quarta-feira, 27 de março de 2019

Pensamento do Dia

Mana Nevestani

Um presidente impelido pelas próprias obsessões

Carmen A. foi presa em 1974 em São Paulo, ela tinha 28 anos. Os militares a levaram para uma prisão para ser torturada. Lá ligaram um cabo a seu seio direito e lhe deram choques. Eles queriam saber do paradeiro do marido dela e ameaçaram maltratar seu filho de 1 ano.

Seus algozes se chamavam Doutor Romero e Capitão Ubirajara. Quando Carmen me contou sua história, um ano atrás, ambos estavam soltos. Eles tiveram que pagar tão pouco por seus crimes quanto todos os demais torturadores e assassinos de uniforme que, entre 1964 e 1985, afirmavam ter que proteger o Brasil da ameaça comunista.


Para o presidente Jair Bolsonaro, homens como Romero e Ubirajara não são criminosos, eles são heróis. Isso diz muito sobre o caráter patológico de um homem cujo livro preferido foi escrito por um torturador que, entre outras coisas, mandava inserir ratos na vagina de suas vítimas.

Esses e outros crimes nunca entraram na memória coletiva dos brasileiros. Isso se deve sobretudo à lei da anistia, que os militares introduziram em 1979, também para si mesmos. Assim, os cidadãos ficaram sabendo pouco sobre os aspectos sombrios do regime. Conservadores afirmam até hoje que a lei e a ordem imperavam na época.

A falta de estudo e conhecimento sobre a história do país é um dos solos sobre os quais Jair Bolsonaro pode agora declarar o 31 de março dia comemorativo nas casernas. Em outros países da América Latina que sofreram sob regimes militares, seria impensável uma coisa dessas, hoje em dia. No Brasil de Jair Bolsonaro, é possível.

Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas brasileiras perpetraram um golpe de Estado contra o presidente constitucionalmente legítimo João Goulart, acusando-o de comunismo por, entre outros motivos, almejar uma reforma agrária.

Milhões de brasileiros conservadores apoiaram o golpe, do mesmo modo que a elite econômica, empresas de mídia, a Igreja Católica e o governo dos Estados Unidos. Navios de guerra americanos se encontravam perto do litoral brasileiro. Era o início dos "anos de chumbo". Para Bolsonaro, em contrapartida, foi o começo de uma época gloriosa.

"Não houve golpe militar", ele comunicou agora através de seu porta-voz, foi uma "intervenção democrática". É a tentativa do político de reescrever a história de acordo com a própria percepção. E faz lembrar o romance de George Orwell 1984, em que o "Ministério da Verdade" está constantemente ocupado em acomodar o passado à linha partidária dominante.

O presidente da República é obcecado por duas coisas: a homossexualidade alheia, que de forma repetida e inteiramente inútil insiste em tematizar, e o passado, o qual, assim como a todos os reacionários, o ocupa muito mais do que o futuro. O motivo por que ele se interessa mais pelos homossexuais e por uma ditadura militar que terminou 35 anos atrás do que, por exemplo, pela reforma da aposentadoria, um melhor sistema de ensino ou o combate à pobreza, é um caso para psicólogos.

O fato é que esse presidente bloqueia novamente o Brasil. Ele não leva o país adiante, mas o toma como refém de suas obsessões. Ele não tem nenhum interesse em unir, ele divide; não quer paz, mas conflito permanente. Isso é seu combustível, o que ele tem em comum com Donald Trump, outro narcisista de coração pequeno e mente estreita.

Cerca de 2 mil pessoas foram torturadas durante a ditadura militar brasileira, assim como Carmen A.. Quanto ao número de mortos, falta clareza até hoje. Embora por muito tempo se computassem 357 mortos, sobretudo oposicionistas de esquerda e guerrilheiros, em 2012 acrescentaram-se outras 600 vítimas: lavradores, sindicalistas, párocos de aldeia, ambientalistas. Um novo cálculo inclui agora também milhares de índios mortos por estarem no caminho de projetos de infraestrutura, como as represas no Amazonas.

Devido a esses números de vítimas relativamente baixos, se comparados às ditaduras do Chile e Argentina, o regime militar do Brasil é também denominado "ditadura light". Mas isso existe? É do filósofo alemão Theodor W. Adorno a constatação: "Não há vida certa no que é errado". Da mesma forma não há ditadura suave para as vítimas. O torturador coronel Paulo Malhães foi assustadoramente franco, ao dizer perante a Comissão Nacional da Verdade, introduzida em 2011: "Nós matamos tantos quanto foram necessários."

A pergunta decisiva: há mais do que mero revisionismo histórico por trás dos esforços de minimização desses homens? Trata-se de um projeto de legitimação de uma política que persegue o que é contrário e impõe seus projetos inescrupulosamente?

Será então que este 31 de março visa apontar em direção ao futuro e, por exemplo, legitimar a destruição da selva amazônica e a expulsão dos indígenas em favor de interesses econômicos? Ou o procedimento cada vez mais brutal da polícia nas favelas? Será que a resposta aos graves problemas sociais do Brasil é, mais uma vez, repressão?

Na realidade, em tudo isso há uma contradição dialética com que nem mesmo Bolsonaro possivelmente contou: os militares brasileiros estão pouco entusiasmados com a ideia de celebrar um golpe militar. O fato de essa ordem ter vindo do ex-capitão Bolsonaro, que nunca passou do baixo escalão, possivelmente gera desagrado adicional.

Como se mostra de forma cada vez mais aberta, em sua maioria os generais não estão interessados em aprofundar o cisma da sociedade brasileira. São não raro pessoas racionais, que têm em vista o bem do Brasil e a paz. Isso os distingue de um presidente impelido por suas obsessões e que prefere promover a arruaça.

Taokey?


Todo privilégio corrompe
Modesto Carvalhosa

Deu no jornal

Ricos, em condomínio de luxo não atingido, receberão indenização da Vale
A Vale, frequentemente acusada de desamparar pessoas pobres atingidas pelas tragédias que provoca, ofereceu a moradores de um condomínio de luxo, que fica muito acima da barragem de Brumadinho e não foi nem de longe atingido, o auxílio de um salário mínimo por um ano. E por incrível que pareça parte dos moradores pretende aceitar a "indenização emergencial", como é chamado o benefício.
O condomínio Retiro das Pedras fica na divisa com Nova Lima, em uma parte alta, mas ainda está no município de Brumadinho. Só que a altura em que fica o Retiro jamais fez a lama tóxica ameaçá-los.
 Mesmo assim no último fim de semana houve disputa dos formulários levados pelo prefeito e representantes da companhia, segundo conta um dos moradores que recusou a ajuda imerecida e revela que houve até tumulto na disputa dos formulários. Acharam que foram poucos os formulários levados.

A Vale confirma que vai pagar esse benefício, alegando que pelo critério geográfico o condomínio fica na cidade. A síndica Claudia Baeta confirma que alguns moradores vão receber e conta que o tumulto na reunião foi motivado também pela surpresa. Os moradores não imaginavam que teriam direito à indenização. De fato não deveriam ter. Ela conta que o prefeito de Brumadinho visitou também outros condomínios que ficam longe da barragem rompida, como o Retiro do Chalé e o Casa Branca, e tem sugerido que todos os moradores aceitem a indenização, e, segundo ela, ele disse que quem não quer ficar com o dinheiro poderá doar.
 O Retiro das Pedras tem em torno de 680 lotes e havia cerca de 100 pessoas na reunião. Claudia relata que nem todas as pessoas aceitaram a indenização.
 — Eu ainda não decidi e não tenho a obrigação de divulgar minha decisão. Não acho que tenho direito à indenização, mas a regra foi decidida pelos órgãos responsáveis— diz a síndica. Ela diz que cogita doar os valores.
 Cada um dos adultos que comprove que morava em Brumadinho no dia 25 de janeiro, quando a barragem se rompeu, tem direito a um salário mínimo mensal por um ano. É preciso apenas um documento de comprovação, como a conta de água ou o registro em posto de saúde. Adolescentes têm direito a meio salário mínimo. Para crianças, a indenização é de um quarto do salário mínimo, também pelo prazo de um ano.
Até aqui, ao todo 1.300 pessoas se cadastraram para receber a indenização emergencial. A Vale não informa quantos são moradores do Retiro das Pedras ou dos outros condomínios da região. A empresa explica que está cumprindo o acordo firmado com a Advocacia-Geral do Estado e também a da União, o Ministério Público do Estado e o MPF, além das Defensorias Públicas do Estado e da União.
É óbvio que o acordo tem que ser para quem for atingido e não para moradores de condomínios de luxo, longe de onde ocorreu o fato e bem acima da terrível tragédia.Míriam Leitão

O pesadelo do sono de Bolsonaro

Foi o presidente Jair Bolsonaro quem contou. Durante uma de suas internações os médicos conferiram a qualidade do seu sono e registraram 89 breves alterações por hora. Nas suas palavras: "Um recorde. Os médicos disseram: 'Como é que você consegue raciocinar?'".

Sono é assunto sério. Donald Trump diz que dorme de quatro a cinco horas por dia num quarto onde tem três televisões. Talvez isso explique muita coisa. Os primeiros meses da Presidência de Bill Clinton foram uma calamidade. Irritava-se, não conseguia prestar atenção nos outros. Era a noite maldormida. O primeiro-ministro britânico Winston Churchill regulava com o horário de Trump, mas sua soneca da tarde era sagrada.

Em dezembro do ano passado Bolsonaro sentiu-se mal porque se confundiu com os medicamentos e teve uma sonolência. Dormindo pouco, ou mal, ele compromete seu desempenho nas horas em que fica acordado, sobretudo se tiver um celular à mão. Nesse caso, o disparador de mensagens produz no meio político o efeito letal do revólver que mantém ao alcance mesmo quando está na cama.

Desde que entrou no Planalto, Bolsonaro descumpre uma das normas que regem o funcionamento do prédio. Ele se destina a diminuir o tamanho dos problemas. Alguns presidentes, como Fernando Henrique Cardoso e Lula, foram amortecedores de encrencas e crises. Nos seus 16 anos de poder a crise entrava no palácio e saía menor. Outros, como Dilma Rousseff e João Figueiredo, foram propagadores de dificuldades. Ambos perderam o controle de seus governos.
À primeira vista, Bolsonaro continua em campanha. Isso explica que vá a Washington condenar o "antigo comunismo" e que tenha obrigado o presidente chileno, Sebastián Piñera, a considerar "infelizes" algumas de suas opiniões. Campanha é assim mesmo, quanto mais tensão se puser na mesa, melhor, sobretudo numa disputa como a eleição brasileira do ano passado.

Governo é outra coisa e Bolsonaro sabe que a campanha terminou, mas procura afirmar-se produzindo tensões. À falta do "antigo comunismo", não tendo Lênin nem Fidel Castro para desafiar, encrencou com Rodrigo Maia. Ganha um fim de semana em Cuba quem souber por que ele se desentendeu com o presidente da Câmara.

Há duas semanas anunciou-se que o presidente da República teria um almoço com os presidentes dos dois outros poderes para um encontro harmonizador. Não era bem assim. O que poderia ter sido uma conversa de três pessoas virou um churrasco ao qual compareceram 15 ministros. Uma assembleia geral, enfim. Maia não reclamou, mas registrou.

Fabricar tensões é mau negócio para governante. Como ensinou Tancredo Neves, presidente tem que dar as cartas, não pode ficar o tempo todo embaralhando-as.

Nos últimos meses Jair Bolsonaro teve uma vida dura, com um atentado, três cirurgias e longas internações. Em poucos meses passou pela tensão da montagem do governo e, desde janeiro, chefia uma equipe que pretende mudar a estrutura e os métodos da administração. Em alguns setores, como nos ministérios da Agricultura e da Infraestrutura, a coisa está funcionando. Em outros, como na Educação, o clima é de gafieira.

Quando os médicos de Bolsonaro surpreenderam-se com a má qualidade do seu sono, eles sabiam do que estavam falando. Uma das consequências mais mencionadas desse distúrbio é a irritabilidade. Pode parecer bobagem, mas David Gergen, conselheiro de Bill Clinton, contou que as coisas melhoraram quando o presidente passou a dormir direito.
Elio Gaspari:

Brasil no poste por má direção


Bolsonaro reforma o lema 'nós contra eles'

A tramitação da reforma da Previdência enviada pelo presidente Jair Bolsonaro ao Parlamento foi contaminada por uma nova versão do “nós contra eles”, famigerada palavra de ordem cunhada durante os governos petistas e em parte responsável pela polarização política até hoje vivenciada no Brasil. Para Bolsonaro e seus aliados mais próximos, “eles” são os políticos tradicionais, detentores de parte considerável dos votos na Câmara dos Deputados e no Senado Federal.

A má notícia para quem deposita na reforma previdenciária suas esperanças de retomada do crescimento econômico é que, no presidencialismo à brasileira, dificilmente o Legislativo se tornará um terreno menos árido sem a liderança do próprio presidente da República. Por outro lado, a boa notícia é que cedo ou tarde Bolsonaro e seus articuladores políticos acabarão por entender que negociar não é sinônimo de fazer negociata.

Hoje, o Congresso Nacional é um território hostil à tramitação de propostas de emenda à Constituição Federal. As PECs exigem maioria absoluta dos votos na Câmara e no Senado para serem aprovadas, e depois de passarem por dois turnos em cada uma dessas Casas são promulgadas em sessão do Congresso Nacional. Ou seja, o presidente da República não tem como alterar essas emendas constitucionais, se não for com muita conversa e usando o seu poder de influência durante a tramitação.

A expressão “nós contra eles” foi incluída no léxico político pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e durante muito tempo teve uma conotação social e era também relacionada à luta de classes. Lula, a ex-presidente Dilma Rousseff e seus correligionários a usaram à exaustão para desqualificar adversários e obter seguidas vitórias nas urnas. Foi a ela também que petistas apelaram, em vão, para tentar reunir votos e militantes contra o processo de impeachment de Dilma, a prisão de Lula e amplificar críticas à administração de Michel Temer.

O PT insistiu no mesmo cântico de guerra durante a última disputa eleitoral, mantendo a candidatura de Lula ficta até o limite do prazo legal.

Já a candidatura de Jair Bolsonaro ao Palácio do Planalto foi fruto desse ambiente de polarização política e nele prosperou. Antipetistas uniram-se aos eleitores de primeira hora do então deputado federal do PSL, levando o capitão da reserva do Exército a uma vitória no segundo turno contra o petista Fernando Haddad.

Durante décadas, Bolsonaro atuou na Câmara dos Deputados mais para barrar os projetos com os quais não concordava do que para construir consensos e viabilizar a aprovação de suas próprias propostas. Percorreu o país no período pré-eleitoral com esse mesmo comportamento e boa parte de sua campanha foi fundamentada na crítica à política. Muitos dos seus eleitores esperavam que, uma vez empossado, Bolsonaro assumiria uma postura mais virtuosa. Mas suas primeiras movimentações como chefe do Poder Executivo mantiveram o mesmo tom, o que, deve-se ressaltar, também é responsável por manter mobilizada a base social que o apoiou desde o início dessa jornada.

Bolsonaro preferiu criar uma barreira entre o Palácio do Planalto e os partidos políticos. Disse que a diferença em relação aos seus antecessores é que nunca correrá o risco de ser preso, responsabilizando o presidencialismo de coalizão pelos crimes praticados por políticos.

Durante o fim de semana, afirmou que não seria arrastado para batalhas que não são suas no Senado. E sublinhou que já fez a sua parte em relação à reforma, acrescentando que agora a bola está com o Congresso.

Está, assim, executando o plano que desenhou durante o período de transição, mas agora diversos parlamentares começam a se queixar de que ficarão expostos sozinhos às críticas pela aprovação de uma medida impopular.

O presidente também passou a questionar, em conversas com a imprensa e transmissões ao vivo em redes sociais, o que mais poderia fazer para viabilizar a aprovação da reforma da Previdência sem ferir o Código Penal. Muitos parlamentares têm a resposta na ponta da língua: assumir a liderança do processo e compartilhar o ônus político de desagradar trabalhadores do setor privado, servidores públicos e militares, em vez de resguardar-se para depois poder avocar a autoria do projeto e seus efeitos positivos sobre a economia.

Embora tenha ocupado a função de vice-líder do PDC em 1991 no início de seu primeiro mandato, Bolsonaro nunca exerceu de fato cargo de liderança em seus quase 30 anos na Câmara dos Deputados. No entanto, certamente o fez quando estava em serviço ativo do Exército e ainda deve ter em mente as diretrizes definidas para quadros de liderança da Força.

Publicado em 2011 pelo Estado-Maior do Exército, a segunda edição do “Manual de Campanha – Liderança Militar” tem algumas dicas úteis. O texto diz, por exemplo, que os liderados só agem quando se sentem afiançados. Em tempos de normalidade, prossegue o guia, o gestor deve se preocupar não somente com o controle do estresse de seus subordinados, por meio de comportamentos atentos e comunicativos, mas também consigo próprio. “O estresse detectado nos líderes é extremamente ‘contagioso'”, anota.

“O cenário de crise caracteriza-se por um estado de tensão, provocado por fatores externos ou internos. Um choque de interesses, se não administrado adequadamente, corre o risco de sofrer um agravamento, podendo haver uma escalada a uma situação de guerra ou conflito”, acrescenta o manual, antes de se referir às peculiaridades da liderança militar em combate: “Seus desafios não se encerram com a tomada de decisões, pois é preciso disseminá-las de forma que não haja dúvidas sobre sua legitimidade e acerto, além de garantir que sejam devidamente cumpridas por subordinados comprometidos. Ao agir dessa forma, o comandante evidenciará sua proficiência profissional e conseguirá mostrar-se confiável e persuasivo, favorecendo o surgimento da liderança”. 

Homem lobo do homem

Antigamente o que oprimia o homem era a palavra calvário; hoje é salário
Carolina Maria de Jesus

Código de barra trava a reforma da Previdência

O sistema político brasileiro, como se sabe, morreu. E não foi para o céu. A despeito disso, um Congresso supostamente renovado discute a reforma da Previdência ostentando os mesmos vícios que levaram à deslegitimação de um modelo insustentável. No gogó, há na Câmara uma imensa maioria de deputados a favor da proposta de reforma previdenciária. Mas a emenda constitucional não avança porque o governo e seus potenciais apoiadores não se entendem quanto ao preço dos votos.


Bolsonaro se autoproclama um presidente limpinho. E oferece um balcão mixuruca, com emendas orçamentárias impositivas e cargos de quinta categoria. Os potenciais aliados do governo olham ao redor, enxergam o laranjal que cresce no quintal do PSL, partido do presidente, vêem o primogênito Flávio Bolsonaro encrencado com o Ministério Público, observam a queda da popularidade do capitão e sentenciam: "Bolsonaro é um dos nossos. Terá que jogar o jogo". E nada avança.

Depois de cinco anos de Lava Jato, o Brasil continua às voltas com a síndrome do quase. A faxina quase foi alcançada quando as ruas escorraçaram Collor do poder. A higienização quase foi obtida quando cassaram-se os mandatos de meia dúzia de anões do Orçamento. A purificação quase chegou quando o Supremo mandou para a Papuda a bancada do mensalão. Sobrevieram o impeachment de Dilma, a prisão de Lula, a eleição de uma chapa puro-sangue militar, o pesadelo criminal de Temer... E prossegue a maldição do quase.<

Churchill ensinou que a democracia é o pior regime possível com exceção de todos os outros. No Brasil, os políticos continuam engajados num esforço para implementar as alternativas piores. Se tivessem juízo, os congressistas arrancariam da lapela o código de barras. A sociedade e a economia do país não suportam mais.

Bolsonaro escancara cadáver insepulto da ditadura com celebração do golpe

O presidente Jair Bolsonaro sinalizou oficialmente que as Forças Armadas poderão comemorar o golpe de 31 de março de 1964, que instaurou uma ditadura militar no país, deixando centenas de mortos e desaparecidos, e cuja repressão lançou mão de artifícios como estupros e tortura. O anúncio, feito pelo porta-voz do Governo, Otávio Rêgo Barros, na noite de segunda, escancarou os fantasmas que o Brasil carrega e não consegue superar apesar de todas as tentativas de se pacificar com o passado. "O nosso presidente já determinou ao Ministério da Defesa que faça as comemorações devidas com relação a 31 de março de 1964”, afirmou Barros. A então presidenta Dilma Rousseff, ela própria vítima das torturas da ditadura, havia suspendido em 2011 qualquer celebração da data.


Agora, com número recorde de militares ocupando o primeiro escalão do Governo desde os anos de chumbo, Bolsonaro faz um aceno considerado por especialistas "mais simbólico do que prático" para a ala mais radical da tropa, conhecida como generais de pijama, ou militares da reserva. Porém, a simples menção à data como fonte de celebração ganha dimensão humilhante para familiares que tiveram parentes torturados e mortos na ditadura. Ieda de Seixas, que tinha 24 anos ao ser presa e torturada no período da ditadura apenas por ser filha de um militante político, criticou a decisão de Bolsonaro, mas não se disse surpresa. “Anistiaram os torturadores, o que eu posso esperar? O que me deixa indignada é saber que os torturadores estão morrendo de pijama em casa, sem serem julgados”, afirmou ao EL PAÍS. A Lei da Anistia de 1979 deixou os militares livre de punição, mesmo com as provas irrefutáveis dos crimes cometidos de então.

A decisão de Bolsonaro contrasta com o cenário vigente em outros países da América Latina que também passaram por ditaduras militares. No Chile um general foi destituído pela cúpula do Exército ao saudar um torturador, e a Argentina fez história ao processar e julgar os integrantes do aparato repressivo da Junta Militar. Não há homem público capaz de reverenciar abertamente os tempos da ditadura nesses dois países, pois a sociedade os rejeitaria. O presidente chileno, Sebastián Piñera, um político de direita que sempre criticou o regime do general Pinochet, fez questão de se distanciar do ideário bolsonarista durante a visita do brasileiro ao país. De acordo com ele, as frases do capitão sobre ditadura “são tremendamente infelizes”. “Não compartilho muito do que Bolsonaro diz sobre o tema”, concluiu. Uma das frases de Bolsonaro citadas por Piñera é o “quem procura osso é cachorro”, que ilustrava o gabinete do então deputado que zombava dos brasileiros em busca de restos mortais de seus familiares mortos e enterrados na região do Araguaia.

A chacota de Bolsonaro com assunto tão delicado, no entanto, parece calculada. Enquanto a polarização se reacende com sua decisão, ele faz do assunto um tema de distração em seu Governo que está às voltas com a pressão pela reforma da Previdência. “A esquerda raivosa e os bonecos de ventríloquos estão em polvorosa por causa da decisão do governo de autorizar as comemorações devidas ao Março de 1964. Podem berrar. O choro é livre e graças aos militares, o Brasil também!”, tuitou Joice Hasselman, para amplificar a mensagem de Bolsonaro.

Se em outros países que viveram traumáticos regimes ditatoriais esse quadro seria inimaginável, no Brasil uma parcela de brasileiros diminui o tamanho das feridas da ditadura. Bolsonaro, porém, sempre a defendeu publicamente, e se declarou ser assumido fã do torturador Carlos Brilhante Ustra, morto em 2015 sem nunca responder por seus crimes. Mesmo assim, ganhou apoio geral dos brasileiros na eleição. O anúncio desta segunda-feira de deixar que as Forças Armadas celebrem a data de 31 foi apoiada por seus seguidores.

Entre militares, porém, há mais comedimento para tratar do assunto, embora o golpe de 1964 seja visto com pragmatismo. O discurso do golpe como um remédio amargo para evitar que o país caminhasse para o comunismo é uma constante entre militares da reserva, ainda que na historiografia essa tese já tenha sido refutada. Em conversa com o EL PAÍS, o general da reserva Paulo Chagas comemorou a medida anunciada por Bolsonaro. “É um resgate de uma dívida histórica, porque é um fato histórico. O país caminhava de forma rápida para se tornar uma república socialista”, afirmou. Já o general Rocha Paiva, também reformado, defende que “o 31 de março seja tratado como uma parte da história do país, que deve ser contada pelos que participaram, sem matiz ideológico. E de 30 anos pra cá, a história tem sido contada com matiz ideológico socialista”.

A própria retórica do presidente deriva deste grupo de reservistas que repudia a “ameaça vermelha”. “Bolsonaro faz isso porque sua base de apoio sempre foi em grande medida costurada por grupos de pressão de oficiais da reserva e no Clube Militar. Tais grupos eram, por assim dizer, o fio de resistência de comemorações que tinham um viés anticomunista, como a da Intentona de 1935”, afirma Piero Leirner, antropólogo e especialista em estratégia militar da Universidade Federal de São Carlos. “Muito do que ele fala vem de construções ideológicas formadas por estes grupos. Por exemplo, o brado ‘Brasil acima de Tudo!’, que foi adotado pelos paraquedistas, inicialmente é de um grupo militar nacionalista chamado ‘Centelha Nativista’, ainda da época do regime militar. Talvez por isso os comandantes da ativa pediram cautela com esta sugestão de Bolsonaro”, explica Leirner. Em 19 de março a Folha de S.Paulo publicou reportagem afirmando que a cúpula militar “quer evitar comemorações públicas e efusivas dos 55 anos do golpe militar”. O objetivo seria evitar polêmicas e manter o foco na aprovação da Reforma da Previdência.

Mesmo entre a intelligentsia das Forças Armadas esta tese prevalece. “Quem viveu o período como eu vivi, de forma intensa, sabe que o que havia naquela época era o preparo de uma revolução comunista patrocinada por Cuba. Na época o Governo começou a adotar uma série de ações que estariam a indicar que isso iria acontecer”, diz Gustavo Heck, professor da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa.

Mas esta visão dos militares embotada com o período da Guerra Fria não é unanimidade. “Os oficiais mais modernos com quem tenho contato não estão preocupados com isso. Ao contrário, acham que é um fardo desnecessário ter que fazer a defesa de algo que evidentemente cometeu uma série de violações”, afirma Carlos Fico, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

A nova orientação dada pelo presidente, ele próprio um capitão da reserva, teria um viés mais simbólico do que prático. “É uma recomendação midiática, não surte efeito algum no ambiente interno das Forças Armadas”, afirma o antropólogo Leirner. O professor explica que os quartéis já vinham realizando uma espécie de celebração da data: “Não exatamente uma celebração como nós civis a poderíamos entender, mas eles produzem discursos formais nas Ordens do Dia, que são lidas em todas unidades militares do País antes do início dos trabalhos pela manhã”. Durante este momento do expediente as efemérides são mencionadas para a tropa.

O historiador Carlos Fico também não vê efeitos práticos na medida. “A não ser que estas iniciativas do presidente transbordassem para algo mais efetivo na Educação, por exemplo, com a mudança de livros didáticos em disciplinas como historia com o intuito de reescrever o período”, afirma. Fico também destaca que a medida não foi bem vista por todos os integrantes das Forças Armadas. “Note-se que os militares que estão no entorno de Bolsonaro talvez preferissem não celebrar, por entender que talvez seja adequado ser mais discreto. Mesmo nesse campo há discordâncias no Governo”, diz.

O porta-voz da presidência justificou as comemorações da data. "O presidente não considera 31 de março de 1964 um golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se, civis e militares, e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país em um rumo”. O porta-voz concluiu, dizendo que “salvo o melhor juízo, se não tivesse ocorrido [o golpe], hoje nós estaríamos tendo algum tipo de Governo aqui que não seria bom para ninguém".

Imagem do Dia


Tristes tempos

A gente anda de luto há muito tempo, e parece que esse processo demorado não tem prazo para acabar. A cada dia surge uma nova perda, envolvendo a morte de um ídolo, de vítimas de catástrofes como quedas de aviões, rompimento de barragens, chacinas em escolas, assassinatos de mulheres, crianças, idosos, incêndios de grandes proporções, enchentes, assaltos, epidemias e demais manchetes da mídia que nos entristecem.

Chega a ser temeroso começar o dia abrindo o jornal ou ligando a tevê, pois tudo parece colaborar para comprometer o humor e aumentar a angústia de quem é apenas espectador de trágicos eventos. Rezamos, pedindo paz no mundo e dias melhores para o país, mas a realidade nos atropela com sua crueldade. Temos, cada vez mais, a certeza de vivermos um período de mutação, em que estranhamos a velocidade com que se sucedem as catástrofes e não nos identificamos com o modo de pensar e agir dos semelhantes.

Paira no ar a insatisfação coletiva. O futuro é uma grande incerteza, em todos os sentidos. Você não sabe, por exemplo, se volta para casa sem sofrer algum tipo de agressão, física ou moral. Não sabe o que esperar de nossos governantes, economia, justiça, educação, saúde. Direitos e deveres foram abalados por novas diretrizes mal esboçadas, divulgadas e canceladas às vezes no mesmo dia.

A mentira ganhou status. Inventam-se currículos logo desmentidos, bravatas e frases de efeito divulgadas rapidamente nas redes sociais e falta transparência nas negociações oficiais, nos três níveis de governo, enquanto nossos ditos representantes não representam anseios e necessidades da população.

Assim, a cidadania também morre um pouco, ignorada ou silenciada. Definham o amor à cultura nacional, a noção do bem coletivo, o estímulo ao conhecimento, os relacionamentos interpessoais, o cuidado com o planeta. E tentamos sobreviver, alguns migrando para outros países, outros, convivendo com o indesejado, numa esperança teimosa de que, um dia, tudo vai mudar.

É tempo de Quaresma, mas antes dela já nos entristecíamos, frente a um obscuro horizonte, frequentemente nublado. Perdemos o costume de ser felizes, desde que alguma coisa com muitos nomes vem nos sugando a autoestima. O número de deprimidos e suicidas cresce a cada dia, assim como os exemplos de desonestidade bem sucedida vindos lá de Brasília, dos Estados, dos Municípios. Parece que, como as estátuas dos santos católicos, fomos cobertos com panos roxos, enlutados por tudo isso. Infelizmente, ainda conseguimos visualizar o que acontece no entorno, através da trama do tecido. Só nos aliviam as quaresmeiras floridas.
Madô Martins

E a reforma da Previdência, hein?

Não é novidade que o funcionário público ganhe mais do que o trabalhador do setor privado. Nas contas da consultoria IDados, o salário médio mensal do barnabé — com todo o respeito — é de R$ 4,2 mil, 87% maior do que o do empregado privado, com média de R$ 2,3 mil. Mas a questão é outra: na última década, você acha que essa diferença aumentou ou diminuiu? A resposta é que... cresceu. Em 2007, a diferença, sempre a favor do funcionalismo, era de “só” 72%.
Ancelmo Gois 

Bettina e o golpe de 64

O que o infame vídeo da Bettina tem em comum com a orientação dada pelo presidente Jair Bolsonaro aos militares para que comemorem no próximo dia 31 mais um aniversário do que ele chama de Revolução Democrática de 64? Resposta: trata-se de propaganda enganosa.

Nem Bettina, funcionária da Empiricus Research, acumulou mais de 1 milhão de reais em três anos graças às indicações de compra de ações feitas pelo seu patrão, nem o movimento de 64 foi uma revolução, e muito menos democrática. Foi um golpe que deu origem a uma ditadura que se estendeu por 21 anos.


Sempre que se vê acuado por crises desatadas por ele mesmo ou por seus filhos, Bolsonaro ensaia uma manobra diversionista. A crise da vez ameaça a aprovação pelo Congresso da reforma da Previdência que Bolsonaro apoia da boca para fora. Criticado até por seus ministros, ele tentou mudar de assunto.

Se dependesse dos chefes militares, o 55º aniversário do golpe de 64 passaria em branco. Vinha sendo assim há décadas. Por que relembrar um período durante o qual 434 pessoas foram mortas pelo regime ou desapareceram? Somente 33 corpos foram localizados. Muitos foram incinerados ou jogados no mar.

Somente no Rio de Janeiro, entre 1964 e 1966 segundo a Comissão Nacional da Verdade, houve ao menos 371 casos de tortura. Os torturadores eram, em sua grande maioria, militares das forças armadas, em especial do Exército. Os centros de tortura funcionavam em dependências militares.

Enquanto durou a ditadura, os brasileiros foram impedidos de votar para presidente da República. O Congresso foi fechado mais de uma vez, mandatos foram cassados e a imprensa censurada. No seu período mais tenebroso, a ditadura suspendeu todos os direitos, inclusive as prerrogativas dos magistrados.

Portanto, comemorar o quê? E por quê? Porque Bolsonaro, disse seu porta-voz, “não considera 31 de março de 1964 um golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se”. Juntos, civis e militares salvarem o país do comunismo.

Mortos e desaparecidos? Para Bolsonaro, pessoas morrem e desaparecem durante uma guerra. Tortura? Às vezes “medidas mais enérgicas” são adotadas para se evitar o pior. Bolsonaro já exaltou a memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o único militar condenado pela Justiça por prática de tortura.

Seja feita a vontade de Bolsonaro. Entidades civis se preparam para promover manifestações de repúdio ao que aconteceu em 64. Está marcada uma caminhada silenciosa na capital paulista. Ditadura, nunca mais. Tortura, nunca mais.

Bolsonaro termina o mandato?

Precisamos considerar a possibilidade de Jair Bolsonaro não terminar o seu mandato. Não torço para que isso aconteça. O cenário mais verossímil para uma eventual saída requer uma forte piora da situação econômica, e a última coisa de que o país precisa é um novo mergulho recessivo. O mito, porém, dá a nítida impressão de que faz tudo a seu alcance para sabotar a si mesmo.

A equação geral do governo Bolsonaro era relativamente simples. Se fizesse uma reforma da Previdência razoável, haveria condições para uma retomada mais consistente do crescimento, com a volta de investimentos privados e aumento da arrecadação. E, quando o país está crescendo, fica menos difícil discutir e aprovar outras reformas potencialmente polêmicas, como a tributária. Poderia ser o início de um círculo virtuoso.


O que vimos nestes quase três meses de administração, entretanto, foi que o presidente fez mais do que a oposição para detonar a proposta de seu ministro da Economia. Primeiro ele sugeriu que a idade mínima de 62 anos para as mulheres era excessiva, depois, ao conceder uma generosa reestruturação de carreira para os militares, destruiu o discurso de que a reforma cortaria privilégios.

No plano da articulação no Congresso, não apenas não fez nada com vistas à aprovação do projeto, que precisa do apoio de três quintos dos parlamentares, como se recusa a negociar com o Legislativo, insistindo na tese de que não cederá à velha política.

O chamado mercado, que, por alguma razão obscura, julgara que Bolsonaro era confiável para tocar uma agenda liberal, vai se dando conta de que as coisas podem não ser tão simples. Se a percepção de que a reforma não virá se consolidar, o dólar dispara, os juros sobem etc., nos lançando num cenário em que a defenestração de Bolsonaro se torna uma variável a considerar. O vice Hamilton Mourão está há meses se contendo, posando de razoável e confiável.