segunda-feira, 14 de agosto de 2023
Nossos alunos precisam de livros?
Nosso sistema educacional não tem oferecido muitos motivos de orgulho para os brasileiros. Nossos resultados em rankings internacionais e a perda de qualidade, a pretexto da universalização, são fatos conhecidos. É necessário, ainda, registrar certo marasmo da máquina pública educacional, algo facilmente percebido por todos os que já tentaram colaborar no aperfeiçoamento do sistema educacional e tiveram de enfrentar marasmo, má vontade e burocracia sem fim. Ideias novas, olhares diferentes e quebra de rotina parecem ameaças para muitos ocupantes de cargos de relevo nessa máquina emperrada. Dogmas e acomodação se unem para manter o mesmo, por pior que pareça.
Diante dessa realidade, poderia parecer que a reação à decisão do governo de São Paulo de abrir mão da verba do Ministério da Educação (MEC) para a compra de livros e a decretação do fim do livro didático impresso em papel não passam de reação do marasmo contra o dinamismo, da mesmice contra o novo. Só que não. Desta vez, temos algumas coisas muito sérias e até assustadoras aparecendo no horizonte, e é necessário falar sobre elas com clareza.
No fim das contas, ficamos com a impressão de que, no frenesi de apresentar novidades – e haveria muitas para serem apresentadas com o objetivo de melhorar a educação em nosso Estado –, o governo estadual está errando o alvo pelo simples motivo de desconhecer o assunto. Na melhor das hipóteses.
O governo fez um movimento só, mas está atacando em duas frentes: liquida com o livro impresso em papel e acaba com a possibilidade da escolha do livro pelo professor. Vou tratar das duas.
Por mais que tenha jeito de coisa moderninha, já há um consenso científico contrário à ideia de que o digital substitui o impresso em todas as situações, em todos os tipos de texto. Nada contra o digital, desde que bem utilizado. Eu mesmo tenho um aparelho leve que carrega bom número de livros e não deixo de leválo comigo quando viajo e não posso transportar todos os livros físicos que lerei durante o período em que estiver fora. Também leio mensagens no celular, embora me recuse a estabelecer relação de dependência com ele. Mas sou um adulto, e estamos falando de crianças e adolescentes em fase de formação. E aí, prezado governador, temos de ouvir quem sabe, não quem simplesmente quer inovar.
Uma das mais importantes e respeitadas especialistas, a americana Maryanne Wolf, em seu livro O cérebro no mundo digital, deixa isso bem claro, particularmente quando demonstra que a leitura em papel permite maiores concentração e aproveitamento, menos interferência de fatores externos e, com isso, provoca um desenvolvimento cerebral mais intenso, duradouro e consequente. Se o objetivo dos educadores e administradores do setor de educação for – como deveria ser – a formação de gente qualificada, capaz de pensar por si própria, a partir de um repertório sólido de informações, o texto escrito e impresso em papel é fundamental. Nada contra o uso de material digital mais tarde, nada contra a utilização de material digital complementar, mas não como material exclusivo, particularmente no período de formação. De resto, é uma falsa novidade. Até quem fez isso há algum tempo já voltou atrás.
No entanto, a meu ver, este não é sequer o problema mais grave. O projeto apresentado pelo governo estadual vai na contramão do seu apregoado liberalismo, de sua suposta visão democrática. Vai, inclusive, na contramão de algo que o governador Tarcísio de Freitas gosta de alardear, principalmente quando quer mostrar seu distanciamento com relação aos demais políticos: a prioridade que dá à competência.
O projeto prevê a aplicação de um conceito perigoso, o da existência da verdade única, uma vez que sugere existir um grupo de sábios, donos da Verdade (essa mesma, com V maiúsculo), que produziriam um assustador livro único, que substituiria todos os livros escritos e publicados por todas as editoras especializadas existentes no Brasil (a propósito, não estou ligado a nenhuma editora de livros didáticos). Assustador, sim. Se o governo federal falar em livro único, os liberais protestarão. Livro único existiu na União Soviética stalinista. Livro único, queridos liberais, era o que circulava na Alemanha nazista. Livro único cheira a pregação ideológica.
No sistema atual, o Ministério da Educação banca os livros escolhidos por cada professor, em cada escola de cada um dos Estados do País (e esperamos que não mude de rumo). É muito razoável que o professor seja a pessoa mais indicada para escolher o livro mais adequado para seus alunos. Ele sabe os alunos que tem na classe, o potencial de cada um deles, o universo em que vivem, suas referências culturais. Ou devo entender que o senhor secretário de Educação, que teve sucesso como empresário, sabe melhor do que o professor qual o livro que este deve utilizar com seus alunos?
Diante dessa realidade, poderia parecer que a reação à decisão do governo de São Paulo de abrir mão da verba do Ministério da Educação (MEC) para a compra de livros e a decretação do fim do livro didático impresso em papel não passam de reação do marasmo contra o dinamismo, da mesmice contra o novo. Só que não. Desta vez, temos algumas coisas muito sérias e até assustadoras aparecendo no horizonte, e é necessário falar sobre elas com clareza.
No fim das contas, ficamos com a impressão de que, no frenesi de apresentar novidades – e haveria muitas para serem apresentadas com o objetivo de melhorar a educação em nosso Estado –, o governo estadual está errando o alvo pelo simples motivo de desconhecer o assunto. Na melhor das hipóteses.
O governo fez um movimento só, mas está atacando em duas frentes: liquida com o livro impresso em papel e acaba com a possibilidade da escolha do livro pelo professor. Vou tratar das duas.
Por mais que tenha jeito de coisa moderninha, já há um consenso científico contrário à ideia de que o digital substitui o impresso em todas as situações, em todos os tipos de texto. Nada contra o digital, desde que bem utilizado. Eu mesmo tenho um aparelho leve que carrega bom número de livros e não deixo de leválo comigo quando viajo e não posso transportar todos os livros físicos que lerei durante o período em que estiver fora. Também leio mensagens no celular, embora me recuse a estabelecer relação de dependência com ele. Mas sou um adulto, e estamos falando de crianças e adolescentes em fase de formação. E aí, prezado governador, temos de ouvir quem sabe, não quem simplesmente quer inovar.
Uma das mais importantes e respeitadas especialistas, a americana Maryanne Wolf, em seu livro O cérebro no mundo digital, deixa isso bem claro, particularmente quando demonstra que a leitura em papel permite maiores concentração e aproveitamento, menos interferência de fatores externos e, com isso, provoca um desenvolvimento cerebral mais intenso, duradouro e consequente. Se o objetivo dos educadores e administradores do setor de educação for – como deveria ser – a formação de gente qualificada, capaz de pensar por si própria, a partir de um repertório sólido de informações, o texto escrito e impresso em papel é fundamental. Nada contra o uso de material digital mais tarde, nada contra a utilização de material digital complementar, mas não como material exclusivo, particularmente no período de formação. De resto, é uma falsa novidade. Até quem fez isso há algum tempo já voltou atrás.
No entanto, a meu ver, este não é sequer o problema mais grave. O projeto apresentado pelo governo estadual vai na contramão do seu apregoado liberalismo, de sua suposta visão democrática. Vai, inclusive, na contramão de algo que o governador Tarcísio de Freitas gosta de alardear, principalmente quando quer mostrar seu distanciamento com relação aos demais políticos: a prioridade que dá à competência.
O projeto prevê a aplicação de um conceito perigoso, o da existência da verdade única, uma vez que sugere existir um grupo de sábios, donos da Verdade (essa mesma, com V maiúsculo), que produziriam um assustador livro único, que substituiria todos os livros escritos e publicados por todas as editoras especializadas existentes no Brasil (a propósito, não estou ligado a nenhuma editora de livros didáticos). Assustador, sim. Se o governo federal falar em livro único, os liberais protestarão. Livro único existiu na União Soviética stalinista. Livro único, queridos liberais, era o que circulava na Alemanha nazista. Livro único cheira a pregação ideológica.
No sistema atual, o Ministério da Educação banca os livros escolhidos por cada professor, em cada escola de cada um dos Estados do País (e esperamos que não mude de rumo). É muito razoável que o professor seja a pessoa mais indicada para escolher o livro mais adequado para seus alunos. Ele sabe os alunos que tem na classe, o potencial de cada um deles, o universo em que vivem, suas referências culturais. Ou devo entender que o senhor secretário de Educação, que teve sucesso como empresário, sabe melhor do que o professor qual o livro que este deve utilizar com seus alunos?
Jeito batráquio de ser
Desde os meus 20 anos me assaltou o pessimismo incurável com que vou atravessando esta existência no pior dos piores países possíveis e imagináveis… A atmosfera moral é magnífica para os batráquios… e é nefasta a política que nos desgoverna
Euclides da Cunha
Desarmando um vexame
"La putenza caca n'muca alla giustizia". A tradução literal deste provérbio sardo talvez seja por demais chula, mas o dialeto torna ao menos pitoresco o significado: o poder faz algo execrável na boca da Justiça. É o que se depreende do vexaminoso inquérito do Exército sobre os atos golpistas de janeiro. Internamente, angélica paz. Fora, no acampamento protegido, havia furtos, denúncia de estupro e porte ilegal de armas, mas militarmente "não foram identificados aspectos que pudessem comprometer a segurança orgânica dos aquartelamentos". Logo, nenhuma responsabilidade pelo exterior dos quartéis.
Sempre foram tênues os limites entre sentimento e realidade. A imprecisão é mais acentuada no plano individual, mas se manifesta em nível coletivo, sobretudo em instituições com forte autopreservação corporativa. Um estado real de coisas, ou seja, um fato, pode estar à frente, mas o sentimento ilhado recusa-se a aceitá-lo. Assim, um grupo em cima do muro protege-se de sua própria indecisão com o desconhecimento como álibi para irresponsabilidade moral. Isso ocorre às vezes como mecanismo de defesa, já que o perigo de incorrer em algum malefício parece ser menor quando dele se está inconsciente.
Mas quando esse grupo é instituição de Estado, democraticamente sustentada pelo povo, inconsciência não se caracteriza como desculpa, e sim como delito. O acampamento dos descontentes com democracia tem precedente histórico na "Strafexpedition" (expedição punitiva), popular no começo do nazismo: maltas flutuantes que não sabiam se a solução para seus problemas pessoais estaria na política ou no crime. Entre nós, eram incubadoras de caos golpista, evidente a quaisquer observadores.
Um Exército a que se possa apor o adjetivo "nacional" não é mero corpo técnico de segurança. É instituição no rigor sociológico do termo, ou seja, transmissão de saberes, além de práticas de preservação territorial e demográfica do país. Armamento, claro, mas principalmente uma formação compatível com a totalidade nacional e não com o imaginário de casa-grande das classes dirigentes. E nada de soberana força moderadora: soberano é o povo transcrito na Constituição.
Num país onde guerra é peça retórica há quase dois séculos, jamais caberia às Forças Armadas fomentarem algo como "valentia inquebrantável dos cidadãos" (programa de Goebbels na Alemanha nazista), mas a coragem ética de ver o real dentro e fora de si mesmas. Logo, outro tipo de formação humana, centrada em pesquisa tecnológica e avessa a rescaldos ditatoriais ou ensaios práticos de cegueira como o relatório da intentona de janeiro, que faz com a Justiça o execrável do provérbio sardo. Vexame verde-amarelo. Valeria escutar a ética: "O que não se pode falar, deve-se calar" (Ludwig Wittgenstein).
Sempre foram tênues os limites entre sentimento e realidade. A imprecisão é mais acentuada no plano individual, mas se manifesta em nível coletivo, sobretudo em instituições com forte autopreservação corporativa. Um estado real de coisas, ou seja, um fato, pode estar à frente, mas o sentimento ilhado recusa-se a aceitá-lo. Assim, um grupo em cima do muro protege-se de sua própria indecisão com o desconhecimento como álibi para irresponsabilidade moral. Isso ocorre às vezes como mecanismo de defesa, já que o perigo de incorrer em algum malefício parece ser menor quando dele se está inconsciente.
Mas quando esse grupo é instituição de Estado, democraticamente sustentada pelo povo, inconsciência não se caracteriza como desculpa, e sim como delito. O acampamento dos descontentes com democracia tem precedente histórico na "Strafexpedition" (expedição punitiva), popular no começo do nazismo: maltas flutuantes que não sabiam se a solução para seus problemas pessoais estaria na política ou no crime. Entre nós, eram incubadoras de caos golpista, evidente a quaisquer observadores.
Um Exército a que se possa apor o adjetivo "nacional" não é mero corpo técnico de segurança. É instituição no rigor sociológico do termo, ou seja, transmissão de saberes, além de práticas de preservação territorial e demográfica do país. Armamento, claro, mas principalmente uma formação compatível com a totalidade nacional e não com o imaginário de casa-grande das classes dirigentes. E nada de soberana força moderadora: soberano é o povo transcrito na Constituição.
Num país onde guerra é peça retórica há quase dois séculos, jamais caberia às Forças Armadas fomentarem algo como "valentia inquebrantável dos cidadãos" (programa de Goebbels na Alemanha nazista), mas a coragem ética de ver o real dentro e fora de si mesmas. Logo, outro tipo de formação humana, centrada em pesquisa tecnológica e avessa a rescaldos ditatoriais ou ensaios práticos de cegueira como o relatório da intentona de janeiro, que faz com a Justiça o execrável do provérbio sardo. Vexame verde-amarelo. Valeria escutar a ética: "O que não se pode falar, deve-se calar" (Ludwig Wittgenstein).
O Grande Mudo (leia-se: o Exército) cala-se para esconder a verdade
Convenientemente, o Exército, chamado de O Grande Mudo, perdeu a voz. Digo que perdeu porque todas as vezes que lhe pareceu conveniente, falou, falou alto, causando graves danos à democracia. Sim, pois apesar de se dizer mudo, o Exército fala.
Revisite a história do país e conte o número de vezes que o mudo falou. Cito de memória: falou para pôr fim ao Império e dar início à República. O marechal amigo do Rei o traiu. A Proclamação da República foi um golpe que a população assistiu bestificada.
Falou para levar Getúlio Vargas ao poder em 1930. Vargas governou como ditador até 1945. Acabou deposto pelos militares. Acabou voltando em 1950 nos braços do povo. Matou-se quatro anos depois sob pressão de O Grande Mudo para que renunciasse.
Juscelino Kubitschek, eleito presidente em 1956, enfrentou duas rebeliões militares. Dele, Carlos Lacerda, líder da direita armada e desarmada, disse que não poderia ser candidato; se fosse, que não poderia se eleger; se eleito, não deveria governar.
Foi um Jânio Quadros de porre que renunciou à Presidência com apenas seis meses de mandato. Diante da oposição militar à posse do vice, foi preciso trocar o presidencialismo pelo parlamentarismo. João Goulart foi derrubado três anos depois.
Este país viveu 21 anos sob uma ditadura militar. A democracia foi suprimida a pretexto de defendê-la do comunismo. Torturou-se e matou-se adversários do regime. O Grande Mudo negou que houvesse tortura e matança. Farta documentação prova que houve.
Com o fim da ditadura, o Exército passou a falar em voz baixa. Mas nunca parou de falar. Falou sobre o tamanho do mandato do presidente José Sarney: queria cinco anos e a Constituinte só queria dar quatro; deu cinco, para afastar a ameaça de golpe.
Falou contra a instalação da Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura. Falou contra a concessão de habeas corpus a Lula que estava preso e poderia ser solto – e por 4 votos contra 3, o Supremo Tribunal Federal negou o habeas corpus.
Falou, fingindo que era mudo, para eleger Bolsonaro presidente. E a favor dele, falou nos últimos quatro anos para respaldá-lo e, se possível, reelegê-lo. Não perdeu a voz sequer quando Bolsonaro foi derrotado, abrigando à sua porta os golpistas do 8 de janeiro.
Se o Exército é devoto da Constituição, se falou quando não deveria, por que não fala agora sobre a participação de diversos dos seus membros na tentativa mais recente de golpe e na roubalheira das joias presenteadas ao Brasil e surrupiadas por Bolsonaro?
Não vale a desculpa de que não fala em casos sob investigação. É mentira. No 1º de maio de 1981, militares plantaram bombas para matar quem assistia a um show de música no Riocentro. Uma bomba explodiu no colo de um dos terroristas, matando-o.
O Grande Mudo montou um falso inquérito para concluir que a culpa era da esquerda. Outro falso inquérito de 1975 concluiu que o jornalista Vladimir Herzog se enforcou numa dependência do Exército, em São Paulo. Mentira. Ele morreu sob tortura.
Por que o Exército, no mais das vezes, só fala para esconder ou mentir? E por que ignora ocasiões em que poderia falar a verdade? A doutrina da mudez política do Exército, uma invenção francesa do início do século passado, nunca prosperou por aqui.
O grito oficial de guerra do Exército brasileiro é: “Braço forte, Mão amiga”. Grande Mudo: cadê a mão amiga da verdade? Foi amputada? Nunca existiu? Seu patrono, Duque de Caxias, sentiria vergonha se fosse vivo.
Revisite a história do país e conte o número de vezes que o mudo falou. Cito de memória: falou para pôr fim ao Império e dar início à República. O marechal amigo do Rei o traiu. A Proclamação da República foi um golpe que a população assistiu bestificada.
Falou para levar Getúlio Vargas ao poder em 1930. Vargas governou como ditador até 1945. Acabou deposto pelos militares. Acabou voltando em 1950 nos braços do povo. Matou-se quatro anos depois sob pressão de O Grande Mudo para que renunciasse.
Juscelino Kubitschek, eleito presidente em 1956, enfrentou duas rebeliões militares. Dele, Carlos Lacerda, líder da direita armada e desarmada, disse que não poderia ser candidato; se fosse, que não poderia se eleger; se eleito, não deveria governar.
Foi um Jânio Quadros de porre que renunciou à Presidência com apenas seis meses de mandato. Diante da oposição militar à posse do vice, foi preciso trocar o presidencialismo pelo parlamentarismo. João Goulart foi derrubado três anos depois.
Este país viveu 21 anos sob uma ditadura militar. A democracia foi suprimida a pretexto de defendê-la do comunismo. Torturou-se e matou-se adversários do regime. O Grande Mudo negou que houvesse tortura e matança. Farta documentação prova que houve.
Com o fim da ditadura, o Exército passou a falar em voz baixa. Mas nunca parou de falar. Falou sobre o tamanho do mandato do presidente José Sarney: queria cinco anos e a Constituinte só queria dar quatro; deu cinco, para afastar a ameaça de golpe.
Falou contra a instalação da Comissão da Verdade para apurar os crimes da ditadura. Falou contra a concessão de habeas corpus a Lula que estava preso e poderia ser solto – e por 4 votos contra 3, o Supremo Tribunal Federal negou o habeas corpus.
Falou, fingindo que era mudo, para eleger Bolsonaro presidente. E a favor dele, falou nos últimos quatro anos para respaldá-lo e, se possível, reelegê-lo. Não perdeu a voz sequer quando Bolsonaro foi derrotado, abrigando à sua porta os golpistas do 8 de janeiro.
Se o Exército é devoto da Constituição, se falou quando não deveria, por que não fala agora sobre a participação de diversos dos seus membros na tentativa mais recente de golpe e na roubalheira das joias presenteadas ao Brasil e surrupiadas por Bolsonaro?
Não vale a desculpa de que não fala em casos sob investigação. É mentira. No 1º de maio de 1981, militares plantaram bombas para matar quem assistia a um show de música no Riocentro. Uma bomba explodiu no colo de um dos terroristas, matando-o.
O Grande Mudo montou um falso inquérito para concluir que a culpa era da esquerda. Outro falso inquérito de 1975 concluiu que o jornalista Vladimir Herzog se enforcou numa dependência do Exército, em São Paulo. Mentira. Ele morreu sob tortura.
Por que o Exército, no mais das vezes, só fala para esconder ou mentir? E por que ignora ocasiões em que poderia falar a verdade? A doutrina da mudez política do Exército, uma invenção francesa do início do século passado, nunca prosperou por aqui.
O grito oficial de guerra do Exército brasileiro é: “Braço forte, Mão amiga”. Grande Mudo: cadê a mão amiga da verdade? Foi amputada? Nunca existiu? Seu patrono, Duque de Caxias, sentiria vergonha se fosse vivo.
A casa caiu
Lá pelos idos de 1940, a mineradora sul-africana De Beers Consolidated lançou aquela que é considerada a campanha publicitária mais bem-sucedida do século XX:
— A diamond is forever.
Seja pela pegada sentimental (como prova de amor), seja por sugerir valor monetário eterno, a campanha em 23 línguas faz sucesso até hoje. E a pedra, sem nunca perder o brilho, afaga corações e bolsos. É na política que ela causa estragos, por não ser ali seu lugar. Foi numa manhã de outubro de 1979 que o presidente da França, Valéry Giscard d’Estaing, no poder havia cinco anos e com o horizonte acenando para uma futura reeleição, viu-se fulminado pela manchete do satírico parisiense Le Canard Enchaîné:
— Quando Giscard embolsava os diamantes de Bokassa.
Logo abaixo, o fac-símile da ordem de entrega de um mimo faiscante de 30 quilates, emitida em 1973 pelo déspota da República Centro-Africana, Jean-Bedel Bokassa. Destinatário: Giscard, então ministro das Finanças. A ordem estipulava inclusive o valor do regalo: 1 milhão de francos, algo como US$ 4,4 milhões em dinheiro de hoje. Foi uma bomba de que ele nunca mais se recuperaria. Perdeu a pose e a reeleição para o socialista François Mitterrand.
A bomba que desde a manhã de sexta-feira choca o país, atordoa Brasília e humilha as Forças Armadas deixa no chinelo o caso Giscard. Desencadeadas logo cedo por equipes da Polícia Federal (PF) com autorização do Supremo Tribunal Federal (leia-se, ministro Alexandre de Moraes), no âmbito do inquérito sobre milícias digitais, foram realizadas variadas ações de busca e apreensão. Entre outros, em endereços associados a um general do Exército — da reserva, porém com quatro estrelas na farda e prestígio na Força. Quem achou extrema a ação contra o general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e tenente-coronel Mauro Cid, atualmente preso, precisa debruçar-se sobre o relatório das investigações que embasam a decisão do ministro. Excepcionais pelo escopo, detalhamento e gravidade, as 105 páginas do despacho de Moraes estarrecem.
Daí o acerto da decisão, “diante de inúmeras publicações jornalísticas com informações incompletas da decisão proferida em 10/8/2023”, de quebrar o sigilo de operação tão cabeluda. Seria um dano irreparável manter fora da vista da sociedade a investigação que classifica como “organização criminosa” uma penca de aliados civis e militares do ex-presidente da República, suspeitos de envolvimento em pelo menos “cinco eixos principais” de atuação criminosa. Quanto maior a transparência na investigação, menor a chance de “narrativas alternativas” conseguirem alterar a realidade dos fatos apurados.
Por ora, o foco principal está na mirabolante ocultação e tentativa ilegal de venda, por parte dos envolvidos, de objetos presenteados a Bolsonaro na Presidência. São caudalosas as evidências de participação na trama de bolsonaristas raiz, como o general Mauro Cid, seu filho, o segundo-tenente da ativa Osmar Crivelatti (a serviço do chefe até hoje) ou o homem de todos os rolos Frederick Wassef, que faz as vezes de advogado da família Bolsonaro. Coadjuvantes com indícios de se verem encrencados também não faltam, assim como cenas, situações e diálogos absurdamente farsescos, não fossem eles alarmantes pelo grau de delinquência. Relógios cravejados de diamantes, joias e rosários islâmicos idem viajaram como clandestinos no avião presidencial para Orlando. Pelo relato substantivo das investigações, o esquema milionário de subtrair da República o que a ela pertence começou, no mínimo, já em meados de 2022. Acelerou com afoiteza e risco pouco antes e nas semanas que se seguiram à derrota eleitoral do chefe. Segundo mensagens eletrônicas recuperadas pela investigação, o surrupio do público para o privado incluiu até mesmo o filho Zero Quatro do presidente, Jair Renan. O caçulinha, depreende-se de e-mails dos auxiliares de Bolsonaro, se interessou por alguns itens e, com o beneplácito do pai, serviu-se no acervo da Documentação Histórica em julho do ano passado.
Daqui para a frente são só notícias amargas para o capitão que o Brasil manteve por quatro intermináveis anos no poder. Além de inelegível, Jair Bolsonaro provavelmente será chamado a depor sobre o imbróglio das joias; é possível que logo mais seu passaporte seja retido; provável que venha a ser indiciado, denunciado, julgado, quiçá condenado — não só pelo rastro de ladroagem deixado. Talvez ainda não saiba, mas sua casa já caiu.~
— A diamond is forever.
Seja pela pegada sentimental (como prova de amor), seja por sugerir valor monetário eterno, a campanha em 23 línguas faz sucesso até hoje. E a pedra, sem nunca perder o brilho, afaga corações e bolsos. É na política que ela causa estragos, por não ser ali seu lugar. Foi numa manhã de outubro de 1979 que o presidente da França, Valéry Giscard d’Estaing, no poder havia cinco anos e com o horizonte acenando para uma futura reeleição, viu-se fulminado pela manchete do satírico parisiense Le Canard Enchaîné:
— Quando Giscard embolsava os diamantes de Bokassa.
Logo abaixo, o fac-símile da ordem de entrega de um mimo faiscante de 30 quilates, emitida em 1973 pelo déspota da República Centro-Africana, Jean-Bedel Bokassa. Destinatário: Giscard, então ministro das Finanças. A ordem estipulava inclusive o valor do regalo: 1 milhão de francos, algo como US$ 4,4 milhões em dinheiro de hoje. Foi uma bomba de que ele nunca mais se recuperaria. Perdeu a pose e a reeleição para o socialista François Mitterrand.
A bomba que desde a manhã de sexta-feira choca o país, atordoa Brasília e humilha as Forças Armadas deixa no chinelo o caso Giscard. Desencadeadas logo cedo por equipes da Polícia Federal (PF) com autorização do Supremo Tribunal Federal (leia-se, ministro Alexandre de Moraes), no âmbito do inquérito sobre milícias digitais, foram realizadas variadas ações de busca e apreensão. Entre outros, em endereços associados a um general do Exército — da reserva, porém com quatro estrelas na farda e prestígio na Força. Quem achou extrema a ação contra o general Mauro Cesar Lourena Cid, pai do ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro e tenente-coronel Mauro Cid, atualmente preso, precisa debruçar-se sobre o relatório das investigações que embasam a decisão do ministro. Excepcionais pelo escopo, detalhamento e gravidade, as 105 páginas do despacho de Moraes estarrecem.
Daí o acerto da decisão, “diante de inúmeras publicações jornalísticas com informações incompletas da decisão proferida em 10/8/2023”, de quebrar o sigilo de operação tão cabeluda. Seria um dano irreparável manter fora da vista da sociedade a investigação que classifica como “organização criminosa” uma penca de aliados civis e militares do ex-presidente da República, suspeitos de envolvimento em pelo menos “cinco eixos principais” de atuação criminosa. Quanto maior a transparência na investigação, menor a chance de “narrativas alternativas” conseguirem alterar a realidade dos fatos apurados.
Por ora, o foco principal está na mirabolante ocultação e tentativa ilegal de venda, por parte dos envolvidos, de objetos presenteados a Bolsonaro na Presidência. São caudalosas as evidências de participação na trama de bolsonaristas raiz, como o general Mauro Cid, seu filho, o segundo-tenente da ativa Osmar Crivelatti (a serviço do chefe até hoje) ou o homem de todos os rolos Frederick Wassef, que faz as vezes de advogado da família Bolsonaro. Coadjuvantes com indícios de se verem encrencados também não faltam, assim como cenas, situações e diálogos absurdamente farsescos, não fossem eles alarmantes pelo grau de delinquência. Relógios cravejados de diamantes, joias e rosários islâmicos idem viajaram como clandestinos no avião presidencial para Orlando. Pelo relato substantivo das investigações, o esquema milionário de subtrair da República o que a ela pertence começou, no mínimo, já em meados de 2022. Acelerou com afoiteza e risco pouco antes e nas semanas que se seguiram à derrota eleitoral do chefe. Segundo mensagens eletrônicas recuperadas pela investigação, o surrupio do público para o privado incluiu até mesmo o filho Zero Quatro do presidente, Jair Renan. O caçulinha, depreende-se de e-mails dos auxiliares de Bolsonaro, se interessou por alguns itens e, com o beneplácito do pai, serviu-se no acervo da Documentação Histórica em julho do ano passado.
Daqui para a frente são só notícias amargas para o capitão que o Brasil manteve por quatro intermináveis anos no poder. Além de inelegível, Jair Bolsonaro provavelmente será chamado a depor sobre o imbróglio das joias; é possível que logo mais seu passaporte seja retido; provável que venha a ser indiciado, denunciado, julgado, quiçá condenado — não só pelo rastro de ladroagem deixado. Talvez ainda não saiba, mas sua casa já caiu.~
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