domingo, 4 de abril de 2021

Paisagem brasileira

 

Jonathan Alpeyrie

O desperdício do fator humano

Com 14,3 milhões de desempregados no trimestre encerrado em janeiro, o Brasil teve uma passagem de ano especialmente penosa para os pobres e agourenta para a maior parte dos negócios. Perdido o primeiro trimestre, o governo só nos próximos dias voltará a pagar o auxílio emergencial. Com isso poderá atenuar a fome e dar novamente algum impulso ao consumo e à produção. Sem Orçamento, sem rumo e aparentemente sem perceber o desastre do dia a dia, a equipe econômica deixou perder-se a recuperação iniciada em maio e já enfraquecida nos três meses finais de 2020. As condições do emprego mostram bem as limitações dessa reação, agora dificultada também pelo forte aumento dos preços no varejo.

A desocupação, o subemprego e o desestímulo a grandes parcelas da força de trabalho compõem uma forma especialmente grave de desperdício. A ociosidade dos trabalhadores pode ocasionar mais que os dramas facilmente visíveis na experiência diária e diminuição do potencial de consumo. Quando prolongado, o desemprego pode também resultar em desatualização e desqualificação da mão de obra – um obstáculo a mais ao desenvolvimento da economia. Por isso, o investimento em requalificação é uma das políticas necessárias depois de longos períodos de desocupação.

O desemprego de 14,2% da força de trabalho, na virada de ano, é apenas o aspecto mais visível desse drama econômico e social. O quadro fica mais feio quando se adicionam 5,9 milhões de pessoas desalentadas – sem ânimo para continuar buscando uma colocação – e outros grupos com potencial de trabalho subempregado ou simplesmente perdido. 

Tudo somado, a população subutilizada chegou a 32,4 milhões de indivíduos, ou 29% da população economicamente ativa. Este é um número muito mais adequado que a taxa de desemprego para dimensionar o desperdício de mão de obra.


Mas é preciso olhar outros detalhes para avaliar as limitações do consumo e das possibilidades de progresso individual e familiar. O nível de ocupação chegou a 48,7% das pessoas em idade de trabalhar, com aumento de 0,7 ponto porcentual em relação ao trimestre anterior. Mas esse aumento ocorreu principalmente no segmento informal, onde se acomodaram 34,1 milhões de trabalhadores no período de novembro a janeiro. O número de trabalhadores sem carteira assinada aumentou 3,6% no setor privado, taxa equivalente a 339 mil pessoas, de um trimestre para outro.

A taxa de informalidade subiu de 38,8% para 39,7%, ficando pouco abaixo daquela registrada um ano antes. Participam da informalidade tanto os empregados sem carteira assinada quanto trabalhadores por conta própria sem registro oficial. Baixo rendimento, benefícios assistenciais escassos ou nulos e contratação precária constituem algumas das condições da ocupação informal.

“A perda de força no crescimento da ocupação vem principalmente da menor expansão na indústria, no comércio e na construção”, disse a pesquisadora Adriana Beringuy, ao apresentar os dados do último levantamento do IBGE. Ainda assim, o aumento da população ocupada, no período de novembro a janeiro, é em boa parte explicável pelas contratações adicionais ocorridas no fim de ano, embora o crescimento das vendas tenha sido mais fraco que em outros anos.

Mesmo com a recuperação econômica iniciada em maio, a desocupação continuou bem maior que no período anterior à crise deflagrada pela pandemia. No trimestre móvel terminado em janeiro de 2020 havia 11,9 milhões de desempregados, ou 11,2% da força de trabalho. Os subutilizados eram 23,2%. O desemprego era bem maior que o da média dos países da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), praticamente o dobro.

O quadro já era muito ruim, porque o governo do presidente Jair Bolsonaro quase nada fizera, no primeiro ano de mandato, para impulsionar a atividade econômica. Em 2019 o Produto Interno Bruto (PIB) aumentou 1,4%, tendo avançado 1,6% no ano anterior. A economia já andava mal antes da pandemia, assim continua e o desemprego persistente é a consequência mais dramática.

Fome não tira férias


O governo federal pagava R$ 600 de auxílio emergencial. Depois, passou a pagar R$ 300. Em dezembro, parou de pagar. A fome não tirou férias em janeiro, fevereiro e março. As pessoas ficaram com fome e sem dinheiro para comprar remédios
Wellington Dias, governador do Piauí

No coração da barbárie

“Antes do Congo eu era só um animal”, exclamou o aterrado Joseph Conrad, autor do magnífico Coração nas Trevas (1902), cujo tema nevrálgico no conceito de Vargas Llosa é a dialética entre “civilização” e “barbárie”. A obra gira em torno de Kurz – o pequeno Deus fugaz abrigado nos confins da Selva africana – e Marlow, que “chega na boca do grande rio” e sente a sua cabeça mergulhar na crua solidão da violência. Na selva se filtram e se esmagam os protocolos da guerra, em cujo caminho brilham corpos sem endereço.

O Congo era um território de domínio da Cia. Belga de Leopoldo II, Imperador cuja barbárie colonialista já estava no mesmo patamar dos “campos” nazis, aparecidos décadas depois. O poderoso filme Apocalipse Now, de Francis Ford Coppola (1979), foi inspirado nesta obra de Conrad, com a história nas selvas vietnamitas, onde a barbárie era a proposta “civilizatória”, confrontada com o Vietnam guerrilheiro da libertação nacional. Neste filme, como poderia ser num conto satânico, o diabo e o bom Deus trocaram de lugar: o inferno não é a selva sóbria e os deuses, que vinham dos céus, traziam os recados do inferno cuspindo o fogo e a morte.

Vargas Llosa disse que “Leopoldo II foi uma indecência humana, porém culta, inteligente e criativa”, mas durante os 21 anos em que sua empresa dominou o Congo “Belga”, a população da Colônia foi reduzida pela metade, tal a intensidade da exploração a que ela foi submetida. A confissão de Conrad, portanto, que antes de conhecer esta empreitada era “só um animal”, dizia respeito ao fato de que a sua acomodação na civilidade – criadora de monstros como Leopoldo II – comungava com a felicidade das elites colonialistas, com as quais convivera sem remorsos.

Lembro-me de um poema de Paulo Mendes Campos que proclama, inadvertidamente, o ideal inverso de Conrad com sua consciência culpada, ao expiar sua ignorância sobre a barbárie colonial. O poeta separa o verso de amor da história concreta, como sabem fazer os grandes poetas sem ferir alguém, ao dizer: “tua alma, minha amiga, é como a Bélgica suavizada de canais, mas a minha é como o Congo violentado de uma liberdade mau nascida”.


Creio que cabe uma analogia, fora do poema e dentro da história: o que podemos nos considerar antes de Bolsonaro? Rejeitado pelo Exército Nacional foi coordenado por militares de alto coturno para chegar à Presidência, defensor da tortura e de assassinatos de adversários políticos, foi apoiado por muitos destes – tanto de “centro”, como de direita –; elegeu-se pelos cânones da democracia formal, mas nunca negou desprezar todas as instituições da democracia política, colocando-se inclusive como “não político”.

Bolsonaro é aquele que cegou grande parte do povo (pelo ódio) e usou de todas as artimanhas da “velha política” para empalmar o poder, visando promover um golpe de extrema-direita. Ao designar o Exército Nacional como “meu Exército”, trata-o como se este não fosse uma instituição do Estado, mas uma milícia privada dependente dos humores do seu proprietário.

O cenário de fundo desta tragédia da democracia política, que não conseguiu neutralizar um político inútil em toda a sua vida pública (e que se deu o direito de ser um celebrador da morte e da tortura) é composto de duas atitudes cruéis, ilegais e mortíferas: o deboche permanente do isolamento social, que permitiria reduzir substancialmente o número de mortes e o desprezo à ciência, aos cientistas e aos epidemiologistas, ao sabotar a vacinação, atrasar dolosamente a compra, a produção e a reserva das vacinas, que permitiriam reduzir o contágio e a expansão descontrolada da doença.

Produzir um conflito entre a ciência e a religião foi a escolha dos mentores de Bolsonaro, que lhe colocou na ofensiva no vazio brutal que seguiu ao início do seu Governo: sem programa político que não fosse uma sucessão de enunciados preconceituosos, sem um programa econômico que não fosse o “acabar a corrupção” para a economia se “recuperar”, Bolsonaro tornou-se um vazio solitário, ocupado pelos esquemas mentais do fascismo, que sempre se serviu da religião para erguer a sua crista necrófila.

Sem conhecer o Brasil, que via apenas como paisagem da ótica alienada da extrema-direita militar, sem quadros políticos que não fossem apenas alguns despreparados sem experiência de Estado e de gestão, sem capacidade de persuasão estratégica que não fosse a brindada pelas “mídias” cúmplices da “escolha difícil”, Bolsonaro teve apenas um mérito como estrategista: soube vender-se às classes empresariais como um reformista de direita, para depenar o Estado e diluir os direitos sociais, e assim atrair para si o apoio da vilania das elites, que não tiveram condições de compor uma candidatura que as unificasse.

Numa das edições do “Fronteiras do pensamento” Marcelo Gleiser, em conferência sobre “Ciência, humanidade e sobrevivência” disse, ao meu ver corretamente, que a diferença entre a ciência e a fé é a seguinte: “em ciência a gente tem que ver para crer. Você observa a natureza, você observa o mundo, obtém dados sobre como o mundo funciona, analisa estes dados e entende. Pela fé, você crê para ver. A crença vem antes da visão. Você acredita naquilo, nem precisa ver nada…”

A utilização instrumental da religião e da fé para o domínio político caminha com a história da humanidade. No caso da estratégia bolsonarista caminha contra Humanidade. Ao não ver “nada” e desprezar deliberadamente a ciência, o Governo Bolsonaro empilha corpos por estratégia de dominação e para chocar o ovo da serpente. Conrad disse que “antes do Congo era só um animal”, talvez devêssemos desvendar mais rapidamente quem eram estas pessoas que levaram Bolsonaro ao poder – apesar de todas estas evidências da sua loucura – e que ainda contemplam insensíveis a destruição da nação e do seu povo.

Não somos animais. Quantos mortos ainda precisam ser empilhados, para que os Poderes reajam junto com o povo, para ver e crer na ciência e na democracia, retirando Bolsonaro do Poder, que já exerce de forma ilegítima?
Tarso Genro

Páscoa

Mora no Museu de Israel, em Jerusalém, a obra “Angelus Novus”, criada por Paul Klee em 1920. Há quem veja no célebre desenho comprado no ano seguinte pelo filósofo alemão Walter Benjamim uma melancólica representação do eterno ciclo de desesperança da história humana. Klee tinha uma visão metafísica da realidade, e seu anjo também pode retratar nossa Páscoa amarga de 2021 — nada a celebrar, tanto a prantear. Nas palavras de Benjamin, que se suicidaria ao tentar fugir do nazismo em 1940, o quadro retratava o anjo da história. “Sua face está voltada para o passado... gostaria de permanecer aqui, despertar os mortos e tornar inteiro o que foi destruído. Mas uma tempestade sopra do paraíso; ela aprisionou com tanta violência as asas do anjo que ele não pode mais fechá-las e é impelido para o futuro, sem possibilidade de resistência... Essa tempestade é o que chamamos de progresso”, escreveu.

Também nós não sabemos ressuscitar os que perdemos. E quem partiu no arrastão fúnebre da pandemia nem sequer pôde se despedir dos presentes. Nos tornamos órfãos coletivos de desconhecidos, de pais e familiares, amigos, colegas, vizinhos; de toda uma parte da humanidade que vivenciou um mesmo mundo, um mesmo tempo de história. À medida que as perdas se sobrepõem, uma espécie de “escolha de Sofia” invertida despedaça os que ficam: por quem chorar primeiro — pelo pai ou pelo irmão? Pela amiga querida ou pelo vizinho de todas as horas? A própria natureza cambiante da memória e das emoções, quando atropelada e sem tempo para tomar fôlego, tem poder anestesiante de um luto contínuo. Um luto profundo e silencioso para não atrapalhar os ainda à nossa volta.


“Em março de 2021, o Brasil pode ter tido mais mortes do que nascimentos... Se isso não assusta você, nada irá!”, avalia o neurocientista Miguel Nicolelis. Em sua nova coluna em áudio para o diário “El País”, Nicolelis projeta um total de meio milhão de mortos para julho e a possibilidade de um colapso funerário, caso não sejam tomadas medidas drásticas de lockdown. (Na verdade, o colapso já parece estar em curso). Um sábio do passado tinha razão: nossa ansiedade não esvazia o amanhã de sua dor, apenas esvazia o nosso hoje de sua força.

Muitas décadas atrás, uma edição da extinta revista “Oxford Today” publicou longo artigo que começava com uma pergunta: você é capaz de lembrar onde você estava no dia da morte do grande escritor Aldous Huxley — autor, entre outros, da distopia “Admirável mundo Novo”? Ou de se lembrar do dia da morte de C.S.Lewis, conceituado pensador britânico? Não? Se você tinha, à época, mais de 5 anos de idade, respondeu errado. Ambos morreram no mesmo 22 de novembro de 1963 em que o mundo paralisou ao ouvir que John F. Kennedy fora assassinado.

Os três citados habitavam mundos sociais e mentais remotos, cada um investindo energias em esferas distintas. Mas as mortes dos dois primeiros não tiveram direito a espaço. O “New York Times” precisou de três dias para noticiá-las. Lewis morreu nos braços do irmão e teve enterro solitário. “O que você vê e ouve depende em grande parte de onde você finca seus princípios. Depende do tipo de pessoa que você é”, sustentava ele. Huxley faleceu num quarto de hospital de Los Angeles após receber, a seu pedido, uma última injeção de LSD administrada pela segunda esposa. Ao sair do quarto, ela conta ter deparado com médicos e enfermeiras paralisados diante da TV ligada na saga J.F.K. Deve ter desistido de informá-los sobre a morte do marido.

A pandemia atual não tem um herói de impacto universal, pranteado planeta afora e capaz de apagar falecimentos coincidentes. Tem pior, muito pior: tem quase 3 milhões de enterrados (sem contar as subnotificações, para as quais acordaremos algum dia) que deixam uma imensidão de vazio silencioso e eterno. Cada um desses quase três milhões que se foram tinha uma dimensão afetiva única, maior, para quem os pariu e/ou amou.

Esta Páscoa é propícia para lembrar que a vida não é uma luta contra a maldade, contra o drama e o sofrimento, e sim uma luta contra a ausência e o olvido (adoro essa palavra). Como escreveu o francês Jean-René Huguenin, a alegria que buscamos está justamente na presença física e emocionante de alguém, ou de algo. Algum dia a alegria haverá de voltar, embora tudo indique que o Brasil será um dos últimos países a desfrutar esse privilégio. Restam-nos a imaginação, a poesia, a natureza pela janela. E a música. “A pele é o maior órgão do nosso corpo e, com a chegada da Covid-19, fomos roubados da alegria que sentimos ao toque humano”, disse o violoncelista Yo-Yo Ma ao levar seu instrumento de cordas para a sala onde se vacinou. “Você não pode se abraçar, enlaçar as mãos. Mas a música e os sons conseguem mover as moléculas do ar e fazem vibrar sua pele. É a coisa mais próxima do tocar humano.”

Sentado numa cadeira de plástico encostada à parede, o músico presenteou o posto vacinal de Pittsfield, em Massachusetts, com a “Suite nº 1 em sol maior”, de Bach. Assim, por algum tempo, preencheu o vácuo de conexão humana entre os que ali estavam. Deve ter sido sublime.

Pelo menos hoje não é preciso citar o abutre nacional. Ele não merece espaço.

O “Governo feito a dez mãos” de Jair Bolsonaro

“É um Governo feito a dez mãos”, diz o deputado federal Delegado Waldir (PSL-SP), integrante da base do presidente Jair Bolsonaro (sem partido). À medida que o pai avança em seu terceiro ano de mandato na presidência do Brasil, fica cada vez mais claro o papel que seus filhos parlamentares Flavio, Carlos e Eduardo e o neófito Jair Renan desempenham na agenda e nas decisões do Planalto. Em comum, os quatro são investigados pela Polícia Federal e pelo Ministério Público por crimes que vão da prática de rachadinha e contratação de funcionários fantasmas a tráfico de influência. Mas os herdeiros do mandatário também partilham outros papeis informais, seja na articulação política ou no papel de conselheiros do pai, segundo interlocutores do Planalto ouvidos por este jornal. “Eles acabam governando em conjunto. Estão todos na política, e é óbvio que por estar ali ajudam na tomada de decisões”, conclui o parlamentar.


No início do seu mandato, o governador de São Paulo, João Doria (PSDB), chegou a ser recebido no Palácio do Planalto para tratar de pautas do seu Estado na presença de Flavio Bolsonaro e do filho mais novo do presidente, Jair Renan, então com 20 anos, que nem mesmo exerce um cargo público. Renan é filho do segundo casamento de Bolsonaro, com Ana Cristina Valle. Os três mais velhos são filhos de Rogéria Nantes Nunes Braga, que até hoje usa o sobrenome do ex-marido nas redes sociais e politicamente (foi candidata a vereadora no Rio no ano passado, mas não foi eleita). O caçula, agora com 22, transita pelos corredores do Planalto, em papel ativo, embora a família não admita. O filho 04 tornou-se empresário do ramo de eventos usando o nome do pai com a Bolsonaro Jr Eventos e Mídia, criada em novembro de 2020. A empresa fica num espaço comercial dentro do estádio Mané Garrincha, em Brasília.

Até então o jovem somente administrava seu canal no YouTube voltado para jogos eletrônicos, os e-sports. No dia 13 de novembro, ele articulou uma reunião entre o ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, e empresários da Gramazini Granitos e Mármores —companhia que patrocina a sua empresa de eventos. O encontro não constava na agenda oficial de Marinho, e foi revelado pela revista Veja. Indagado sobre o ocorrido à época, o ministério divulgou nota afirmando que o filho do presidente “participou na qualidade de ouvinte e por acreditar que o sistema construtivo teria potencial de reduzir custos para a União”. Mas, segundo a publicação, Renan teria recebido de presente da Gramazini um carro avaliado em 90.000 reais. As revelações da revista levaram a Polícia Federal a abrir uma investigação sobre o o caso.

A defesa de Jair Renan, comandada pelo advogado Frederick Wasseff, nega as acusações, e alega “perseguição” aos filhos do presidente. “Alguém de má fé criou uma fake news de que Renan Bolsonaro recebeu um carro, dando a entender que ele agiu assim para se beneficiar. O Renan não tem nada a ver com o Governo, ninguém no Governo ajudou o Renan”, disse ele por mensagem. Wasseff também foi advogado do senador Flavio Bolsonaro. Foi na casa de Wasseff que a polícia prendeu o ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz no ano passado, que se escondia da polícia e hoje está em prisão domiciliar respondendo a inquérito sobre a rachadinha, a partilha de salários de funcionários durante os mandatos de Flavio como deputado estadual.

Eleito senador pelo Rio de Janeiro em 2018, Flavio se destacou nos últimos meses como um fundamental articulador político do Planalto no Congresso. “O Flávio tem um relacionamento muito bom com os líderes partidários na Câmara e no Senado, coisa que o pai dele não tem”, diz o deputado Waldir. O parlamentar credita ao filho 01 a aliança do Governo com o bloco conhecido como Centrão, o que —ainda que temporariamente— blinda o presidente de dezenas de pedidos de impeachment que foram protocolados, a maior parte devido ao comportamento irresponsável do mandatário durante a pandemia. “O alinhamento do Centrão foi costurado pelo Flávio. A ideia já era antiga, mas o Eduardo [Bolsonaro] sempre foi muito radical e se opunha a esta aliança. Foi o senador que abriu portas para que os parlamentares se aproximassem”, afirma Waldir.

A costura de acordos para garantir uma base de apoio para o Governo no Congresso, no entanto, não é a única função de Flávio, que é o pivô do escândalo das rachadinhas, investigado pelo Ministério Público do Rio. A indicação do novo ministro da Saúde, o médico Marcelo Queiroga para o lugar de Eduardo Pazuello, teria partido do filho 01. Queiroga é amigo do sogro do senador, o cardiologista Hélio Figueira, como informou o jornal O Globo. Na disputa pelo cargo, o indicado de Flavio desbancou o nome sugerido pelo Centrão, a doutora Ludhmila Abrahão Hajjar. Ela chegou a se encontrar em Brasília com o presidente. A reunião contou com a presença do filho Eduardo, que a questionou sobre aborto e armas de fogo, segundo ela.

A presença dos filhos do presidente em reuniões reservadas não constam da agenda oficial do Planalto. Apenas no dia 27 de janeiro Eduardo é mencionado na reunião com a presença de outros 28 deputados federais da base aliada. Mas o deputado, que tinha aspirações de se tornar embaixador brasileiro em Washington, não deixa de divulgar algumas participações em suas redes sociais. Em 15 de março, por exemplo, o deputado esteve presente em uma videoconferência do presidente com o rei Hamad bin Isa al Khalifa, do Bahrein. “Percebemos no Oriente Médio um gigantesco campo de oportunidades no agro, comércio e semelhante visão de mundo quando se fala em trabalhar pela paz”, escreveu em uma rede social.

Ex-presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo se mostra alinhado aos interesses com as petro-monarquias árabes. Além do Bahrein, apenas este ano ele também participou de encontros ao lado do pai e do ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, com representantes dos Governos do Kuwait e Emirados Árabes Unidos. Todos estes eventos constam na agenda oficial do Planalto, mas sem seu nome. Eduardo também já fez menções públicas de agradecimento ao príncipe Mohammad bin Salman assim como ao mandatário húngaro de ultradireita Viktor Orbán. Em março, participou de uma missão oficial do Planalto em Israel para conhecer um spray nasal contra a covid-19 que ainda está em fase de testes.

As movimentações de Eduardo não se restringem a questões de política externa. No dia 12 de fevereiro ele estava ao lado do presidente e do ministro da Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, em cerimônia de entrega de títulos de propriedade para 120 moradores de Alcântara, no Maranhão. De acordo com Pontes, a presença do deputado se justificava pelo papel que ele teve na liberação de emendas para a construção do centro de lançamento de satélites no local: “Queria agradecer ao deputado Eduardo Bolsonaro que participou aqui da construção do Centro de Alcântara com emendas para decolagem desse centro”, afirmou o ministro na ocasião.

Em julho de 2019, quando Eduardo pleiteava o cargo de embaixador dos Estados Unidos, Bolsonaro foi acusado de nepotismo, e rebateu. “Pretendo beneficiar filho meu, sim. Se eu puder dar um filé mignon para o meu filho, eu dou”, afirmou. Eduardo é foco de uma apuração preliminar da Procuradoria-Geral da República sobre pagamentos em dinheiro vivo na aquisição de dois imóveis na zona sul do Rio entre 2011 e 2016. Também foi citado e interrogado no inquérito de atos antidemocráticos que incentivavam o fechamento do Supremo Tribunal Federal.

Renan, por sua vez, já aproveitou de seu trânsito no Palácio para pleitear pautas específicas na área em que atua. Em agosto de 2020 ele se reuniu com o secretário de Cultura, Mário Frias, para tratar do “futuro dos e-sports”, de acordo com postagem feita por ele mesmo nas redes sociais. O filho 04 teria atuado junto ao Governo para conseguir a redução no IPI do setor de videogames, que deve resultar em renúncia fiscal acima de 80 milhões de reais para os cofres públicos.

A presença dos filhos do presidente nas agendas política é tamanha que já foi normalizada por alguns parlamentares. O senador Jorginho Mello (PL-SC), teve uma reunião com o presidente em 25 de fevereiro para discutir um projeto de lei que beneficia os caminhoneiros. Lá estava o filho 03, tomando café ao lado do senador e de seu pai. “Eu acho normal [a participação dos filhos]. Eles tomam café da manhã juntos com frequência. É difícil ter reunião com alguém do Governo sozinho, sempre tem mais gente, mesmo nos ministérios. Penso que isso é positivo, evita conversas sigilosas”, diz Mello.

Nem todos acham que a participação dos filhos em assuntos do Governo é algo a ser comemorado. “Essas discussões no seio familiar deles não vejo problema, mas ao levar para dentro do Governo você acaba institucionalizando essas relações”, afirma o deputado federal Capitão Augusto (PL-SP). Ele cita como exemplo a ida de Eduardo à reunião com a doutora Ludhmila Hajjar em 14 de março. “Levar um filho para dentro do palácio para participar de reunião importante como essa atrapalha. Fica ruim para a credibilidade do presidente até mesmo no Congresso”, diz. Fica sempre no ar a questão: os filhos do presidente falam por ele? O Governador João Doria, hoje arquiinimigo de Bolsonaro, vai além. “Ditadores gostam de governar com aduladores, corruptos e familiares. São populistas e mentirosos. E não hesitam no uso da força, da censura e da intimidação”, disse Doria à Carla Jiménez, que é alvo constante de perseguição dos filhos e seus milhões de seguidores nas redes sociais.

Além de Flávio e Eduardo, o filho 02, Carlos Bolsonaro, que é vereador pelo Rio de Janeiro mas fez de Brasília seu segundo lar, também tem um papel chave no Governo. Após ter tido atuação crucial na estratégia de campanha do pai em 2018 (marcada pela disseminação de fake news e desinformação) ele agora é acusado de chefiar o chamado Gabinete do ódio, também conhecido como uma espécie de Secretaria de Comunicação informal do Governo, que atua dentro do próprio Planalto. Ele chegou a ser interrogado pela PF em 2020 no inquérito dos atos antidemocráticos, que teria como um dos pilares a atuação do gabinete paralelo comandado pelo vereador.

Apesar de ser conhecido por sua verborragia e ataques a opositores nas redes sociais, Carlos é discreto quanto às suas movimentações em Brasília —a reportagem indagou o vereador sobre suas viagens à capital, sem sucesso. É mais discreto nas redes sociais, diferentemente de Eduardo, que alardeia todas as suas agendas palacianas. Mas o papel do filho 02 nas estratégias do Governo é do conhecimento de todos. “O Carlos é um cara forte na formulação da questão ideológica nas redes sociais, que foi o grande motor da eleição do presidente da República”, diz o deputado Delegado Waldir.

Bolsonaro não é o primeiro presidente cujos descendentes foram acusados de se beneficiar da relação familiar nem no Brasil nem fora. O poder imanta a família que o possui e é chamariz para lobbies. O filho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, Paulo, foi acusado em 2016 de ter se beneficiado de um negócio da Petrobras, o que ele nega. O ex-diretor da Petrobras e delator Nestor Cerveró disse ter sido orientado pela direção da estatal a fechar um contrato com a empresa ligada ao filho do tucano no fim dos anos 2000. Já Fabio Luís Lula da Silva, o Lulinha, é alvo de investigação por suspeita de receber mais de 100 milhões de reais em repasses do grupo Oi/Telemar para sua empresa. O valor seria uma contrapartida por atos do então presidente Luiz Inácio Lula da Silva para beneficiar o setor de telecomunicações, o que a defesa de Fabio Luís nega. Maristela Temer, filha de Michel Temer, chegou a ser denunciada pelo crime de lavagem de dinheiro e associação criminosa, por suspeita de que a reforma de sua casa tenha sido paga com dinheiro desviado de obras da usina nuclear de Angra 3. Mas uma coisa é clara: nenhum filho desfrutou de livre acesso ao Planalto aos ministérios como os Bolsonaro. Os filhos de Bolsonaro vem negando qualquer irregularidade. A reportagem entrou em contato com a assessoria de Carlos, Eduardo, Flávio e do Planalto questionando o papel deles no Governo, eventuais problemas éticos desta atuação e a falta de transparência da agenda oficial do presidente. Não obteve resposta até o momento da publicação deste texto.

Gil Alessi