Agora, com número recorde de militares ocupando o primeiro escalão do Governo desde os anos de chumbo, Bolsonaro faz um aceno considerado por especialistas "mais simbólico do que prático" para a ala mais radical da tropa, conhecida como generais de pijama, ou militares da reserva. Porém, a simples menção à data como fonte de celebração ganha dimensão humilhante para familiares que tiveram parentes torturados e mortos na ditadura. Ieda de Seixas, que tinha 24 anos ao ser presa e torturada no período da ditadura apenas por ser filha de um militante político, criticou a decisão de Bolsonaro, mas não se disse surpresa. “Anistiaram os torturadores, o que eu posso esperar? O que me deixa indignada é saber que os torturadores estão morrendo de pijama em casa, sem serem julgados”, afirmou ao EL PAÍS. A Lei da Anistia de 1979 deixou os militares livre de punição, mesmo com as provas irrefutáveis dos crimes cometidos de então.
A decisão de Bolsonaro contrasta com o cenário vigente em outros países da América Latina que também passaram por ditaduras militares. No Chile um general foi destituído pela cúpula do Exército ao saudar um torturador, e a Argentina fez história ao processar e julgar os integrantes do aparato repressivo da Junta Militar. Não há homem público capaz de reverenciar abertamente os tempos da ditadura nesses dois países, pois a sociedade os rejeitaria. O presidente chileno, Sebastián Piñera, um político de direita que sempre criticou o regime do general Pinochet, fez questão de se distanciar do ideário bolsonarista durante a visita do brasileiro ao país. De acordo com ele, as frases do capitão sobre ditadura “são tremendamente infelizes”. “Não compartilho muito do que Bolsonaro diz sobre o tema”, concluiu. Uma das frases de Bolsonaro citadas por Piñera é o “quem procura osso é cachorro”, que ilustrava o gabinete do então deputado que zombava dos brasileiros em busca de restos mortais de seus familiares mortos e enterrados na região do Araguaia.
A chacota de Bolsonaro com assunto tão delicado, no entanto, parece calculada. Enquanto a polarização se reacende com sua decisão, ele faz do assunto um tema de distração em seu Governo que está às voltas com a pressão pela reforma da Previdência. “A esquerda raivosa e os bonecos de ventríloquos estão em polvorosa por causa da decisão do governo de autorizar as comemorações devidas ao Março de 1964. Podem berrar. O choro é livre e graças aos militares, o Brasil também!”, tuitou Joice Hasselman, para amplificar a mensagem de Bolsonaro.
Se em outros países que viveram traumáticos regimes ditatoriais esse quadro seria inimaginável, no Brasil uma parcela de brasileiros diminui o tamanho das feridas da ditadura. Bolsonaro, porém, sempre a defendeu publicamente, e se declarou ser assumido fã do torturador Carlos Brilhante Ustra, morto em 2015 sem nunca responder por seus crimes. Mesmo assim, ganhou apoio geral dos brasileiros na eleição. O anúncio desta segunda-feira de deixar que as Forças Armadas celebrem a data de 31 foi apoiada por seus seguidores.
Entre militares, porém, há mais comedimento para tratar do assunto, embora o golpe de 1964 seja visto com pragmatismo. O discurso do golpe como um remédio amargo para evitar que o país caminhasse para o comunismo é uma constante entre militares da reserva, ainda que na historiografia essa tese já tenha sido refutada. Em conversa com o EL PAÍS, o general da reserva Paulo Chagas comemorou a medida anunciada por Bolsonaro. “É um resgate de uma dívida histórica, porque é um fato histórico. O país caminhava de forma rápida para se tornar uma república socialista”, afirmou. Já o general Rocha Paiva, também reformado, defende que “o 31 de março seja tratado como uma parte da história do país, que deve ser contada pelos que participaram, sem matiz ideológico. E de 30 anos pra cá, a história tem sido contada com matiz ideológico socialista”.
A própria retórica do presidente deriva deste grupo de reservistas que repudia a “ameaça vermelha”. “Bolsonaro faz isso porque sua base de apoio sempre foi em grande medida costurada por grupos de pressão de oficiais da reserva e no Clube Militar. Tais grupos eram, por assim dizer, o fio de resistência de comemorações que tinham um viés anticomunista, como a da Intentona de 1935”, afirma Piero Leirner, antropólogo e especialista em estratégia militar da Universidade Federal de São Carlos. “Muito do que ele fala vem de construções ideológicas formadas por estes grupos. Por exemplo, o brado ‘Brasil acima de Tudo!’, que foi adotado pelos paraquedistas, inicialmente é de um grupo militar nacionalista chamado ‘Centelha Nativista’, ainda da época do regime militar. Talvez por isso os comandantes da ativa pediram cautela com esta sugestão de Bolsonaro”, explica Leirner. Em 19 de março a Folha de S.Paulo publicou reportagem afirmando que a cúpula militar “quer evitar comemorações públicas e efusivas dos 55 anos do golpe militar”. O objetivo seria evitar polêmicas e manter o foco na aprovação da Reforma da Previdência.
Mesmo entre a intelligentsia das Forças Armadas esta tese prevalece. “Quem viveu o período como eu vivi, de forma intensa, sabe que o que havia naquela época era o preparo de uma revolução comunista patrocinada por Cuba. Na época o Governo começou a adotar uma série de ações que estariam a indicar que isso iria acontecer”, diz Gustavo Heck, professor da Escola Superior de Guerra do Ministério da Defesa.
Mas esta visão dos militares embotada com o período da Guerra Fria não é unanimidade. “Os oficiais mais modernos com quem tenho contato não estão preocupados com isso. Ao contrário, acham que é um fardo desnecessário ter que fazer a defesa de algo que evidentemente cometeu uma série de violações”, afirma Carlos Fico, historiador da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
A nova orientação dada pelo presidente, ele próprio um capitão da reserva, teria um viés mais simbólico do que prático. “É uma recomendação midiática, não surte efeito algum no ambiente interno das Forças Armadas”, afirma o antropólogo Leirner. O professor explica que os quartéis já vinham realizando uma espécie de celebração da data: “Não exatamente uma celebração como nós civis a poderíamos entender, mas eles produzem discursos formais nas Ordens do Dia, que são lidas em todas unidades militares do País antes do início dos trabalhos pela manhã”. Durante este momento do expediente as efemérides são mencionadas para a tropa.
O historiador Carlos Fico também não vê efeitos práticos na medida. “A não ser que estas iniciativas do presidente transbordassem para algo mais efetivo na Educação, por exemplo, com a mudança de livros didáticos em disciplinas como historia com o intuito de reescrever o período”, afirma. Fico também destaca que a medida não foi bem vista por todos os integrantes das Forças Armadas. “Note-se que os militares que estão no entorno de Bolsonaro talvez preferissem não celebrar, por entender que talvez seja adequado ser mais discreto. Mesmo nesse campo há discordâncias no Governo”, diz.
O porta-voz da presidência justificou as comemorações da data. "O presidente não considera 31 de março de 1964 um golpe militar. Ele considera que a sociedade, reunida e percebendo o perigo que o país estava vivenciando naquele momento, juntou-se, civis e militares, e nós conseguimos recuperar e recolocar o nosso país em um rumo”. O porta-voz concluiu, dizendo que “salvo o melhor juízo, se não tivesse ocorrido [o golpe], hoje nós estaríamos tendo algum tipo de Governo aqui que não seria bom para ninguém".
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