quarta-feira, 27 de março de 2019

Um presidente impelido pelas próprias obsessões

Carmen A. foi presa em 1974 em São Paulo, ela tinha 28 anos. Os militares a levaram para uma prisão para ser torturada. Lá ligaram um cabo a seu seio direito e lhe deram choques. Eles queriam saber do paradeiro do marido dela e ameaçaram maltratar seu filho de 1 ano.

Seus algozes se chamavam Doutor Romero e Capitão Ubirajara. Quando Carmen me contou sua história, um ano atrás, ambos estavam soltos. Eles tiveram que pagar tão pouco por seus crimes quanto todos os demais torturadores e assassinos de uniforme que, entre 1964 e 1985, afirmavam ter que proteger o Brasil da ameaça comunista.


Para o presidente Jair Bolsonaro, homens como Romero e Ubirajara não são criminosos, eles são heróis. Isso diz muito sobre o caráter patológico de um homem cujo livro preferido foi escrito por um torturador que, entre outras coisas, mandava inserir ratos na vagina de suas vítimas.

Esses e outros crimes nunca entraram na memória coletiva dos brasileiros. Isso se deve sobretudo à lei da anistia, que os militares introduziram em 1979, também para si mesmos. Assim, os cidadãos ficaram sabendo pouco sobre os aspectos sombrios do regime. Conservadores afirmam até hoje que a lei e a ordem imperavam na época.

A falta de estudo e conhecimento sobre a história do país é um dos solos sobre os quais Jair Bolsonaro pode agora declarar o 31 de março dia comemorativo nas casernas. Em outros países da América Latina que sofreram sob regimes militares, seria impensável uma coisa dessas, hoje em dia. No Brasil de Jair Bolsonaro, é possível.

Em 31 de março de 1964, as Forças Armadas brasileiras perpetraram um golpe de Estado contra o presidente constitucionalmente legítimo João Goulart, acusando-o de comunismo por, entre outros motivos, almejar uma reforma agrária.

Milhões de brasileiros conservadores apoiaram o golpe, do mesmo modo que a elite econômica, empresas de mídia, a Igreja Católica e o governo dos Estados Unidos. Navios de guerra americanos se encontravam perto do litoral brasileiro. Era o início dos "anos de chumbo". Para Bolsonaro, em contrapartida, foi o começo de uma época gloriosa.

"Não houve golpe militar", ele comunicou agora através de seu porta-voz, foi uma "intervenção democrática". É a tentativa do político de reescrever a história de acordo com a própria percepção. E faz lembrar o romance de George Orwell 1984, em que o "Ministério da Verdade" está constantemente ocupado em acomodar o passado à linha partidária dominante.

O presidente da República é obcecado por duas coisas: a homossexualidade alheia, que de forma repetida e inteiramente inútil insiste em tematizar, e o passado, o qual, assim como a todos os reacionários, o ocupa muito mais do que o futuro. O motivo por que ele se interessa mais pelos homossexuais e por uma ditadura militar que terminou 35 anos atrás do que, por exemplo, pela reforma da aposentadoria, um melhor sistema de ensino ou o combate à pobreza, é um caso para psicólogos.

O fato é que esse presidente bloqueia novamente o Brasil. Ele não leva o país adiante, mas o toma como refém de suas obsessões. Ele não tem nenhum interesse em unir, ele divide; não quer paz, mas conflito permanente. Isso é seu combustível, o que ele tem em comum com Donald Trump, outro narcisista de coração pequeno e mente estreita.

Cerca de 2 mil pessoas foram torturadas durante a ditadura militar brasileira, assim como Carmen A.. Quanto ao número de mortos, falta clareza até hoje. Embora por muito tempo se computassem 357 mortos, sobretudo oposicionistas de esquerda e guerrilheiros, em 2012 acrescentaram-se outras 600 vítimas: lavradores, sindicalistas, párocos de aldeia, ambientalistas. Um novo cálculo inclui agora também milhares de índios mortos por estarem no caminho de projetos de infraestrutura, como as represas no Amazonas.

Devido a esses números de vítimas relativamente baixos, se comparados às ditaduras do Chile e Argentina, o regime militar do Brasil é também denominado "ditadura light". Mas isso existe? É do filósofo alemão Theodor W. Adorno a constatação: "Não há vida certa no que é errado". Da mesma forma não há ditadura suave para as vítimas. O torturador coronel Paulo Malhães foi assustadoramente franco, ao dizer perante a Comissão Nacional da Verdade, introduzida em 2011: "Nós matamos tantos quanto foram necessários."

A pergunta decisiva: há mais do que mero revisionismo histórico por trás dos esforços de minimização desses homens? Trata-se de um projeto de legitimação de uma política que persegue o que é contrário e impõe seus projetos inescrupulosamente?

Será então que este 31 de março visa apontar em direção ao futuro e, por exemplo, legitimar a destruição da selva amazônica e a expulsão dos indígenas em favor de interesses econômicos? Ou o procedimento cada vez mais brutal da polícia nas favelas? Será que a resposta aos graves problemas sociais do Brasil é, mais uma vez, repressão?

Na realidade, em tudo isso há uma contradição dialética com que nem mesmo Bolsonaro possivelmente contou: os militares brasileiros estão pouco entusiasmados com a ideia de celebrar um golpe militar. O fato de essa ordem ter vindo do ex-capitão Bolsonaro, que nunca passou do baixo escalão, possivelmente gera desagrado adicional.

Como se mostra de forma cada vez mais aberta, em sua maioria os generais não estão interessados em aprofundar o cisma da sociedade brasileira. São não raro pessoas racionais, que têm em vista o bem do Brasil e a paz. Isso os distingue de um presidente impelido por suas obsessões e que prefere promover a arruaça.

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