domingo, 14 de maio de 2023
Política
É um bom jogo de xadrez em que tudo está nas mãos de muitos poucos homens - e o povo sacrificadoJohn Randolph Dos Passos
Os confirmadores
Atrás de mim na fila para o banco estava um senhor com um envelope com notas misteriosas. Para observá-lo, demorei-me ao balcão, fingindo ler um folheto.
As notas eram francos suíços e dólares de Singapura. Mas não vinha depositá-las. Vinha perguntar ao banco se ainda estavam em vigor.
Vendo que eu estava comovido, a imaginar colchões em águas-furtadas, a senhora da caixa interrompeu as minhas fantasias e disse que ele ia lá de seis em seis meses, sempre com as mesmas notas, sempre no mesmo envelope, sempre com a mesma pergunta.
Às vezes as metáforas apresentam-se já feitas e a única coisa a fazer é aproveitá-las. Não era este velhote das notas muito parecido com a grande maioria dos meus amigos?
São de esquerda e de direita, mas essa diferença é ilusória, porque aquilo que são, verdadeira e profundamente, são confirmadores.
Quando leem os jornais, tudo o que procuram para ler são confirmações do que pensam. Pode ser pela negativa: os que pensam o contrário demonstram que são adversários desprezíveis e, por conseguinte, confirmam que a única posição racional é a oposta, que obviamente coincide com a posição destes meus amigos.
Os confirmadores gastam o tempo que têm a confirmar que o tempo deles é bem gasto, porque reforça o que já sabem e o que já pensam. Adquirem mais trunfos para lutar contra os confirmadores adversários, que agem e pensam exatamente da mesma maneira, mas num sentido contrário.
É como os carros na Marginal: uns vão para Cascais e outros para Lisboa, mas andam todos de carro e andam todos na Marginal.
Os confirmadores preferem saber pouco, mas ter a certeza do que já sabem, do que saber muito, mas sem ter a certeza se vale alguma coisa o que sabem.
Todos os dias levam as crenças e opiniões ao banco para confirmar que ainda são aceites, partilhadas, legítimas, valiosas.
Tornam-se especialistas da cepa torta, imobilistas capazes das maiores acrobacias para não sair do mesmo sítio.
É quase admirável.
As notas eram francos suíços e dólares de Singapura. Mas não vinha depositá-las. Vinha perguntar ao banco se ainda estavam em vigor.
Vendo que eu estava comovido, a imaginar colchões em águas-furtadas, a senhora da caixa interrompeu as minhas fantasias e disse que ele ia lá de seis em seis meses, sempre com as mesmas notas, sempre no mesmo envelope, sempre com a mesma pergunta.
Às vezes as metáforas apresentam-se já feitas e a única coisa a fazer é aproveitá-las. Não era este velhote das notas muito parecido com a grande maioria dos meus amigos?
São de esquerda e de direita, mas essa diferença é ilusória, porque aquilo que são, verdadeira e profundamente, são confirmadores.
Quando leem os jornais, tudo o que procuram para ler são confirmações do que pensam. Pode ser pela negativa: os que pensam o contrário demonstram que são adversários desprezíveis e, por conseguinte, confirmam que a única posição racional é a oposta, que obviamente coincide com a posição destes meus amigos.
Os confirmadores gastam o tempo que têm a confirmar que o tempo deles é bem gasto, porque reforça o que já sabem e o que já pensam. Adquirem mais trunfos para lutar contra os confirmadores adversários, que agem e pensam exatamente da mesma maneira, mas num sentido contrário.
É como os carros na Marginal: uns vão para Cascais e outros para Lisboa, mas andam todos de carro e andam todos na Marginal.
Os confirmadores preferem saber pouco, mas ter a certeza do que já sabem, do que saber muito, mas sem ter a certeza se vale alguma coisa o que sabem.
Todos os dias levam as crenças e opiniões ao banco para confirmar que ainda são aceites, partilhadas, legítimas, valiosas.
Tornam-se especialistas da cepa torta, imobilistas capazes das maiores acrobacias para não sair do mesmo sítio.
É quase admirável.
Um esquema de rachadinha para Michelle Bolsonaro chamar de seu
Diálogos exemplares travados pelo tenente coronel Mauro Cid, então ajudante de ordem de Bolsonaro, com Cintia Borba Nogueira e Giselle dos Santos Carneiro de Silva, assessoras de Michelle. Assunto: o pagamento de despesas da primeira-dama.
Michelle usava um cartão de crédito vinculado à conta de Rosimary Cardoso Cordeiro, funcionária do Senado e sua amiga. Cid pagava a fatura do cartão com dinheiro vivo em uma agência do Banco do Brasil dentro do Palácio do Planalto.
De Cintia para Giselle em 30/10/2020 – “Então hoje essa situação do cartão realmente é um pouco preocupante. O que eu sugiro para você. No momento que for despachar com ela, você pode falar com ela assim sutilmente, né? Mas eu acho que você poderia falar assim: dona Michelle, que é que a senhora acha de a gente fazer um cartão para a senhora? Um cartão independente da Caixa. Para evitar que a gente fique na dependência da Rosy. E aí a gente pode controlar melhor as contas. Pode alertá-la do seguinte: que isso pode dar problema futuramente, se algum dia, Deus o livre, a imprensa descobre que ela é dependente da Rose, pode gerar algum problema”.
Giselle informa a Mauro Cid que conversou com uma pessoa próxima a Michelle, de nome Adriana, e que a primeira-dama ficou “pensativa”, mas que continuaria a usar o cartão de Rosimary. Mauro Cid então responde:
“Giselle, mas ainda não é o ideal isso não, tá? (o uso do cartão de Rosimary). O Cordeiro conversou com ela (Michelle), tá, também. E ela ficou com a pulga atrás da orelha mesmo: tá, é? É. É a mesma coisa do Flávio [Bolsonaro, senador]. O problema não é quando! É como deputado, rachadinha, essas coisas”.
“Se ela perguntar para você ou falar alguma coisa ou comentar, é importante ressaltar com ela que é o comprovante que ela tem. É um comprovante de depósito, é comprovante de pagamento. Não é um comprovante dela pagando nem do presidente pagando. Entendeu? É um comprovante que alguém tá pagando. Tanto que a gente saca o dinheiro e dá pra ela pagar ou sei lá quem paga ali. Então não tem como comprovar que esse dinheiro efetivamente sai da conta do presidente.”
“O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que fez com o Flávio, vai dizer que tem uma assessora de um senador aliado do presidente que está dando rachadinha, tá dando a parte do dinheiro para Michelle”.
Em novo áudio para Giselle, em novembro do ano passado, Mauro Cid comenta ainda a propósito do cartão:
“E isso sem contar a imprensa que quando a imprensa caiu de pau em cima, vai vender essa narrativa. Pode ser que nunca aconteça? Pode. Mas pode ser que amanhã, um mês, um ano ou quando ele terminar o mandato dele, isso venha à tona”.
A troca de áudios indica que o esquema evitava transferências bancárias e fazia pagamentos sempre em dinheiro vivo. Em conversa de 8 de novembro de 2021 com Osmar Crivelatti, militar subordinado a Mauro Cid, Cíntia diz:
“E sobre as flores da Patrícia Abravanel [filha do apresentador de tv Silvio Santos], ela falou que é para o Cid fazer o pagamento. Mas ele tinha me falado na semana passada que quando for esses pagamentos de terceiros, é para a gente pegar o dinheiro com ele e fazer o pagamento por aqui, tá? Então eu vou pedir a ele para sacar esse dinheiro e peço ao Vanderlei para pegar lá para a gente fazer o… Vai ter que ser feito um depósito, né? No número daquela conta que você me passou, tá?”
De Giselle para uma pessoa identificada como Vanderlei – “Boa noite, Vand e Cintía. PD (Primeira-dama) falou, eu perguntei para ela se ela queria transferir Pix, né? Tanto para Bia. Daí, ela falou: não, vamos fazer agora tudo depósito, que, aí pede pro Vanderlei fazer o depósito, a gente consegue o dinheiro e faz o depósito. Só que ela não falou como conseguiu o dinheiro, se o dinheiro está com ela, se a gente pega na AJO. Não falou, tá? Ela falou que assim não fica registrado nada, vamos fazer depósito. Então a gente tem que começar a ter esse hábito do depósito”.
Mauro Cid foi preso no dia 3 de maio durante uma operação que investiga fraude em dados de vacinação contra a Covid-19. Na casa dele, dentro de um cofre, a Polícia Federal encontrou US$ 35 mil (equivalentes a R$ 175 mil) e R$ 16 mil em espécie. Quer mais?
Empresa contratada pela estatal Codevasf, a Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais para Construção fez 12 depósitos na conta de um subordinado de Cid, o sargento Luis Marcos dos Reis. O sargento pagou despesas de Michelle.
Michelle usava um cartão de crédito vinculado à conta de Rosimary Cardoso Cordeiro, funcionária do Senado e sua amiga. Cid pagava a fatura do cartão com dinheiro vivo em uma agência do Banco do Brasil dentro do Palácio do Planalto.
De Cintia para Giselle em 30/10/2020 – “Então hoje essa situação do cartão realmente é um pouco preocupante. O que eu sugiro para você. No momento que for despachar com ela, você pode falar com ela assim sutilmente, né? Mas eu acho que você poderia falar assim: dona Michelle, que é que a senhora acha de a gente fazer um cartão para a senhora? Um cartão independente da Caixa. Para evitar que a gente fique na dependência da Rosy. E aí a gente pode controlar melhor as contas. Pode alertá-la do seguinte: que isso pode dar problema futuramente, se algum dia, Deus o livre, a imprensa descobre que ela é dependente da Rose, pode gerar algum problema”.
Giselle informa a Mauro Cid que conversou com uma pessoa próxima a Michelle, de nome Adriana, e que a primeira-dama ficou “pensativa”, mas que continuaria a usar o cartão de Rosimary. Mauro Cid então responde:
“Giselle, mas ainda não é o ideal isso não, tá? (o uso do cartão de Rosimary). O Cordeiro conversou com ela (Michelle), tá, também. E ela ficou com a pulga atrás da orelha mesmo: tá, é? É. É a mesma coisa do Flávio [Bolsonaro, senador]. O problema não é quando! É como deputado, rachadinha, essas coisas”.
“Se ela perguntar para você ou falar alguma coisa ou comentar, é importante ressaltar com ela que é o comprovante que ela tem. É um comprovante de depósito, é comprovante de pagamento. Não é um comprovante dela pagando nem do presidente pagando. Entendeu? É um comprovante que alguém tá pagando. Tanto que a gente saca o dinheiro e dá pra ela pagar ou sei lá quem paga ali. Então não tem como comprovar que esse dinheiro efetivamente sai da conta do presidente.”
“O Ministério Público, quando pegar isso aí, vai fazer a mesma coisa que fez com o Flávio, vai dizer que tem uma assessora de um senador aliado do presidente que está dando rachadinha, tá dando a parte do dinheiro para Michelle”.
Em novo áudio para Giselle, em novembro do ano passado, Mauro Cid comenta ainda a propósito do cartão:
“E isso sem contar a imprensa que quando a imprensa caiu de pau em cima, vai vender essa narrativa. Pode ser que nunca aconteça? Pode. Mas pode ser que amanhã, um mês, um ano ou quando ele terminar o mandato dele, isso venha à tona”.
A troca de áudios indica que o esquema evitava transferências bancárias e fazia pagamentos sempre em dinheiro vivo. Em conversa de 8 de novembro de 2021 com Osmar Crivelatti, militar subordinado a Mauro Cid, Cíntia diz:
“E sobre as flores da Patrícia Abravanel [filha do apresentador de tv Silvio Santos], ela falou que é para o Cid fazer o pagamento. Mas ele tinha me falado na semana passada que quando for esses pagamentos de terceiros, é para a gente pegar o dinheiro com ele e fazer o pagamento por aqui, tá? Então eu vou pedir a ele para sacar esse dinheiro e peço ao Vanderlei para pegar lá para a gente fazer o… Vai ter que ser feito um depósito, né? No número daquela conta que você me passou, tá?”
De Giselle para uma pessoa identificada como Vanderlei – “Boa noite, Vand e Cintía. PD (Primeira-dama) falou, eu perguntei para ela se ela queria transferir Pix, né? Tanto para Bia. Daí, ela falou: não, vamos fazer agora tudo depósito, que, aí pede pro Vanderlei fazer o depósito, a gente consegue o dinheiro e faz o depósito. Só que ela não falou como conseguiu o dinheiro, se o dinheiro está com ela, se a gente pega na AJO. Não falou, tá? Ela falou que assim não fica registrado nada, vamos fazer depósito. Então a gente tem que começar a ter esse hábito do depósito”.
Mauro Cid foi preso no dia 3 de maio durante uma operação que investiga fraude em dados de vacinação contra a Covid-19. Na casa dele, dentro de um cofre, a Polícia Federal encontrou US$ 35 mil (equivalentes a R$ 175 mil) e R$ 16 mil em espécie. Quer mais?
Empresa contratada pela estatal Codevasf, a Cedro do Líbano Comércio de Madeiras e Materiais para Construção fez 12 depósitos na conta de um subordinado de Cid, o sargento Luis Marcos dos Reis. O sargento pagou despesas de Michelle.
Um modo canibal de ser
Em tempo de verdade líquida, até mesmo o falso é incerto.
Uma noveleta policial sem maior interesse literário, mas reveladora do imaginário criminoso, retrata um falsário tão obcecado pela perfeição que, com essa reputação, não quer seu nome associado a algo que pudesse ser denunciado como falso. Entenda-se: o transgressor busca a autenticidade, isto é, o ser-fundado-em-si-mesmo, que no limite seria um álibi, um "estar em outro lugar", não criminoso. Ou seja, uma mentira redimível, como uma joia sintética que passa por natural.
Isso vem a propósito da disseminação de falsidades entre nós, em tal grau de dano cognitivo e social que a ala menos mentirosa do Congresso parece convicta quanto a uma lei reguladora. Fake news, porém, é tão só uma fração do fenômeno. Essa expressão, aliás, já está algo envelhecida, considerando-se os desdobramentos e a sua irradiação no meio social.
De fato, não se trata mais apenas de notícias falsas, e sim do ápice da fusão dos modos tradicionais de representação com a realidade artificialmente instaurada pelas tecnologias digitais. Para as jovens gerações, nenhum domínio da vida social ou privada escapa à invasão das tecnologias, que se articulam nas relações sociais como forma de vida. Nada aí parece obstar o apagamento das ideias de limite ou de verdade, indispensáveis à formação da cidadania democrática.
O problema ultrapassa o contágio das fake news. Mentir é construir realidade falsa com saberes reais. Se tecnológica, a mentira é espiral que se autoalimenta e funciona como droga, álibi para se dizer o fazer qualquer coisa, sem marcação de limites. Esvai-se a voz do outro, a autoridade das fontes, com quem se aprende por confiança que dois e dois são quatro ou que se deve respeitar normas.
Nessa lógica do pior, a Terra pode continuar plana até que se leve anos para descobrir que é redonda. Um mistificador pode garantir lucros no mercado futuro do céu. Um genocida pode ter razão no argumento de que problemas sociais se resolveriam com o extermínio de alguns milhares de pessoas. A corrosão do pacto fiduciário subjacente à sociedade é o canibalismo da civilidade.
Conter as fake news impõe-se de imediato, como avanço civilizatório. Mas não é ainda a vacina para o vírus do falseamento, que já chegou ao meio vital de uma juventude despolitizada, autoenganada e imobilizada no consumo digital.
"Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira", cantava a Legião Urbana. A mentira ativista fundamenta-se não na hipótese de uma autenticidade abstrusa, como o falsário da novela, mas na ignorância viciante, em que não se precisa realmente saber do que se está falando ou fazendo. Basta o êxtase canibal do contato na rede.
Uma noveleta policial sem maior interesse literário, mas reveladora do imaginário criminoso, retrata um falsário tão obcecado pela perfeição que, com essa reputação, não quer seu nome associado a algo que pudesse ser denunciado como falso. Entenda-se: o transgressor busca a autenticidade, isto é, o ser-fundado-em-si-mesmo, que no limite seria um álibi, um "estar em outro lugar", não criminoso. Ou seja, uma mentira redimível, como uma joia sintética que passa por natural.
Isso vem a propósito da disseminação de falsidades entre nós, em tal grau de dano cognitivo e social que a ala menos mentirosa do Congresso parece convicta quanto a uma lei reguladora. Fake news, porém, é tão só uma fração do fenômeno. Essa expressão, aliás, já está algo envelhecida, considerando-se os desdobramentos e a sua irradiação no meio social.
De fato, não se trata mais apenas de notícias falsas, e sim do ápice da fusão dos modos tradicionais de representação com a realidade artificialmente instaurada pelas tecnologias digitais. Para as jovens gerações, nenhum domínio da vida social ou privada escapa à invasão das tecnologias, que se articulam nas relações sociais como forma de vida. Nada aí parece obstar o apagamento das ideias de limite ou de verdade, indispensáveis à formação da cidadania democrática.
O problema ultrapassa o contágio das fake news. Mentir é construir realidade falsa com saberes reais. Se tecnológica, a mentira é espiral que se autoalimenta e funciona como droga, álibi para se dizer o fazer qualquer coisa, sem marcação de limites. Esvai-se a voz do outro, a autoridade das fontes, com quem se aprende por confiança que dois e dois são quatro ou que se deve respeitar normas.
Nessa lógica do pior, a Terra pode continuar plana até que se leve anos para descobrir que é redonda. Um mistificador pode garantir lucros no mercado futuro do céu. Um genocida pode ter razão no argumento de que problemas sociais se resolveriam com o extermínio de alguns milhares de pessoas. A corrosão do pacto fiduciário subjacente à sociedade é o canibalismo da civilidade.
Conter as fake news impõe-se de imediato, como avanço civilizatório. Mas não é ainda a vacina para o vírus do falseamento, que já chegou ao meio vital de uma juventude despolitizada, autoenganada e imobilizada no consumo digital.
"Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira", cantava a Legião Urbana. A mentira ativista fundamenta-se não na hipótese de uma autenticidade abstrusa, como o falsário da novela, mas na ignorância viciante, em que não se precisa realmente saber do que se está falando ou fazendo. Basta o êxtase canibal do contato na rede.
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