Uma noveleta policial sem maior interesse literário, mas reveladora do imaginário criminoso, retrata um falsário tão obcecado pela perfeição que, com essa reputação, não quer seu nome associado a algo que pudesse ser denunciado como falso. Entenda-se: o transgressor busca a autenticidade, isto é, o ser-fundado-em-si-mesmo, que no limite seria um álibi, um "estar em outro lugar", não criminoso. Ou seja, uma mentira redimível, como uma joia sintética que passa por natural.
Isso vem a propósito da disseminação de falsidades entre nós, em tal grau de dano cognitivo e social que a ala menos mentirosa do Congresso parece convicta quanto a uma lei reguladora. Fake news, porém, é tão só uma fração do fenômeno. Essa expressão, aliás, já está algo envelhecida, considerando-se os desdobramentos e a sua irradiação no meio social.
De fato, não se trata mais apenas de notícias falsas, e sim do ápice da fusão dos modos tradicionais de representação com a realidade artificialmente instaurada pelas tecnologias digitais. Para as jovens gerações, nenhum domínio da vida social ou privada escapa à invasão das tecnologias, que se articulam nas relações sociais como forma de vida. Nada aí parece obstar o apagamento das ideias de limite ou de verdade, indispensáveis à formação da cidadania democrática.
O problema ultrapassa o contágio das fake news. Mentir é construir realidade falsa com saberes reais. Se tecnológica, a mentira é espiral que se autoalimenta e funciona como droga, álibi para se dizer o fazer qualquer coisa, sem marcação de limites. Esvai-se a voz do outro, a autoridade das fontes, com quem se aprende por confiança que dois e dois são quatro ou que se deve respeitar normas.
Nessa lógica do pior, a Terra pode continuar plana até que se leve anos para descobrir que é redonda. Um mistificador pode garantir lucros no mercado futuro do céu. Um genocida pode ter razão no argumento de que problemas sociais se resolveriam com o extermínio de alguns milhares de pessoas. A corrosão do pacto fiduciário subjacente à sociedade é o canibalismo da civilidade.
Conter as fake news impõe-se de imediato, como avanço civilizatório. Mas não é ainda a vacina para o vírus do falseamento, que já chegou ao meio vital de uma juventude despolitizada, autoenganada e imobilizada no consumo digital.
"Mentir para si mesmo é sempre a pior mentira", cantava a Legião Urbana. A mentira ativista fundamenta-se não na hipótese de uma autenticidade abstrusa, como o falsário da novela, mas na ignorância viciante, em que não se precisa realmente saber do que se está falando ou fazendo. Basta o êxtase canibal do contato na rede.
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