sábado, 25 de junho de 2016


O País do futuro

A degradação da política brasileira, hoje no banco dos réus, mergulhou o país no vácuo do imponderável. Ninguém arrisca um palpite sobre o dia de amanhã – na verdade, nem mesmo o de hoje.

De repente, do nada, surge mais uma operação policial, encarcerando um ou mais notáveis da República, asseclas e operadores, expondo mais vísceras de algum segmento político-partidário. Ou de todos. Faz dois anos que isso acontece.

Esta semana, foi a vez do ex-ministro Paulo Bernardo, do PT, que serviu a Lula e a Dilma. Sua mulher, a senadora Gleisi Hoffmann, continua servindo – e deve acompanhá-lo, em breve, na desdita.



Em Pernambuco, a Polícia Federal descobriu outra conexão criminosa, desta vez envolvendo a campanha do falecido ex-governador de Pernambuco e candidato à Presidência, Eduardo Campos, morto em 2014, num desastre de avião.

A operação Turbulência descobriu que a aeronave acidentada havia sido adquirida com dinheiro público roubado. Os financiadores de Campos mantiveram apoio à campanha da candidata que o sucedeu, Marina Silva. E Leo Pinheiro, da OAS, em delação, disse que também doou propina da Petrobras à campanha de Marina.

Amplia-se, pois, o arco partidário sob suspeição pública e investigação policial. O PSB acaba de integrá-lo. A próxima sucessão presidencial, com sua inevitável bolsa de apostas, tornou-se tema de videntes e cartomantes. No campo da ciência política, os dados não autorizam especulações. A lógica saiu de cena.

As pesquisas de opinião, por isso mesmo, tornaram-se vazias. E não apenas pela distância do pleito, previsto para 2018 - mas que pode ocorrer antes (ou nem ocorrer, segundo os mais pessimistas) -, e sim pela gradual saída de cena dos nomes até aqui tidos como óbvios. Como não há vazio no poder, hão de surgir outros. Quais?

Depende dos que sobreviverem até lá. E eis aí o temor que se instala. Num paralelo, a Operação Mãos Limpas, ocorrida na Itália, nos anos 90 – fonte de inspiração do juiz Sérgio Moro -, também produziu um haraquiri na política italiana. Mas, por falta de renovação dos quadros dirigentes de lá – e por um acordo político entre os que dela escaparam – levou a um desfecho decepcionante. E paradoxal.

Resultou na ascensão de um político burlesco – e corrupto -, Sílvio Berlusconi, que dominaria a cena política de 1994, quando se tornou primeiro-ministro pela primeira vez, até 2011, em que finalmente foi banido, após ocupar por quatro vezes a chefia do governo. Nesse período, fez aprovar leis que enfraqueceram o Judiciário, submetendo-o ao poder político.

O resultado é que a corrupção venceu e seu símbolo passou a ser exatamente um sobrevivente das Mãos Limpas (mesmo sem tê-las), ele próprio, Berlusconi. Por aqui, há sinais preocupantes.



O presidente do Senado, Renan Calheiros, já se manifestou contra as delações premiadas, sugerindo que apresentará projeto de lei restringindo-as. Ninguém duvida que o atual Congresso apoiaria entusiasticamente tal iniciativa, além de outras, que reduzissem, por exemplo, os poderes do Ministério Público. Criatividade não falta.

Ao tempo da CPI dos Anões do Orçamento, em 1993/94, em que pela primeira vez parlamentares cassavam parlamentares, Antonio Carlos Magalhães reuniu-se com alguns chefes partidários para propor uma saída que impedisse o que chamou de “guerra de extermínio”. O acordo resultou na entrega de algumas cabeças coroadas para preservar as demais. Funcionou – e a nave seguiu.

A diferença é que agora o Congresso não é tribunal, mas banco dos réus. Há um juiz implacável, que infunde temor até à mais alta Corte, que, por sua vez, é mais política (e partidária) que jurídica. E há ainda uma força-tarefa, que envolve policiais federais e procuradores, que exercem seu ofício com ardor missionário.

É talvez a primeira vez na história que um juiz de primeira instância se sobrepõe aos cardeais da Suprema Corte, pondo-os a nu.

O advento da internet, com suas redes sociais, estabelece ainda poderoso diferencial: enseja efetiva participação da sociedade, propiciando em curto prazo mobilizações de massa, em proporções jamais vistas. Foram necessárias cinco megamanifestações, entre 2015 e 2016, todas demolidoras contra a classe política e as instituições, para que estas acreditassem que, afinal, opinião pública existe - e já não é apenas a opinião publicada.

O mantra de que as instituições estão funcionando é verdadeiro, mas nem sempre se sabe como e para quem. Sempre funcionaram, mas naquela base. Não mudou muito, exceto quando temem a contrapartida das ruas. É por aí que há alguma esperança.

PT criou propina descontada no contracheque!

Desde que explodiu a Lava Jato, há dois anos e três meses, o país procura um significado maior de qualquer coisa que resuma essa época. Os brasileiros do futuro talvez selecionem como um destes episódios maiores o assalto do Partido dos Trabalhadores aos aposentados e servidores públicos endividados. Dirão que foi um fato histórico porque só então, com a invenção da propina descontada no contracheque, o PT atingiu o ápice do despudor e da desfaçatez.

O consignado, como se sabe, é um tipo raro de empréstimo. É bom para quem toma dinheiro emprestado porque as taxas de juros são baixas. É ótimo para o banco que empresta porque a prestação é descontada mensalmente do salário do servidor ou da pensão do aposentado. No aperto, milhares de brasileiros aproveitaram. E tornaram-se, sem saber, uma oportunidade que o PT aproveitou.


Entre 2010 e 2015, os milhares de brasileiros que se penduraram no consignado pagaram uma taxa de administração inusual. Estava embutida em cada parcela mensal a cifra de R$ 1,25. Dinheiro destinado a um intermediário chamado Consist Software, contratado pelo Ministério do Planejamento a pretexto de administrar o serviço.

Descobriu-se que a Consist retinha em sua caixa registradora apenas R$ 0,40. Os outros R$ 0,85 viravam propina. De centavo em centavo, foram assaltados R$ 100 milhões. Perto dos bilhões pilhados na Petrobras e no setor elétrico, parece dinheiro de troco. No entanto, entre todos os roubos praticados na era petista, foi esse que acabou com o que restava do melhor legado daquele ex-PT da fase sindical: a sensibilidade social e o respeito ao trabalho.

Andrey Borges de Mendonça, um dos 30 procuradores da República que se ocupam da investigação, resumiu o descalabro: “R$ 100 milhões foram desviados de funcionários públicos e pensionistas endividados, que se privaram de medicamentos, e de suas necessidades básicas para abastecer os cofres de corruptos. Isso tem que nos causar indignação, isso não pode ser algo natural da nossa sociedade.”

O que mais assusta na marcha da política rumo à delinquência não é a crueza, mas a hipocrisia. No gogó, o petismo é avesso à privatização. Para incrementar as propinas, admite qualquer negócio. Dispunha de uma empresa pública, o Serpro, para organizar o consignado. Preferiu privatizar o serviço, direcionando-o à Consist. Nada mais natural.

Se a pregação de líderes pseudo-esquerdistas como Lula havia ensinado alguma coisa era a não esperar nenhum tipo de hesitação altruista do capital. Ele opera segundo as regras fixadas na Lei da Selva.

No futuro, quando puderem analisar a conjuntura atual sem ter de tapar o nariz, os brasileiros concluirão: o que assustou as almas mais ingênuas foi a facilidade com que se operou a autodissolução do PT como partido político e a rapidez com que a legenda estruturou a coalizão que dava suporte aos seus governos como uma lucrativa organização criminosa.

A sujeira prosperou tanto que acabou desenvolvendo no Brasil a indústria da limpeza ética, cujo principal empreendimento é a Lava Jato.

PT vai pagar pelo Custo Brasil?

A prisão de Paulo Bernardo, ministro do Planejamento de Lula e ministro das Comunicações de Dilma Rousseff, talvez seja, até agora, o maior golpe contra o Partido dos Trabalhadores desde sua fundação, em 1980. Não é o “golpe” do atual dicionário petista. A operação da Polícia Federal chamada de Custo Brasil é um golpe mortal no coração de um partido criado, a princípio, para defender quem trabalha contra a exploração e a especulação do capital.


Caso se comprove que Paulo Bernardo, marido da senadora Gleisi Hoffmann (ambos do PT do Paraná), recebeu, por meio de um advogado, R$ 7 milhões, entre 2010 e 2015, desviados de empréstimos consignados para funcionários públicos, o PT se tornará indefensável como partido. Para sobreviver, precisará promover um expurgo geral, pedir desculpas à nação, refundar valores e renovar lideranças. Segundo os investigadores, o esquema de roubo envolve um total de R$ 100 milhões em contratos entre a Pasta de Planejamento de Lula e a empresa de tecnologia Consist.

Respeitando a presunção de inocência característica das democracias, muito ainda precisa ser respaldado por provas incontestáveis do “esquema de lavagem” que teria sido comandado por um dos ministros mais importantes de Lula e Dilma. Só assim Paulo Bernardo poderá ser considerado culpado por usar propina para pagar despesas pessoais suas e da mulher. Caso seja inocente, seria um caso gigantesco de danos morais, porque a reputação do casal foi seriamente atingida.

O PT considera ilegais a prisão preventiva de Paulo Bernardo e a apreensão de documentos e computadores do apartamento funcional de Gleisi, devido ao foro privilegiado da senadora. Sou contra o foro privilegiado para crimes comuns – eu, ministros do STF e a maioria da população. O que importa é se o ex-ministro cometeu um crime tão mesquinho quanto o de roubar milhões de servidores públicos. De centavo em centavo, o galo encheu o papo. É isso ou não é isso? O argumento único deveria ser: Paulo Bernardo não roubou e Gleisi não teve despesas pagas por propina. São inocentes.

Isso veremos, com o avanço da investigação sob o comando do procurador Andrey Mendonça, do Ministério Público Federal de São Paulo, e a ajuda de Fábio Ejchel, da Receita Federal. “É um exemplo de como a corrupção e a sonegação prejudicam o cidadão e aumentam o custo das operações”, disse Ejchel. Isso a gente já sabe. Quando o Rio de Janeiro decreta “calamidade pública”, alguém realmente acredita que foi por causa apenas do preço do barril do petróleo? Ou é o preço cobrado pela desonestidade de nossos sultões?

Se for verdade que, de cada R$ 1 cobrado mensalmente de cada servidor federal como taxa para manter o empréstimo consignado, só 30 centavos eram usados para o fim declarado e 70 centavos eram desviados como propina para a Consist... e que, dessa propina de R$ 100 milhões, um terço foi passado a Paulo Bernardo e outros no Ministério do Planejamento e dois terços para o PT... se tudo isso for comprovado, será a desmoralização do partido. A nota do PT diz que “o PT não tem nada a esconder”.

O esquema com a Consist, revelado pelo jornal O Globo em agosto, saiu em setembro das mãos do juiz Sergio Moro, em Curitiba, e foi para a Justiça Federal de São Paulo. “É uma resposta àqueles que celebravam com champanhe o declínio do caso em Curitiba, para mostrar que não é só Curitiba que faz investigação”, afirmou o procurador Andrey Mendonça.

O esquema envolveria os ex-tesoureiros do PT Paulo Ferreira e João Vaccari Neto e o ministro da Previdência de Dilma Carlos Gabas. Gabas foi quem levou Dilma na garupa de sua moto Harley-Davidson para passear. Como era divertida nossa República.

Outro argumento de petistas é que a Operação Custo Brasil visa desviar o foco “deste governo (Temer) claramente envolvido em desvios”. Numa semana em que o Supremo Tribunal Federal confirmou Eduardo Cunha como réu, novamente por unanimidade de 11 votos a zero, é difícil crer que as investigações sejam seletivas ou políticas.

Com a ampliação das operações da Polícia Federal contra “o câncer da corrupção”, não há hoje na política quem ri por último, mas quem chora por último. Aconselha-se que ninguém celebre a prisão do outro. Nenhum partido está em condições de festejar. Está em jogo não “a propina de cada um”, mas o aparelhamento, ano a ano, de um Estado acusado de agir com má-fé contra a população, e com apoio de políticos de vários matizes ideológicos.

A cada nova temporada, o seriado da Lava Jato parece se reinventar com a entrada de coadjuvantes, até que todos os atores sejam eliminados. O cadáver de um empresário foragido, envolvido na Operação Turbulência, surgiu num motel em Pernambuco. Suicídio ou assassinato?

Lula levou a sério o parecer de Paes e caiu fora da quermesse bolivariana

Os organizadores do I Festival Internacional da Utopia, patrocinado pela prefeitura de Maricá, resolveram abrir o desfile de atrações programado para a Tenda dos Pensadores com a apresentação conjunta de uma celebridade internacional e da estrela maior do evento. Na quarta-feira, ao lado da cubana Aleida Guevara, Lula reprisaria ─ de graça ─ a palestra que antes da Lava Jato custava 400 mil dólares. Mas o ex-presidente não deu as caras por lá. E tanto a plateia quanto a filha mais velha de Che Guevara mal disfarçaram a frustração com a dupla escalada para substituir o grande ausente.

Depois da apresentação de Aleida, os discípulos que estavam lá para ouvir a palavra do mestre foram consolados pela declaração de guerra ao imperialismo ianque berrada por João Pedro Stédile e por uma discurseira do prefeito Washington Quaquá, patrocinador do encontro de utópicos. Quaquá explicou que, por ter sido concebido para discutir alternativas para o capitalismo, “é obvio que o festival ganhou características de resistência ao golpe”. Em seguida, tentou inutilmente animar os companheiros gritando o previsível “Fora, Temer!”



A abertura anêmica puxou a procissão dos coadjuvantes de quinta categoria e veteranos canastrões que passaram nos dias seguintes pela Tenda dos Pensadores. A deputada Jandira Feghali, por exemplo, discorreu sobre a modernidade do PCdoB. O deputado federal Jean Wyllys celebrou o crescimento do PSOL e condenou à danação eterna os preconceituosos que não dão sossego a minorias majoritárias. O ex-senador Eduardo Suplicy reiterou que descobriu há muito tempo a cura para todos os males do Brasil. Chama-se Renda Mínima.

Embora o resto do Brasil ignorasse o que aconteceria em Maricá, o filme que divulgou o festival (acima) garantiu que a cidade fluminense seria o palco de uma espécie de Woodstock bolivariano, com muita música boa, muita dança moderníssima, muita arte revolucionária, além de esclarecedoras discussões entre jovens engajados e experientes pensadores, unidos na perseguição a um mundo melhor. O vídeo abaixo, que registra alguns momentos do primeiro dia, informa que a promessa dificilmente seria cumprida.

Os organizadores da quermesse esquerdista ainda acreditam que, neste sábado, Dilma Rousseff apareça em Maricá para encerrar o festival com uma caminhada pela cidade governada por Quaquá. Mas a presidente despejada do Planalto decerto seguirá o exemplo de Lula, que atribuiu o sumiço a vagos “compromissos em Brasília”. Muito mais provável é que tenha lembrado o que ouviu de Eduardo Paes em março deste ano.

Numa conversa grampeada pela Polícia Federal, o prefeito do Rio premiou o amigo Lula com um surto de sinceridade. “O senhor é uma alma de pobre”, disse Paes no meio da ligação, ao entrar na história do sítio que Lula jura não ter em Atibaia. “Eu falo o seguinte: imagina se fosse aqui no Rio esse sítio dele, não é em Petrópolis, não é em Itaipava. É como se fosse em Maricá. É uma merda de lugar, porra”.

Lula parece ter levado a sério o conselho de Paes.

Leis das favelas

O programa das Unidades de Polícia Pacificadora começou a funcionar em dezembro de 2008, quando foi instalada a primeira UPP, no Morro Dona Marta, em Botafogo, Zona Sul. Atualmente, são 38 unidades em 232 comunidades, com mais de 1,5 milhão de pessoas atendidas direta (moradores das comunidades) e indiretamente.

A UPP chegou à Rocinha em 2011, e muita coisa mudou, inicialmente, na rotina dos moradores. Na primeira reunião, dias depois da ocupação, o comando do Bope convocou a população para anunciar as principais “regras" que passariam a vigorar na favela. Exigência de capacete, habilitação e documento do veículo para a circulação de motos; estabelecimento da lei do silêncio (nada de música alta depois das 22h); e obrigatoriedade de autorização da prefeitura e do Corpo de Bombeiros para realização de festas públicas. Em resumo, regras que valiam para a cidade, e que antes não valiam para a Rocinha, precisariam ser cumpridas. Até aí, tudo bem.

O problema é que a “legalização do território” parou nisso. A legislação urbanística, existente para o resto da cidade, nunca foi estabelecida. Local para o comércio, residências, escolas, horários de funcionamento de equipamentos de lazer, saúde — nada disso foi discutido com a população. Assim, uma fonte permanente de conflitos — briga de vizinhos, por exemplo — ainda é resolvida pela ditadura do “nada pode”.


Além desta frustração, a falta de notícias sobre o que ainda vai acontecer deixa os moradores em constante apreensão e com a vida em suspense. Há compromissos de realocação da população que mora além da “cota 100”, o morro todo!, em áreas insalubres, transferindo-a para os locais das futuras estações do teleférico. Mas o governo nada informa.

Apesar da prisão de vários chefes do tráfico, da apreensão de um verdadeiro arsenal de armas sofisticadas e toneladas de drogas, o que ainda se vê nas ruas são pessoas desesperadamente necessitadas: gente vivendo da droga, pela droga e para a droga. Sem atendimento de qualquer espécie.

Existe um outro fator preponderante em toda a questão. Um chefe de quadrilha tem que ser levado preso, mas sob garantia de um sistema prisional que o recupere e o ressocialize. Um homem ressocializado tem um efeito positivo tão bombástico na comunidade, talvez até maior que a implantação de uma UPP. Essa recuperação desfaz preconceitos disseminados, principalmente nas crianças. Derrotar um ser humano apenas não basta para nos trazer a felicidade e a paz.

Hoje, perto de chegar aos dez anos depois da primeira UPP, continuamos a perguntar: quais são as leis das favelas?

William de Oliveira 

Ou nossos 'campeões' de popularidade

A ideia de democracia é cada vez mais a ideia de um direito individual, em que cada um procura para si próprio o direito de ser rico para ser feliz. A democracia é cada vez menos altruísta e solidária
Paulo Baldaia

O PT tomado pela polícia e o negro que passa de bicicleta


 Polícia Federal faz buscas na sede do PT em São Paulo (Rovena Rosa/Agência Brasil)
Ao fundo, onde se encontra o foco da imagem, a sede do Partido dos Trabalhadores, em São Paulo, em que predomina o vermelho da distopia socialista. À porta, homens fortemente armados. Naquele momento, a Polícia Federal realizava lá um mandado de busca e apreensão. Ali está a sede do partido que, inequivocamente, chefiou o mensalão e o petrolão, etapas distintas de um mesmo assalto ao poder.

No primeiro plano, um jovem negro passa de bicicleta. É uma personagem incidental. Sua imagem é mais veloz, mas está claro: não é ele a personagem da notícia. E, em se tratando de PT, nunca foi.

Dia desses, num de seus discursos detestáveis, Dilma vituperava contra o governo Temer, formado, segundo ela, de brancos, ricos e velhos. Ao PT, sempre bastou decorar a administração com negros e mulheres para passar, enfim, a impressão de que eles estavam no poder.

Mas quais mulheres? Quais negros? Ora, os que se organizam em sindicatos do pensamento, os que carregam bandeira. Sabem aquele negro que passa, aquele negro incidental, aquele negro sem carteirinha, aquele negro sem pedigree ideológico? Ah, esse não tem importância nenhuma. Afinal, se ele não for um negro petista, um negro militante, um negro sem estandarte, Paulo Henrique Amorim, o jornalista do regime que caiu, poderia tachá-lo de “preto de alma branca”.

O negro de bicicleta se foi, o partido ficou. Ali se tramava contra o futuro do Brasil. Ali se organizava uma das formas do assalto aos cofres públicos que agora vêm à luz com clareza inequívoca: o crédito consignado. Foi um instrumento implementado pela equipe econômica ainda de Palocci para azeitar a economia, mas conferindo razoável garantia de pagamento, o que barateava o custo do dinheiro.

Foi uma ideia do excelente Marcos Lisboa, então secretário de Política Econômica. Da cabeça dos companheiros, convenham, é que não sairia. Eles só sabem tratar de pobre com esmolas. Acham que estes não têm nenhuma contribuição a dar à economia.

Pois bem: aquela que foi, sim, uma das boas ideias do governo Lula estava sendo conspurcada pela companheirada. O eventual benefício que poderia trazer ao negro de bicicleta era só um efeito colateral. Ele não estava no centro das preocupações.

Observem: o PT, com o auxílio de outros partidos, já assaltava o país de maneira organizada, determinada, metódica, profissional nas Petrobras da vida. O crédito consignado, uma das pequenas vantagens obtidas pelos pobres que não dependiam da caridade oficial, poderia, vá lá, com alguma delicadeza da máfia, ter sido preservado da sujeira.

Mas nada escapou. Afinal, o negro de bicicleta passa, vai pro seu trabalho, vai cuidar da vida.

Mas o partido, imaginava-se, permaneceria ali, plantado, sólido, a esmagar pra sempre as nossas chances de futuro.

Que nojo dessa gente!

Vilões, vilezas e vilanias

Aprendi com meu pai que é covarde e indigno tripudiar sobre perdedores, que se deve ter compaixão pelos caídos, não chutar cachorros mortos. Mas também ser solidário com as vítimas, lutar pela justiça, para que os criminosos paguem pelos seus atos, em nome da democracia e da civilização.

Mas não são só ladrões, achacadores, delatores, traidores e fraudadores que estão caídos como cachorros mortos: o Brasil está no chão, vítima da arrogância, da indecência e da irresponsabilidade dessa gentalha que se crê uma casta privilegiada e se esconde atrás de partidos e da boa-fé popular para fazer o que bem entende na certeza da eterna impunidade.


A face do crime é medonha. Ao trocar as roupas de grife pelo uniforme de presidiário, eles se revelam em toda a sua feiura e vulgaridade. Presos e humilhados, príncipes intocáveis mais parecem marginais de rua, guerreiros do povo são desmascarados em ladrões e fraudadores de eleições, senhores poderosos, de mãos para trás e cabeça baixa, parecem o que sempre foram, trapaceiros de luxo com caras de bandido.

Quando Rita Lee disse em seu clássico “Ôrra meu” que “roqueiro brasileiro sempre teve cara de bandido”, desconsiderou os políticos. Eles é que têm cara de bandido, embora alguns nem exerçam a atividade, mas a vasta maioria compõe uma galeria apavorante. É quando a ética se expressa na estética.

E os vilões? Quanto pior, melhor. Todos têm seus vilões favoritos, o Coringa, Darth Vader, Bia Falcão, Carminha, Flora... o meu era o Zé Dirceu, mas já está fora de combate, game over. Agora, olhem bem as caras de Cerveró, Vaccari, André Vargas, Bumlai, Barusco, Renato Duque, Pedro Corrêa, Gim Argello, Fernando Baiano, Léo Pinheiro... que medo, hein? Mas, por enquanto, o mais vil da nova safra parece ser Sérgio Machado, com o physique du rôle e o histórico familiar de um arquétipo da vileza cordial brasileira. Qual o seu?

Renan, Jucá, Sarney e Eduardo Cunha, além do neovilão Lula, são hors-concours, porque ainda estão soltos, e só vale vilão preso. Mas, com sua delação premiada, Marcelo Odebrecht pode se tornar o campeão nacional da vilania.

Aprender com índios, uma boa experiência

Há alguns anos, o chefe indígena Atamai, que morava na aldeia waurá, no Xingu, deslocava-se, como passageiro de um carro, por uma via pública de Goiânia (episódio que talvez já tenha sido narrado neste mesmo espaço, mas que vale a pena rememorar). Em certo momento, voltou-se para o autor destas linhas e perguntou: “Por que caraíba (homem branco) cobre de asfalto todo o piso de ruas e não deixa lugar pra terra respirar?”. Foi-lhe dito que o asfalto servia para nivelar a terra, remover buracos e permitir mais velocidade aos veículos. Mais adiante, ao passar por uma lombada na pista, Atamai quis saber para que ela servia. E, ante a resposta de que servia para obrigar motoristas a reduzirem a velocidade, de modo a não ameaçar pedestres e evitar colisões, foi fulminante: “E por que caraíba, primeiro, cobre a terra pra aumentar a velocidade dos carros e, depois, constrói calombos no chão e obriga a reduzir a velocidade dos carros?”. Felizmente, chegávamos ao destino e ele ficou sem resposta.


Respostas como essa, capazes de esclarecer complexidades do nosso mundo, continuam sendo buscadas em todos os lugares, por estudiosos de todos os setores do conhecimento, além de fazerem parte dos questionamentos de todas as pessoas. Ainda há pouco tempo, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) lançou o livro Megatendências Mundiais 2030, em que reúne o pensamento de entidades e personalidades internacionais sobre “o futuro do mundo” daqui a uma década e meia. E ali está dito o que neste tempo deve moldar o panorama mundial nas áreas de população, geopolítica, ciência e tecnologia, economia e meio ambiente. “Muitos dos problemas que enfrentamos hoje é porque no passado não olhamos para o futuro no longo prazo. Ou não nos preparamos para evitar que ocorressem ou para que estivéssemos mais bem preparados para essa ocorrência”, escreveu a professora Elaine Coutinho Marcial, que organizou a edição (Eco-Finanças, 16/10/2015).

O pensamento e a ação concreta dos colonizadores, a pequena escala dos problemas, certamente, os levaram a desconsiderar o modo de se organizar e de viver das culturas indígenas em todo o território brasileiro. E chegamos aonde chegamos. O fato é que, como lembra o Ipea no livro sobre as megatendências mundiais, “o modelo econômico vigente, associado ao comportamento dos cidadãos e dos países, é agressivo ao meio ambiente, provoca a poluição do ar, desmatamento, perdas ecossistêmicas nos meios marinho e da costa, enfim, degradação, de forma geral”. Pensam os autores do livro que, “se não houver ruptura nos padrões de consumo e diminuição na geração de resíduos, esse modelo continuará conduzindo à escassez de recursos naturais nos próximos anos”.
É um bom momento, então, para que nos debrucemos sobre os formatos de vida entre povos indígenas – há muita documentação sobre o passado e ainda se encontram no Brasil cerca de 1 milhão de índios, de 305 etnias, falando 274 línguas em mais de 500 terras reconhecidas. No mundo são mais de 5 mil povos.

E, de fato, no Brasil as perdas são gigantescas. Produzimos mais de 250 mil toneladas diárias de lixo, que são inteiramente desperdiçadas. O lixo orgânico (metade do total) poderia ser reaproveitado de muitas formas, a começar pela compostagem que o transforma em adubo. Os resíduos da construção civil, dos quais quase nada se fala, têm um volume superior ao dos domiciliares. A reciclagem é ínfima. Valeria a pena, nesta hora, visitar uma aldeia indígena que, isolada, ainda mantenha os modos de vida dos antepassados – para ver se ali se produz lixo. Ou o que acontece quando uma aldeia cresce muito e decide se separar em duas, também para não ameaçar os modos de vida – e assim aconteceu, por exemplo, no Xingu, com os waurá. Também se poderá ver a questão do poder: o chefe não dá ordens; ele é o que mais sabe da cultura de seu povo e é procurado sempre para saber o que pensa – mas não dá ordens a ninguém. Cada morador da aldeia planta e colhe alimentos e pesca para os que com ele vivem. Mas, se alguém lhe der ordens, vai achar graça. O conhecimento é aberto: o que um sabe todos podem saber. São questões descritas e estudadas com muita competência por Pierre Clastres em seu livro A sociedade contra o Estado.

Mesmo que se saiba de tudo isso, continuamos a colocar como centro de tudo o cálculo do chamado Produto Interno Bruto (PIB) – a soma, em valores monetários, dos bens e serviços finais produzidos em certo período (ano, em geral) – e compará-lo com outro ano, ou com outro país. E isso determinaria se um país é rico, médio ou pobre. Não leva em conta nada do meio ambiente, nada da cultura. E isso tem implicações fortes na política e na relação entre países ou regiões.
Um país como o Brasil tem muitos privilégios – território continental (só na Amazônia, milhões de quilômetros quadrados), sol durante todo o ano, quase 12% dos recursos hídricos do planeta, biodiversidade extraordinária, clima ameno, mais de 7.300 quilômetros de costa marítima, possibilidade de matriz energética “limpa”, sem emissão de gases que acentuam mudanças climáticas, etc. Mas nada disso é considerado para o PIB. O desmatamento amazônico voltou a crescer no ano passado (474 quilômetros quadrados). Desperdiçamos uma fatia considerável dos alimentos que produzimos, embora tenhamos em torno de 40 milhões de brasileiros que vivem na pobreza extrema – a renda é fortemente concentrada. A população junta-se cada vez mais em grandes cidades, onde os problemas crescem exponencialmente. Multiplicam-se os conflitos com populações indígenas, quase sempre em disputa de suas terras.
É claro que não faz sentido propor que voltemos todos a viver como índios. Mas pelo menos veremos com clareza os nós que nos engasgam.
Washington Novaes 

Holanda prepara o primeiro vilarejo 'autosustentável'

Uma estufa transformada em moradia capaz de produzir energia e alimentos. Ou, em outras palavras, a ciência aplicada à arquitetura da vida cotidiana. Este é o cartão de visita do primeiro vilarejo projetado para diminuir o impacto ambiental das atividades humanas, em especial o do lixo, para se autoabastecer e gerenciar o fornecimento de água em um novo tipo de agrupamento urbano, que começará a ser construído nos próximos meses na cidade holandesa de Almere, a 25 minutos de Amsterdã. Projetado pelo estúdio de arquitetura dinamarquês Effekt, o programa-piloto da ReGen Villages prevê uma primeira entrega de 25 casas em 2017. Dominados por vidraças que envolvem vegetais cultivados em seu interior, os terrenos constituem quase que uma metáfora da tão desejada harmonia com o ambiente. Principalmente levando-se em conta que, em 2050, a população mundial ultrapassará os 10 bilhões de habitantes.

Imagem da ReGen Villages gerada por computador
Regen quer dizer “regeneração”, e tanto a maquete do projeto quanto a sua versão animada, em vídeo, mostram a imagem em miniatura de uma cidade reluzente. A partir de 250.000 euros (cerca de um milhão de reais), com uma capacidade média para três ou quatro pessoas (de 300 a 400 pessoas para um total de 100 casas), as moradias parecem transparentes, tamanha a profusão de vidros. Dentro delas, a cultura vertical das estufas convive com pequenas hortas e pomares, unidades de aquicultura e painéis solares.

Há torres de armazenamento de água, granjas de animais, áreas de recreação e um estacionamento para veículos elétricos. Assim como um centro comunitário para reuniões, além de “espaços sociais”. Segundo os cálculos do Effekt, “uma família de três pessoas necessitaria de uma área total de 639 metros quadrados viver autonomamente. Uma casa do tipo médio tem 120 metros quadrados, e eles se acrescenta uma estufa (40 m2); a aquicultura respectiva (300 m2); uma horta e pomar de estação (100 m2); a parcela proporcional da granja (25 m2); dos painéis solares (34 m2) e da água armazenada (20 m2)”.

Não se trata, de modo algum, de um retorno ingênuo à vida na natureza. Ao contrário: aproveitando a tecnologia atual e incorporando os confortos da vida moderna, a comunidade que está sendo construída pretende ser autossuficiente. Assim foi ela idealizada por James Ehrlich, fundador da ReGen Villages, pesquisador da universidade norte-americana de Stanford e especialista na aplicação de tecnologia e da biodiversidade na produção de alimentos.

Segundos os dados de que dispõe, cerca de 40% da superfície do planeta são usados para a produção de nutrientes. Essa atividade contribui para a liberação de CO2 (parcialmente responsável pelos gases de efeito-estufa), para o desmatamento e para o consumo indiscriminado de água potável. Ao mesmo tempo, jogamos fora 30% da comida, enquanto uma em cada sete pessoas passa fome no mundo.

“Embora esperemos acomodar as primeiras famílias, inclusive a minha, no primeiro semestre de 2017, a produção de alimento e o tratamento dos resíduos levará um pouco mais de tempo. A ideia original era construir na Dinamarca, mas o Governo fazia uma ideia um tanto quanto menos ecológica do projeto. Fomos então convidados pela prefeitura de Almere, e pudemos ver que a Holanda é um lugar bastante apropriado para a estreia mundial de ReGen Villages. Vamos fundar aqui a nossa empresa, como parte da União Europeia”, afirma Ehrlich.

As madeiras empregadas são procedentes de florestas sustentáveis da Escandinávia. Os demais materiais serão tratados com a tecnologia mais avançada que existe, de forma a aproveitar ao máximo a energia durante o dia, e ao longo das estações do ano. O sistema fechado de abastecimento proposto permitirá que os dejetos orgânicos dos moradores se transformem em biogás e em alimento para os animais.

Os excrementos do gado, por sua vez, serão utilizados como esterco para fertilizar as plantações. Qualquer resíduo suscetível de se transformar em adubo alimentará depois as moscas-soldado, alimento adequado para os peixes dos viveiros. As fezes destes últimos também serão usadas: elas servem para fertilizar o sistema de aquicultura destinado a produzir frutas e verduras. A água da chuva, por fim, será canalizada para ser usada na irrigação. O projeto, na Effekt, é sintetizado em cinco pilares: “casas com energia positiva; alimentos próximos e com cultivo sustentável; produção e armazenamento de eletricidade; reciclagem de água e resíduos; e autogestão por parte dos grupos locais”.

Se for bem-sucedida, a prática da agricultura permanente (permacultura), com a cultura em ambiente aéreo sem utilização do solo, pulverizando as raízes com uma solução aquosa (aeroponia) e com o uso de sementes orgânicas de alto rendimento, será em seguida experimentada na Suécia, Noruega, Dinamarca e Alemanha.

Durante a apresentação do projeto, Ehrlich destacou que espera, com isso “redefinir o conceito de zona residencial com este ciclo de cultura orgânica e reciclagem de resíduos; não é possível continuar a crescer e a urbanizar como temos feito até agora”. Por isso, ele já pensa em se expandir para regiões com superpopulação e de clima difícil. A Índia e a África subsaariana encabeçam a sua lista.