da bandidagem, a Câmara dos Deputados mostrou até que ponto vai a delinquência de sua maioria nesta legislatura. Os representantes do povo traem a missão republicana e colocam-se à altura de suas mais baixas ambições.

A bateria de dispositivos para impedir que congressistas possam responder à Justiça por suspeita ou evidência de crimes é uma das iniciativas mais descaradas da história política brasileira. A instituição do voto secreto para negar o acesso da lei à casta parlamentar, em mutreta do invertebrado Hugo Motta e do Centrão, nos leva aos tempos da ditadura militar, quando se sustentava uma farsa no Congresso para tentar tapar com a peneira o vale tudo do arbítrio institucionalizado.


Não é demais sublinhar que a deterioração ética não é novidade, mas certamente se agravou recentemente graças ao desgoverno de Jair Bolsonaro, ao entregar o Orçamento nas mãos de uma quadrilha que desvia recursos bilionários de emendas para seus próprios bolsos ou os de seus asseclas. Bolsonaro, não custa dizer: o golpista sórdido e sádico, condenado com autoridade a 27 anos de prisão, para cuja eleição não faltou apoio de setores de nossa elite econômica de visão curta, subdesenvolvida e arrivista.

A PEC contou com o apoio de filiados ao Partido dos Trabalhadores — que foi contra a aprovação, enquanto o governo liberou sua base. Trata-se, portanto, de um naufrágio ético não da direita, embora majoritária, ou da esquerda, mas da politica brasileira. Ressalte-se, se serve para algum consolo, que houve quem dos dois lados do espectro tenha se recusado a chancelar o plano de impunidade, que mais parece encomenda do PCC.

Alguns alegaram que o voto dissidente petista ajudaria num fantasioso acordo, na bacia das almas, para evitar —e isso não aconteceu— a aprovação da urgência de um projeto sem texto de anistia para golpistas, bandeira de radicais bolsonaristas, com a liderança do deputado desertor Eduardo Bolsonaro, sob proteção da casa, que, por todos os motivos, já deveria ter sido cassado.

São tempos muito difíceis, não apenas por aqui. A monstruosa onda antidemocrática e belicista que percorre o mundo, da América ao Oriente, aliada à crescente violência política e criminal nos deixa a sensação de que estamos na antessala de uma catástrofe de grandes proporções.

Não há dia em que não sejamos tocados pela barbárie em suas mais diversas manifestações, nos mais diversos territórios, nas mais diferentes situações.

De volta à política brasileira, há motivos para nos orgulharmos de nossa democracia defensiva, mencionada em muitos países, por veículos e personalidades de prestígio, como um exemplo a ser seguido. Infelizmente, forças obscuras, que nos acompanham desde sempre, não querem ou não conseguem dar o passo necessário para virarmos a chave histórica.

Tais correntes profundas, de origem, afinal, escravista e colonial, não raro se disfarçam com os enfeites de um liberalismo formalista e anacrônico, típico de nosso reacionarismo de punhos de renda.

Não é o caso da maioria na Câmara, que honra mesmo o velho banditismo político e chafurda em seu esgoto moral. Caberá ao Senado, espera-se, barrar os descalabros.

Tragédia americana

Até a semana passada eu nunca tinha ouvido falar em Charlie Kirk. Agora tenho a impressão de não ter ouvido falar em outra coisa ao longo de muitos e muitos dias, ou talvez meia dúzia de dias, mas extremamente longos. Eu preferia a versão anterior. Ignorance is bliss, dizem eles, e sabem do que estão falando: a ignorância é uma bênção.

Eu vi o vídeo do assassinato.

Foi uma das coisas mais horripilantes que já vi na internet, e olha que já vi muitas coisas horripilantes na internet. Cheguei no século passado, quando tudo era mato e ainda havia aberrações explícitas ao alcance de pessoas desavisadas. Vi venda aberta de drogas e de armas, vi vídeos de crimes medonhos e maldades inconcebíveis — coisas que hoje só se encontram procurando com cuidado (ou frequentando o X, esgoto da pior experiência humana). Carrego cicatrizes na alma.

Pouco depois o vídeo passou a circular desfocado, mas àquela altura já havia uma tempestade de ódio — a esquerda comemorando abertamente o assassinato, gente rindo e dançando, a direita promovendo uma caça às bruxas desenfreada, endossada oficialmente pelo vice-presidente e por uma quantidade de parlamentares e funcionários de alto escalão que deveriam ter mais juízo e compostura.

Um circo de horrores. Uma parada macabra. Uma exibição do pior que existe, Humanidade em estado bruto, sem freios nem verniz.


Uma página criada para denunciar quem festejou o crime recebeu mais de 60 mil queixas em apenas dois dias. Empresas foram assediadas, pessoas perderam contratos e empregos. O paradoxo, aliás, é gritante: a extrema direita, que prega a liberdade absoluta de expressão, mostrou-se de repente profundamente abalada com a liberdade de expressão alheia. A liberdade, pelo visto, só serve quando ecoa a própria voz.

Um chefe de Estado responsável estaria fazendo o possível e o impossível para pacificar o país, mas Trump sendo Trump sequestrou o funeral, marcado para o próximo domingo, e vai tirar o máximo proveito de cada centelha de indignação. A página da organização de Kirk, em tpusa.com, anuncia a cerimônia como se fosse um grande espetáculo, com line-up das principais atrações: fotos de Erika Kirk, Donald Trump e J.D. Vance, além da presença confirmada de Marco Rubio, Pete Hegseth, Tucker Carlson e mais meia dúzia de estrelas do firmamento trumpista. Um showmício travestido de despedida fúnebre.

É tudo horrível.

Violência política não é novidade, sobretudo nos Estados Unidos, onde pessoas públicas são assassinadas com certa regularidade. A novidade talvez seja a visão do horror em tempo real, a multiplicação instantânea de imagens capazes de amplificar ressentimentos e fúrias. Foi assim com o assassinato de George Floyd, que incendiou o país há cinco anos, e é assim agora com o de Charlie Kirk, cujas consequências mal começam a se desenhar. O tiro que o acertou não derrubou só um corpo: atingiu em cheio uma sociedade polarizada e já muito fragmentada, onde qualquer tentativa de diálogo deixou de existir.

O Congresso e o teatro do absurdo

Uma cena estarrecedora no Congresso Nacional. Deputados orando de mãos dadas, aos gritos, após aprovarem a PEC que os blinda de punições por qualquer crime. Qualquer um. Estupro, assassinato, corrupção. Estamos diante de uma das piores encenações do Congresso Nacional. É o teatro do absurdo em ação.

“Seja feita a vossa vontade, assim na terra como no Céu. O pão nosso de cada dia nos dai hoje. Perdoai-nos as nossas ofensas, assim como nós perdoamos a quem nos tem ofendido. E não nos deixeis cair em tentação. Mas livrai-nos do mal. Améééém”. Gargalhadas.

Sempre achamos que já vimos tudo de hipocrisia e cinismo no nosso Congresso. Mas nos enganamos. É um escárnio o presidente da Câmara, Hugo Motta, com aquele cabelo engomadinho esticado para trás, dizer que a PEC da Bandidagem “fortalece a atividade parlamentar”.


Outra declaração pra lá de cínica: “ajuda a pacificar a sociedade” a urgência da anistia para os golpistas de 8 de janeiro, já condenados pelo STF. Seria cômico se não fosse trágico. “O Brasil precisa de pacificação. Não se trata de apagar o passado (...) mas o país precisa andar”.

Andar pra trás. Até a senadora Damares Alves, colega de Motta no Republicanos, e ministra “terrivelmente cristã” no governo Bolsonaro, é contra a PEC da Blindagem. Meu Deus, pela primeira vez uma fala de Damares faz total sentido. A senadora que viu Jesus na goiabeira teve um acesso de lucidez.

“Essa PEC será recepcionada pela sociedade com muito horror”, disse Damares. “Imagine um parlamentar acusado de pedofilia, a minha causa. E para que um inquérito seja aberto contra ele, a gente é que vai decidir? No voto secreto? Ah não... é só questão de improbidade. Não, será todo um rol de crimes”.

PEC da bandidagem aprovada com louvor a Deus. Voto secreto. Para autorizar ou barrar investigações de coleguinhas, pois covardes são todos. Votação de anistia para os golpistas vândalos do Congresso e do Supremo, incitados por Bolsonaro e generais. Tudo madrugada adentro. Brigalhada por privilégios deixa aceso o bando de preguiçosos de terno e gravata.

Manobra para manter o mandato de um deputado que se autoexilou nos EUA para conspirar contra o Brasil. Aliás, como explicar para o eleitor que um líder da minoria na Câmara pode faltar à vontade e receber fora do país sua gorda remuneração como parlamentar – mas um deputado não?

Se os nobres deputados empregassem um centésimo dessa energia votando pautas que interessam à população, a Câmara estaria no caminho certo. Mas o que vemos é uma casta já privilegiada legislando freneticamente e sem pudor pela própria impunidade. Dá vergonha alheia. E sensação de impotência.

Claro que esses votos na Câmara podem ser revertidos pelo Senado de Davi Alcolumbre, hoje o maior acossado do Congresso. Claro que há etapas e obstáculos à frente do rolo compressor comandado pelo Centrão. O grande responsável pelo país não andar é o tíbio Hugo Motta. O Brasil espera não Godot, mas Alcolumbre. Será em vão?

O porquê de associar nosso Congresso ao Teatro do Absurdo é claro. Esse movimento teatral, surgido após a Segunda Guerra, expressava a desolação, a falta de sentido e a dificuldade de comunicação da humanidade. O crítico Martin Esslin cunhou assim peças que usam situações ilógicas para refletir sobre a condição humana.

A Câmara se tornou o palco do absurdo, dando inveja a Beckett, Ionesco e Jean Genet. E nós? Espectadores indignados, mas passivos, nos limitando a abaixo-assinados digitais, enquanto o mundo protesta nas ruas.