sexta-feira, 19 de setembro de 2025

Tragédia americana

Até a semana passada eu nunca tinha ouvido falar em Charlie Kirk. Agora tenho a impressão de não ter ouvido falar em outra coisa ao longo de muitos e muitos dias, ou talvez meia dúzia de dias, mas extremamente longos. Eu preferia a versão anterior. Ignorance is bliss, dizem eles, e sabem do que estão falando: a ignorância é uma bênção.

Eu vi o vídeo do assassinato.

Foi uma das coisas mais horripilantes que já vi na internet, e olha que já vi muitas coisas horripilantes na internet. Cheguei no século passado, quando tudo era mato e ainda havia aberrações explícitas ao alcance de pessoas desavisadas. Vi venda aberta de drogas e de armas, vi vídeos de crimes medonhos e maldades inconcebíveis — coisas que hoje só se encontram procurando com cuidado (ou frequentando o X, esgoto da pior experiência humana). Carrego cicatrizes na alma.

Pouco depois o vídeo passou a circular desfocado, mas àquela altura já havia uma tempestade de ódio — a esquerda comemorando abertamente o assassinato, gente rindo e dançando, a direita promovendo uma caça às bruxas desenfreada, endossada oficialmente pelo vice-presidente e por uma quantidade de parlamentares e funcionários de alto escalão que deveriam ter mais juízo e compostura.

Um circo de horrores. Uma parada macabra. Uma exibição do pior que existe, Humanidade em estado bruto, sem freios nem verniz.


Uma página criada para denunciar quem festejou o crime recebeu mais de 60 mil queixas em apenas dois dias. Empresas foram assediadas, pessoas perderam contratos e empregos. O paradoxo, aliás, é gritante: a extrema direita, que prega a liberdade absoluta de expressão, mostrou-se de repente profundamente abalada com a liberdade de expressão alheia. A liberdade, pelo visto, só serve quando ecoa a própria voz.

Um chefe de Estado responsável estaria fazendo o possível e o impossível para pacificar o país, mas Trump sendo Trump sequestrou o funeral, marcado para o próximo domingo, e vai tirar o máximo proveito de cada centelha de indignação. A página da organização de Kirk, em tpusa.com, anuncia a cerimônia como se fosse um grande espetáculo, com line-up das principais atrações: fotos de Erika Kirk, Donald Trump e J.D. Vance, além da presença confirmada de Marco Rubio, Pete Hegseth, Tucker Carlson e mais meia dúzia de estrelas do firmamento trumpista. Um showmício travestido de despedida fúnebre.

É tudo horrível.

Violência política não é novidade, sobretudo nos Estados Unidos, onde pessoas públicas são assassinadas com certa regularidade. A novidade talvez seja a visão do horror em tempo real, a multiplicação instantânea de imagens capazes de amplificar ressentimentos e fúrias. Foi assim com o assassinato de George Floyd, que incendiou o país há cinco anos, e é assim agora com o de Charlie Kirk, cujas consequências mal começam a se desenhar. O tiro que o acertou não derrubou só um corpo: atingiu em cheio uma sociedade polarizada e já muito fragmentada, onde qualquer tentativa de diálogo deixou de existir.

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