terça-feira, 21 de agosto de 2018

Imagem do Dia

Edimburg (Escócia)

Feito do sangue do Satanás

"O desejo pinga", famosa frase de Nelson Rodrigues. Mas, para além do óbvio, o que ela quer dizer? Há uma matéria concreta no desejo que escorre, por exemplo, pelas pernas das mulheres. Eu sei. Dirão os inteligentinhos que vivemos na época da liberação do desejo, inclusive das mulheres. Eu arriscaria o oposto: nunca o desejo foi tão reprimido.

Mesmo em meio à inquisição havia mais respeito pelo desejo. Por quê? Porque não há forma mais honesta de reconhecer o desejo do que temê-lo. Qualquer pessoa que tenha visto o desejo escorrer pelas pernas, molhando a saia, sabe que o mundo público é, por definição, hostil ao desejo.

Enganamo-nos declarando que o direito ao desejo é um direito universal. Apenas os ingênuos ou os mentirosos creem nisso. Há aqueles mesmo que creem no ensino do desejo nas escolas. Não. O melhor ensino acerca do desejo é seu silêncio. O desejo cresce no silêncio e na escuridão. A luz é seu habitat natural muito raramente. Luz demais mata o desejo, já sabiam os vampiros.


Mas, onde reside a pior forma de repressão já criada contra o desejo? Reside, entre outras coisas, na criação de uma política do desejo. A civilização só respira graças ao temor que alimenta em relação ao desejo. Qual a diferença entre a repressão, digamos, medieval, ao desejo, e a contemporânea?

A contemporânea decidiu que o desejo é "saudável" e é "um direito de todo cidadão", e, dessa forma, o transformou em matéria constitucional. O Sapiens, talvez já cansado de toda sua evolução, chegou à conclusão de que o desejo só pode existir se for balanceado caloricamente.

Seria possível imaginar um mundo sem desejo? Claro que sim. Basta torná-lo absolutamente correto e seguro. Eis o pecado máximo do desejo: não cabe na geometria do contrato social. Quando o soltamos numa praia deserta cheia de pessoas que chegaram ao estágio de não odiar ninguém, já vivemos no mundo sem desejo. Alguém conhece um lugar com menos desejo do que os clubes de nudismo dos anos 1960?

A pornografia reversa é a condição de um mundo em que o desejo virou matéria constitucional. O resultado, nos cantinhos que restam de escuridão, serão mulheres indo trabalhar sem calcinha para, no silêncio das suas pernas, sonhar que alguém sabe de sua condição. Nas músicas de má qualidade, em que o desejo é cantado como um "estado natural", encontramos uma das faces da sua miséria.

Para além de seu estado de líquido que escorre, só há dois modo de relação com ele: sua condenação ou nossa misericórdia. Por isso, a tradição religiosa é mais sábia do que a política de direitos ou arte liberada da vergonha. Onde não há vergonha, não há desejo.

A modernidade, em meio às suas inúmeras qualidades, carrega uma, disfarçada de amor: sua decisão de eliminar as sombras, de uma vez por todas. O desejo cresce e se torna robusto quando o caçam pelas ruas. Quando o lançam às chamas do inferno, quando lhe negam o direito a respirar.

Há uma economia muito sofisticada nessa forma de vida, pouco comum num mundo que escolheu o bem-estar como paradigma. Não existe tal coisa chamada de "desejo do bem".

Não me entendam mal. Não faço aqui uma oração pela destruição do bem-estar. Os inteligentinhos, na sua tradicional incapacidade de entender qualquer coisa que não seja traduzida na forma da razão militante, certamente me entenderão mal. Mas não há como falar de desejo sem incorrer no risco de ser compreendido como algum tipo de Sade cansado. Morremos de medo do desejo, por isso decidimos vesti-lo de roupas coloridas e determinar que é Carnaval o ano inteiro e que, se você cansar da música e da festa ruidosa, você é contra o desejo.

Uma das formas mais típicas de destruição de desejo é dizê-lo como o "desejo do outro". Pois este é sempre meu, nunca do outro. O outro é sempre objeto, Ou melhor: o outro e eu, movidos pelos mesmo líquido que escorre pelas pernas em direção à vergonha pública.

Nas formas de organização racional moderna, típicas do mundo do dinheiro, os que teorizaram sobre a liberação do desejo contra a repressão burguesa deste foram seus repressores mais bem-sucedidos.

Falando em nome do "é proibido proibir", inauguraram a maior e mais extensa forma de negação do próprio desejo, porque o declararam um bem público. Enquanto ele era pecado, feito do sangue do Satanás, sobrevivia no seu elemento natural, o medo. Quando saiu para as ruas, tornou-se banal como um suco de frutas natural.
Luiz Felipe Pondé

Angústia

Como certos acontecimentos insignificantes tomam vulto, perturbam a gente! Vamos andando sem nada ver. O mundo é empastado e nevoento. Súbito uma coisa entre mil nos desperta a atenção e nos acompanha. Não sei se com os outros se dá o mesmo. Comigo é assim. Caminho como um cego, não poderia dizer porque me desvio para aqui e para ali. Frequentemente não me desvio - e são choques que me deixam atordoado: o pau do andaime derruba-me o chapéu, faz-me um calombo na testa; a calçada foge-me dos pés como se se tivesse encolhido de chofre; o automóvel pára bruscamente a alguns centímetros de mim, com um barulho de ferragem, um raspar violento de borracha na pedra e um berro de chauffeur. Entro na realidade cheio de vergonha, prometo corrigir-me. - "Perdão! Perdão!" digo às pessoas a que me abalroam porque não me afastei do caminho. As pessoas vão para os seus negócio, nem se voltam, e eu me considero um sujeito mal-educado. Tenho a impressão de que estou cercado de inimigos, e, como caminho devagar, noto que os outros têm demasiada pressa em pisar-me os pés e bater-me nos calcanhares. Quanto mais me vejo rodeado mais me isolo e entristeço. Quero recolher-me, afastar-me daqueles estranhos que não compreendo, ouvir o Currupaco, ler, escrever. A multidão é hostil e terrível. Raramento percebo qualquer coisa que se relacione comigo: um rosto bilioso e faminto de trabalhador sem emprego, um cochicho de gente nova que deseja ir para a cama, um choro de criança perdida. 
Graciliano Ramos, "Angústia"

Novos colonizadores

Pawel Kuczynski
O capitalismo moderno funciona colonizando a imaginação do que nós consideramos possível. Marx já havia percebido que o capitalismo tinha mais a ver com a apropriação do entendimento do que com a apropriação do trabalho. O Facebook é a penúltima apropriação da imaginação: o que víamos como útil agora se revela como uma forma de entrar na consciência das pessoas antes de que possamos agir. As instituições que se apresentavam como libertadoras se transformam em controladoras. Em nome da liberdade, o Google e o Facebook nos levaram pelo caminho em direção ao controle absoluto
Richard Sennett

Uma nova Justiça Eleitoral para o Brasil

Rosa Weber acaba de assumir a Presidência do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em momento delicado de nossa ainda tenra história republicana, pois em cerca de 50 dias o País irá às urnas eletrônicas para escolher um presidente da República, 27 governadores, 54 senadores, 513 deputados federais e ainda 1.059 deputados estaduais.

Em abril a ministra foi chamada a decidir julgamento crucial para o País, e seu voto era decisivo. Em razão dele, o ex-presidente Lula permaneceu preso, sendo negado o habeas corpus em seu favor impetrado, em virtude do que não se produziu a indesejável sensação de impunidade que geraria sua soltura, que faria letra morta posicionamento anterior do Supremo Tribunal Federal (STF).


Naquele momento agudo, a magistrada mostrou ter coragem e independência, e prevaleceu o senso de justiça que lamentavelmente não prevaleceu quando o presidente da República foi julgado pelo TSE por abuso de poder econômico e político, em 2017, sendo absolvido “por excesso de provas”, nas palavras cunhadas por um jornalista.

Aquele julgamento é uma das páginas mais vergonhosas da história da nossa Justiça, quer porque havia provas abundantes dos abusos de poder praticados pelo acusado, conforme exaustivamente demonstrou o ministro relator Herman Benjamin, quer porque a dinâmica do julgamento teve peculiaridades não muito compatíveis com os cânones da Justiça.

Refiro-me especialmente à atuação questionável de dois julgadores que foram escolhidos pelo próprio réu poucos meses antes do julgamento para o exercício da função, e seria obviamente caso de se darem por impedidos de julgarem o próprio nomeante. Além disso, refiro-me à postura de um terceiro julgador, totalmente incompatível com a atitude de um magistrado, com gestual que trazia à lembrança filmes da máfia; e à nomeação do ministro da Justiça naqueles dias, também ex-ministro do TSE.

Registre-se o comportamento corajoso, digno e honrado do relator Herman Benjamin, que tornou público o excesso de provas e foi acompanhado em seu voto pela própria Rosa Weber e por Luiz Fux. Mas eles foram a minoria. A maioria o absolveu. Este sistema de escolha de ministros do TSE precisa mudar.

Mas este é apenas um flash. As eleições de 2018 trazem novamente um quadro repleto de pontos de interrogação, que perdurará até momento perigosamente próximo ao dia das eleições. Lanço a pergunta: por quê?

Por que não temos um quadro consolidado com antecedência minimamente decente em relação à data das eleições? Seria impossível oferecer aos eleitores a situação totalmente definida pelo menos três meses antes das eleições? Não é razoável que o eleitor brasileiro pretenda isso?

Penso que ele tem esse direito. Vejam vocês, Lula, ficha suja – mas finge que não é –, registra candidatura. A data para a palavra final da Justiça Eleitoral é 17 de setembro. Ou seja, 20 dias antes das eleições. É plausível? Que 20 dias antes de uma eleição seja definido como o momento final para apontar quem serão os nomes dos candidatos? Onde fica o respeito ao eleitor? E o dever de transparência? E o direito à informação? E os valores depositados na “vaquinha” em nome de alguém que não mais será o candidato? E a questão pode não se resolver aí, porque se pode esticar a discussão no STF, alegando-se as mais diversas violações aos direitos constitucionais.

Os problemas seriam resolvidos se o sistema de Justiça Eleitoral exigisse que tudo estivesse resolvido em definitivo três meses antes das eleições, por exemplo. E isso dependeria de mudança constitucional e legal.

A falta de transparência e a de segurança jurídica são duas das piores deficiências que um sistema pode apresentar. São vulnerabilidades gravíssimas, que precisam ser sanadas – e que lhe retiram parcelas significativas da legitimidade. E, ainda, fazem com que a sociedade deixe de acreditar nas eleições e na própria democracia.

E o problema não se restringe a este, da interpretação da lei, para verificar quem pode e quem não pode ser candidato, para proteger a sociedade de discussões intermináveis bem como da insegurança jurídica.

Os cabeças de chapa em eleições majoritárias precisam definir com antecedência quem será seu vice. Não é plausível que essa escolha fique em aberto até momento tão próximo às eleições. Isso igualmente desrespeita o direito do eleitor de enxergar com antecedência razoável o quadro político todo, na sua inteireza, e de refletir, inclusive à luz do pensamento popular “me diz com quem andas, te direi quem és”. Incentiva o vale-tudo político, dá mais tempo para as negociatas sem limite nem qualquer coerência, em busca do poder, custe o que custar. Os mesmos três meses de antecedência poderiam valer aqui.

Sem podermos nos esquecer da necessidade inexorável de um novo marco legal para os partidos políticos, que não têm nenhuma democracia interna, não prestam contas à sociedade, não esclarecem os critérios que utilizam para destinar as verbas do fundão eleitoral, concedem legendas para fichas-sujas e ficam impunes indevidamente.

Penso que Rosa Weber, que conduzirá os destinos do TSE até meados de 2020, reúne condições jurídicas, pessoais e políticas para impulsionar um conjunto importante de transformações na sistemática do funcionamento do sistema da Justiça Eleitoral do Brasil, que obviamente não ocorrerá de forma simples e imediata.

Dependerá de amplas discussões no Congresso Nacional, no Conselho Nacional de Justiça, no Conselho Nacional do Ministério Público, no campo acadêmico e na sociedade civil, mas é necessário que o processo se inicie, para que possamos vislumbrar uma nova Justiça Eleitoral, que garanta à sociedade ética e efetivo equilíbrio nas disputas pelo voto.

Brasil Maravilha


Soltem o Lula!

Há apenas duas coisas realmente sem limites nesta vida, dizia Albert Einstein. Uma é o universo. A outra é a estupidez humana – embora ele fizesse a ressalva de que tinha lá as suas dúvidas quanto ao universo.

O Brasil de hoje bem que pode estar oferecendo uma terceira certeza: não existe nenhuma fronteira, também, no grau de cretinice dos esforços que estão sendo feitos para transferir o ex-presidente Lula da cadeia para a presidência da República.

O último surto é talvez o mais prodigioso de todos: a pedido da equipe de advogados que conseguiu, até agora, conduzir seu cliente à uma pena de doze anos de cadeia, uma Comissão de Direitos Humanos da ONU mandou o Brasil soltar Lula.

Isso mesmo: mandou soltar, porque acha que ele tem o direito humano de disputar a eleição de outubro, e naturalmente não pode fazer isso, e menos ainda exercer a Presidência do país, se estiver no xadrez.


É uma das maiores piadas já contadas na história universal do direito, mas até aí tudo bem – vivemos mesmo numa época cada vez mais esquisita.

O extraordinário é que um despropósito como esse consiga ser levado a sério, durante horas a fio, por um monte de gente – a começar, acredite-se ou não, pelos “especialistas” em dilemas jurídicos internacionais.

Pode um negócio desses? No Brasil pode.

A Comissão de Direitos Humanos da ONU tem tanta possibilidade de soltar Lula quanto a diretoria de um Rotary Club do interior do Maranhão. Seu poder legal é zero. Não lhe cabe dar ordens a governos dos países-membros.

A comissão não pode impor sanções a ninguém, nem convocar uma tropa internacional para intervir em lugar nenhum. Não tem a menor relevância, também, do ponto de vista moral.

Como poderia ter, se vem se recusando sistematicamente a fazer qualquer crítica a governos celerados como os da Venezuela ou Nicarágua, ditaduras que cometem assassinatos, torturas e outros crimes?

Como são países de “esquerda”, o comitê da ONU não dá um pio, com o argumento de que tem de respeitar a sua soberania e que as violações de direitos humanos ocorridas ali são “questões internas”.

Na verdade, o que há realmente de concreto a dizer sobre essa comissão é o seguinte: trata-se de uma boquinha clássica, onde parasitas variados vivem como esquerdistas profissionais, sem produzir um prego e com salários de 4.000 a 11.000 dólares por mes.

O despacho que ordena a soltura de Lula é um pequeno monumento à capacidade humana de socar disparates num pedaço de papel.

Diz, para não encompridar o assunto, que não foi verificada até agora “nenhuma violação” de um direito de Lula ao longo do processo que o levou à condenação por corrupção passiva e lavagem de dinheiro.

Mas até que chegue a seu parecer final, algo previsto para acontecer só em 2019, é possível que venha a acontecer alguma injustiça contra o ex-presidente.

Nesse caso, ele precisa ser solto já, porque a eleição está aí – e o homem não pode ficar sujeito ao risco de sofrer um “prejuízo irreparável”. O efeito de tudo isso, naturalmente, é nulo. Mas e daí?

O que importa para Lula, o PT e o seu sistema de apoio, é tumultuar o máximo possível as eleições para dizer, depois, que o resultado não vale. Poderiam festejar, do mesmo jeito, o manifesto lançado no mesmo dia por outro presidiário cinco estrelas, o ex-deputado Eduardo Cunha.

Do fundo de sua cela em Curitiba, Cunha, denunciado pela esquerda brasileira como o maior larápio da história desde que Ali Baba encontrou a caverna dos 40 ladrões, declarou-se inteiramente a favor da soltura de Lula e do seu “direito” de concorrer à presidência.

Grande companheiro, esse Cunha.

Moralidade imoral

A moral dos políticos é como elevador: sobe e desce. Mas, em geral, enguiça por falta de energia, ou então não funciona definitivamente, deixando desesperados os infelizes que confiam nele
Apparício Fernando de Brinkerhoff Torelly, também conhecido por Apporelly ou Barão de Itararé

Politicagem prejudica o socorro a venezuelanos

O flagelo dos refugiados venezuelanos, que parecia apenas dramático, tornou-se trágico. Mesmo quem não entende nada de política é capaz de enxergar a politicagem por trás do surto de violência que empurrou de volta para a Venezuela cerca de 1.200 refugiados da ruína bolivariana de Nicolás Maduro. Os governos federal e de Roraima meteram-se num jogo de empurra que condiciona o socorro humanitário à superação da mesquinharia política.


Premido pela má repercussão da explosão de irracionalidade que devastou o que restava de solidariedade na cidade de Pacaraima (RR), Michel Temer reuniu um grupo de ministros em pleno domingo. Ao final do encontro, o Planalto divulgou uma nota para informar, essencialmente, que o presidente e seus auxiliares avaliam que realizam um ótimo trabalho no gerenciamento da crise dos refugiados.

O texto esclarece que Brasília “já tomou providências que somam mais de R$ 200 milhões.” Anuncia novas medidas. Mais do mesmo: abrigos, reforço policial, isso, mais aquilo e, sobretudo, a intensificação do processo de “interiorização” dos refugiados, distribuindo-os por outros Estados.

A certa altura, a nota que Temer mandou divulgar insinua que o Planalto só não ajuda mais porque o governo de Roraima, comandado pela governadora Suely Campos (PP), não deixa.

“O governo continua em condições de empregar as Forças Armadas para a Garantia da Lei e da Ordem em Roraima”, escreveu a assessoria de Temer na nota. “Por força de lei, tal iniciativa depende da solicitação expressa da senhora governadora do Estado.”

A senhora governadora subiu no caixote. Mandou dizer, por meio de um assessor: “Essa nota é infeliz e eleitoral. Nós já pedimos inúmeras vezes o envio das Forças Armadas, e fomos ignorados. Surpreende o desconhecimento do governo federal do problema em Roraima.”

Candidata à reeleição, Suely Campos é adversária ferrenha de Romero Jucá (MDB-RR), o líder do governo Temer no Senado. A portas fechadas, a turma do Alvorada destilou a suspeita de que Suely e seus correligionários estimulam reações xenófobas contra os venezuelanos. Em Roraima, a governadora e seus auxiliares acusam a União de omissão.

Quem observa à distância o empurra-empurra, com seus reflexos sobre a vida dos venezuelanos pobres que pedem socorro, fica sem saber para onde caminha a humanidade. Mas observa com muita atenção, porque, quando souber, correrá para o outro lado.

Impunidade garantida

Na segunda-feira o Banco de Rondônia não abriu, por absoluta insolvência. Em pouco tempo, os fiscais federais comprovaram as suspeitas: políticos usaram a instituição pública para financiar suas campanhas. Privilegiaram amigos com empréstimos milionários. E eles jamais pagaram.

Deixaram um rombo de R$ 370 milhões (valor atual). Pulverizaram mais de 90% do patrimônio da instituição na temporada eleitoral.

Demorou até a eleição seguinte, em 1998, para o banco estadual de Rondônia ser liquidado. Então, se descobriu que a tragédia provocada pelos políticos locais fora convertida em catástrofe pelos interventores do Banco Central.

Eles triplicaram os negócios desastrosos. Emprestaram R$ 1,4 bilhão (valor atual) sem garantias reais.

Na miríade de estranhas transações deram R$ 6 milhões em crédito ao cidadão Xis da Questão. Era Aparecido Xis da Questão Lima, notório pelos vínculos com o senador Valdir Raupp, candidato à reeleição pelo MDB. Foi no governo Raupp que o Banco de Rondônia quebrou.

Os novos empréstimos do Beron no balcão da política estadual, claro, não foram pagos. De cada R$ 100 que os interventores financiaram, cerca de R$ 40 viraram prejuízo.

O Banco Central sentiu-se obrigado a multar a si mesmo 104 vezes durante 35 meses. Ou seja, o BC multou o próprio BC a cada dez dias da intervenção, até a liquidação do Beron, em agosto de 1998.

Sobrou para a sociedade uma dívida bilionária. O governo de Rondônia assumiu a menor parte (cerca de R$ 500 milhões) para pagar em 240 prestações. Deu calote em metade.

Lá se foram 24 anos e seis eleições. Quarta-feira passada o governo de Rondônia assinou um novo acordo, o sétimo. Agora, promete pagar R$ 11 milhões por mês até 2048.

Se der certo, os brasileiros passarão 54 anos pagando a conta das fraudes num banco público realizadas por políticos e burocratas nomeados em Brasília. Até agora é uma história sem fim, com impunidade garantida.