sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Pensamento do Dia

 


O capitão parece sem rumo

Basta alinhar um fato atrás do outro para concluir que o capitão Bolsonaro ou não sabe o que quer ou está perdido.

Para o dia 25 de agosto, o ministro da Economia, Paulo Guedes, havia agendado o que chamou de “big bang”, aquilo que seria um ato de recriação da economia. Haveria o anúncio do Renda Brasil, um avanço sobre o Bolsa Família, que distribuiria mais renda. O ministro Paulo Guedes avisou que teria como principal fonte orçamentária a extinção de programas sociais pouco eficazes: o abono salarial, que concede um salário mínimo por ano para trabalhadores que ganham até dois salários mínimos por mês; o seguro-defeso, distribuído aos pescadores artesanais nos períodos de desova dos peixes, em que teriam de permanecer inativos; e o próprio Bolsa Família, cujos recursos seriam incorporados ao novo programa.

O presidente Bolsonaro fulminou a proposta. Disse que “não tiraria dos pobres para dar aos paupérrimos”. O “big bang” não passou de um estourinho de pipoca dentro da panela.

Do “big bang” fariam parte duas outras providências: a desindexação total da economia (inexistência de reajustes), que alcançaria salários, aposentadorias e pensões; e o anúncio de um programa estimulador de empregos, a desoneração dos encargos sociais, a que estão obrigados os empregadores. A arrecadação que deixaria de ser obtida com a redução dos encargos sociais seria coberta com um novo imposto, que incidiria sobre transações financeiras, em quase nada diferente da extinta CPMF.




Às críticas a essa nova CPMF o ministro Paulo Guedes disse que seria “a troca de um imposto cruel por um feioso”. Se esse imposto cria distorções, argumenta ele, mais e maiores distorções são produzidas pelos encargos sociais, que impedem a criação de postos de trabalho, estimulam a informalidade e semeiam concorrência desleal pelas empresas que pagam salários “por fora” e não recolhem os encargos.

Há três dias, o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (PP-PR), avisou que não havia acordo político para a nova CPMF e que, por isso, o projeto não teria condições de tramitação no Congresso. A proposta vai outra vez para a gaveta e, com isso, fica para depois a desoneração pretendida.

Dia 15 de setembro, o secretário especial do Ministério da Economia, Waldery Rodrigues, avisou que a cobertura para o programa Renda Brasil viria do congelamento de aposentadorias e pensões, por dois anos. Não era nada do que não tivesse sido combinado anteriormente, seja porque Paulo Guedes já havia adiantado essa desindexação por ocasião do anúncio do “big bang”, seja porque Waldery não é o tipo da autoridade que fala por conta própria.

Mas o presidente Bolsonaro desconsiderou avaliações técnicas anteriores, desautorizou pelas redes sociais o secretário Waldery e advertiu que levantaria o cartão vermelho para autoridades do governo que defendessem propostas desse tipo. Waldery recolheu-se à toca, à espera do que viesse, e não se falou mais em desindexação de salários e aposentadorias.

Na última segunda-feira, o mesmo líder do governo, Ricardo Barros, fez um comunicado na presença do presidente Bolsonaro e do ministro Paulo Guedes – portanto anunciava algo previamente negociado –, de que o Renda Brasil seria rebatizado de Renda Cidadã e que seria financiado com recursos do adiamento do pagamento das dívidas precatórias e com parcela do Fundeb, cujo nome e sobrenome é Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais de Educação.

Depois do caos produzido no mercado com a perspectiva da caracterização de um calote e o uso para outra finalidade de recursos liberados do teto dos gastos, nesta quarta-feira o ministro Paulo Guedes, aparentemente por ordem superior, desdisse o que defendia antes. Abateu a tiros a ideia do adiamento do pagamento dos precatórios, que já havia sido determinado pela Justiça, para lastrear o Renda Cidadã. Outra vez, o anúncio oficial já não valeu para nada.

O presidente Bolsonaro vem repetindo o princípio que aprendeu no Exército de que “pior do que uma decisão ruim é a indecisão”. Mas tem coisa pior do que isso. São decisões tomadas e, repetidamente abandonadas. Ele mesmo autoriza o piloto a mudar a rota do barco e, logo depois, volta atrás e ainda recrimina o piloto por ter obedecido a sua ordem. No Estado Maior deve haver um nome para isso.

Importa menos a direção dos ventos. Basta ajustar as velas do barco. Mas Bolsonaro não sabe para onde quer ir e os marinheiros não sabem como ajustar as velas.

A corrupção cria um novo genocídio no Brasil

Não é só o coronavírus que está criando um genocídio no Brasil, pecado do qual o próprio chefe de Estado, Jair Bolsonaro, é acusado por seu comportamento negacionista diante da epidemia. Outro genocídio não menos importante é o da corrupção que infestou todas as instituições do Estado, da política à Justiça, começando pelas próprias igrejas.

Os abutres estão se aproveitando da dor da pandemia para engordar suas barrigas. Quantas vidas poderiam ter sido salvas com esse dinheiro? A corrupção cria morte e dor como um vírus da alma. Quem se apropria do dinheiro público dedicado a criar vida é um genocida. 

Dias atrás vi se encherem de lágrimas os olhos de uma mãe de duas meninas, desempregada, ao receber uma cesta básica. E veio aos meus olhos, como um pesadelo dantesco, a fila de políticos, empresários, juízes e até religiosos em uma dança de morte de milhões roubados dos pobres. Ao mesmo tempo, com dor, vejo aflorarem os pecados dos maiores responsáveis pela Lava Jato chamados a exigir justiça. Vejo a dança de alegria dos corruptos diante do colapso da cruzada contra a corrupção e não sei qual crime é pior. 

A verdade é que os pecados daqueles que foram aclamados por terem tido a coragem de desafiar os corruptos poderosos não podem servir de detergente para limpar a sujeira dos corruptos. É preciso dizê-lo em voz alta: a corrupção que move milhões e até bilhões em um país onde correm rios de dor de milhões de pobres que sofrem porque não podem alimentar seus filhos deve ser punida como assassinato e genocídio. 

E são sempre os mesmos, na pandemia e na corrupção, os que mais sofrem e morrem: os negros e afrodescendentes herdeiros da escravidão; os que cresceram sem uma educação que os preparasse para a vida, os indígenas cada vez mais massacrados, os idosos e os doentes incapazes de sobreviver por conta própria. 


Durante a pandemia, dois demônios se juntaram no Brasil para criar morte e dor, o do vírus e o da corrupção nascida no próprio coração da tragédia. Um trabalhador que recebe salário mínimo me perguntou: como podem ter alma aqueles que roubam até o dinheiro destinado a salvar vidas? Fiquei me perguntando como podem dormir tranquilos. E não apenas não parecem ter remorso, mas dançam felizes vendo desabar alguns dos pilares da luta contra a corrupção. 

Na verdade, observar hoje o regozijo de alguns políticos sobre os quais recai até uma dúzia de processos de corrupção e que continuam em liberdade por sua cumplicidade com magistrados e procuradores ou por suas chantagens a eles é algo que não deixa de causar indignação e repulsa. Este Brasil que a corrupção está corroendo não é aquele com que os brasileiros sonharam e pelo qual se empenharam e lutaram —um país onde ninguém passasse necessidade, pois é atravessado por rios de riquezas naturais. E que, além disso, tem um povo criativo e capaz, se o deixarem, de produzir riquezas para que todos possam ter o que precisam sem ter de ver a fome aflorar nos olhos de seus filhos. 

Sou exagerado? Não. Ainda fico aquém porque nem eu nem a maioria dos meus leitores conhecemos por dentro as entranhas dos dramas da pobreza e até da miséria de milhões de pessoas expostas ao mesmo tempo à violência cruzada do crime organizado e da ausência do Estado. E enquanto isso, onde estão as vozes dos justos que não ouvimos seus gritos de condenação a tanto genocídio? Onde está aquele punhado de políticos e líderes decentes e não corruptos que não levantam a voz? Onde estão aqueles que foram escolhidos para fazer justiça e defender os mais fracos e que vivem de mãos dadas com os outros poderosos, defendendo mutuamente seus privilégios? 

Às vezes me vêm à memória as vozes do Deus da Bíblia quando, na cidade corrupta de Sodoma e Gomorra, não encontrava um único justo capaz de salvar os demais. Ou me lembra o lamento daquele profeta dos descartados e abandonados à própria sorte quando dizia: “Tenho compaixão por eles porque são como ovelhas sem pastor”. 

Onde estão no Brasil os pastores, os governantes, os políticos, os juízes e até os religiosos capazes de proteger os mais expostos sempre à patada dos lobos? Se os pecados da Lava Jato não redimem os corruptos, tampouco uma vitória nas urnas autoriza a tirania e a perseguição aos diferentes e mais expostos a serem escravizados. 

A classe brasileira que está em boa situação, a que nunca passou necessidades e pôde até dar caprichos aos seus filhos, os políticos e juízes corruptos, nunca compreenderá a imensidão da dor acumulada no coração dos que trabalham e não conseguem nem uma vida digna. É triste para o Brasil, como país, se distinguir por ser um dos países mais corruptos do mundo ao mesmo tempo em que é um dos povos mais religiosos do planeta. 

Os evangelhos cristãos dizem que o demônio, para tentar Jesus, o levou ao alto da cidade e, mostrando-lhe todos os reinos a seus pés, lhe disse: “Tudo isso te darei se, prostrando-te, me adorares”; o Brasil aparece hoje rendido à tentação dos demônios da corrupção diante dos quais todas as instituições parecem de joelhos. 

E o pior e o mais sarcástico é que este é um país que chegou a ser invejado de fora porque se dizia que “Deus era brasileiro”. Será que voltará a ser algum dia? Recursos não faltam. O que falta é decência aos responsáveis pelo seu destino.
Juan Arias

Índios e caboclos no fogaréu

O discurso do presidente Jair Bolsonaro, na abertura da assembleia das Nações Unidas, no dia 22, foi um discurso revelador do que é, nele, a fabricação do governante na conjuntura política inaugurada no dia 1º de janeiro de 2019.

Os presidentes, os reis, os papas são construções imaginárias que os fazem diferentes do que são em carne e osso, por nascimento e educação, para que se tornem a outra pessoa que devem ser quando chamados ao exercício da função impessoal do poder.

O aspecto fascinante da apresentação pública da pessoa que hoje ocupa a Presidência da República está no que nos revela e pode revelar a arqueologia que lhe expõe os acertos e erros, incoerências e contradições à luz do que deveria personificar e não consegue.

Na ONU, ele se apresentou perante o mundo como réu. Defendeu-se, acusando. Fê-lo mal porque as fragilidades de seu governo não têm defesa. Foi um discurso de província, aos coadjuvantes e não às nações. Sua palavra não foi expressão de consciência dos dilemas da sociedade contemporânea. Não falou como estadista e conselheiro a partir da difícil e problemática experiência brasileira de país cada vez mais rico e cada vez mais pobre ao mesmo tempo.




Que lições tirar dessa contradição que nos oprime e diminui? Que lições recomendar às nações num momento em que os países democráticos e lúcidos já sabem que o sistema econômico terá que ser significativamente reformulado para superar o equívoco da economia iníqua do lucro sem limite e sem ética? Que reformas sociais são necessárias para que a sociedade moderna se torne uma sociedade justa e acolhedora? Como salvar o capitalismo sem inviabilizar a democracia?

O mundo tem acumulado riquezas que demonstram que a justiça social é possível. Falta-nos a clareza da faxina ética que remova do protagonismo do poder aqueles que já não representam a consciência das carências radicais que nos pedem a reforma social e política profunda, que nos devolva a nós mesmos.

O discurso de Bolsonaro na ONU revelou-se distante do que se espera de quem fala dessa tribuna excelsa. Historicamente é tribuna para a voz sensata dos que têm algo a dizer como porta-vozes da condição humana. Gente que sabe falar a língua humanitária de Mahatma Gandhi (1869-1948), que, na roca simbólica, fiou pacientemente a linha da não violência na construção da independência da Índia. O fio que desmoralizou e esvaziou a tradição militarista da dominação colonial.

Ou gente que conhece a língua do silêncio revolucionário, como Nelson Mandela (1918-2013). Nos muitos anos de sua prisão, sabia que na mordaça da cadeia se transformava em guerrilheiro da construção de uma nação, símbolo de liberdade e de emancipação. Seus opressores tiveram que ir buscá-lo no cárcere para pedir-lhe que fizesse da África do Sul um novo país, lugar de todos e não lugar de alguns. Ele ensinou aos brancos a dialética de que só os negros poderiam libertá-los ao libertarem-se a si mesmos.

Gente como Martin Luther King (1929-1968), cuja marcha arrastou consigo a consciência da América em direção a Washington e à universalização dos direitos civis. Um negro que limpou da falsa brancura americana a sujeira do sectarismo, da discriminação e da desigualdade racial.

Ou gente como o cacique Raoni Metuktire, um dos raros brasileiros que sabem falar ao mundo sobre a humanidade das nações indígenas, de seu direito à diferença social e antropológica, sua visão de mundo ancestral. Num só, ele é os muitos indígenas que falam todos os dias a fala daquele cacique suruí-paíter, de Rondônia, nos anos 1970, que no contato com o primeiro branco, em seu território invadido, durante a ditadura militar, não o flechou. Apenas disse-lhe: “Branco, eu te amanso!”.

Jair Messias mostrou-se muito aquém desses monumentais modelos de pessoa, de gente comprometida até o fundo da alma com a universalidade do gênero humano, sua libertação e sua emancipação das carências éticas e políticas minimizantes e empobrecedoras.

Seu discurso foi uma costura malfeita de retalhos de informações mutiladas. Não foi um discurso para informar, mas apenas para encobrir as próprias insuficiências e os erros do governo.

Sua referência torta a índios e caboclos como responsáveis pelos incêndios no Pantanal e na Amazônia é desinformada. Nessa tradição cultural e técnica da agricultura de roça, como é definida, há uma sabedoria ancestral que protege a natureza necessária à sobrevivência humana. O oposto da voracidade iníqua e lucrativa da devastação imediatista promovida pelo ilegalismo do latifúndio, o da doutrina de deixar a boiada passar, o do fogaréu.

O presidente do Brasil apresentou ao mundo um discurso de má assessoria e de má consciência. Coisa de amadores.

Brasil da lei furada

 


15 de novembro

Escrevo esta no dia seguinte ao do aniversário da proclamação da República. Não fui à cidade e deixei-me ficar pelos arredores da casa em que moro, num subúrbio distante. Não ouvi nem sequer as salvas da pragmática; e, hoje, nem sequer li a notícia das festas comemorativas que se realizaram. Entretanto, li com tristeza a notícia da morte da princesa Isabel. Embora eu não a julgue com o entusiasmo de panegírico dos jornais, não posso deixar de confessar que simpatizo com essa eminente senhora.

Veio, entretanto, vontade de lembrar-me o estado atual do Brasil, depois de trinta e dois anos de República. Isso me acudiu porque topei com as palavras de compaixão do Senhor Ciro de Azevedo pelo estado de miséria em que se acha o grosso da população do antigo Império Austríaco. Eu me comovi com a exposição do doutor Ciro, mas me lembrei ao mesmo tempo do aspecto da Favela, do Salgueiro e outras passagens pitorescas desta cidade.

Em seguida, lembrei-me de que o eminente senhor prefeito quer cinco mil contos para reconstrução da avenida Beira-Mar, recentemente esborrachada pelo mar.

Vi em tudo isso a República; e não sei por quê, mas vi.



Não será, pensei de mim para mim, que a República é o regime da fachada, da ostentação, do falso brilho e luxo de parvenu, tendo como repoussoir a miséria geral? Não posso provar e não seria capaz de fazê-lo.

Saí pelas ruas do meu subúrbio longínquo a ler as folhas diárias. Lia-as, conforme o gosto antigo e roceiro, numa "venda" de que minha família é freguesa.

Quase todas elas estavam cheias de artigos e tópicos, tratando das candidaturas presidenciais. Afora o capítulo descomposturas, o mais importante era o de falsidade.

Não se discutia uma questão econômica ou política; mas um título do Código Penal.

Pois é possível que, para a escolha do chefe de uma nação, o mais importante objeto de discussão seja esse?

Voltei melancolicamente para almoçar, em casa, pensando, cá com os meus botões, como devia qualificar perfeitamente a República.

Entretanto - eu o sei bem - o 15 de Novembro é uma data gloriosa, nos fastos da nossa história, marcando um grande passo na evolução política do país.
Lima Barreto, Marginália, 26-11-1921

Uma loucura sem método

Nos debates sobre reforma tributária e temas conexos consigo perceber as loucuras, mas ainda não consegui identificar, caso exista, o método.

Merece destaque nessas frequentes insanidades a proposta de criação de uma singular “contribuição sobre bens e serviços”, constante do projeto de lei nº 3.887, de 2020, para o qual se requereu urgência na tramitação para, em seguida, abdicar-se dessa urgência sob a patética alegação de desobstruir a votação de “inadiáveis” alterações no código de trânsito.

O projeto sequer esclarece se a base de cálculo dessa contribuição seria operações ou receita, preferindo delegar a resolução desse dilema, caso o projeto prosperasse, para o Judiciário, em robusta contribuição ao aumento da litigiosidade no País.

Muito já se disse sobre as impropriedades daquele projeto de lei, mas nele há que se assinalar a virtude de expor, em escala reduzida, as mazelas da PEC nº 45, que propõe a instituição de um Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e um enigmático Imposto Seletivo. Tenta-se encobrir essas impropriedades evitando-se mensurar as repercussões dos projetos sobre preços, setores e entes federativos, sob a justificativa de que essas informações “não contribuiriam para o debate” (sic).

As mais recentes pérolas desse universo de loucuras são a divulgação de um anteprojeto de lei complementar da PEC nº 45 e discriminação das fontes de financiamento da denominada “renda cidadã”.


O anteprojeto de lei complementar a uma Proposta de Emenda Constitucional que não foi apreciada pelo Congresso Nacional, apesar de inusitado, ajuda a desvelar as deficiências da proposição.

Ao admitir a vulnerabilidade do IVA à sonegação, como especial menção ao que ocorre com esse imposto na civilizada Europa, propõe-se condicionar o aproveitamento de créditos ao efetivo recolhimento do imposto na etapa anterior. Há que se reconhecer o ineditismo da proposta, tanto quanto seu surrealismo. Como poderia um contribuinte fixar o preço da mercadoria ou serviço sem saber se seu fornecedor vai recolher o imposto no mês subsequente?

Para administrar o IBS, é proposta a criação de uma Agência Tributária Nacional visando “implementar federalismo cooperativo” (sic), integrado por servidores da administração tributária dos entes federativos e dirigido por um conselho de administração, eleito por uma assembleia geral, com poderes para eleger uma diretoria executiva. Esse Conselho teria competência para expedir normas infralegais e proceder ao julgamento administrativo tributário por meio de um órgão denominado “Contencioso Tributário”. Há também alusão, não traduzida no texto do anteprojeto, a um Conselho Consultivo Empresarial. Na história da administração tributária, não me recordo de uma proposta pior do que essa.

Para a renda cidadã, aventou-se, entre outras fontes de financiamento, a postergação do pagamento de precatórios da União. É o auge da temporada de ideias ruins. Qual a autoridade moral de um Estado que posterga o pagamento de suas dívidas e cobra dos contribuintes o pagamento pontual de tributos?

Estamos, hoje, com mais de 4,7 milhões de pessoas infectadas pela Covid-19 e mais de 143 mil mortos, suportamos uma taxa de desemprego recorde (13,8%), “comemoramos” a queda de 9,7%, no segundo trimestre, do PIB brasileiro, o agronegócio é impactado por um entusiasmado desapreço à política ambiental, há previsões consistentes sobre o aumento da parcela da população em condições de pobreza e extrema pobreza, a crise fiscal dos Estados e Municípios vai aumentar. A despeito de tudo isso, continuamos, ao contrário do que é feito no resto do mundo, a debater uma reforma tributária que hostiliza severamente setores econômicos e eleva o preço de serviços tão essenciais, como saúde e educação, e de livros, que desfrutam de uma longeva isenção de tributos.

O Brasil, infelizmente, não desperdiça a oportunidade de cometer erros.
Everardo Maciel, ex-secretário da Receita Federal

Não é gado, é mulher de malandro

A massa de bolsonaristas não está muuuito satisfeita com a possibilidade de um indicado pelo Centrão ocupar uma vaga no STF. Esperam um conservador terrivelmente evangélico e, desde ontem mesmo, quando surgiu o senhor K na parada, fazem pressão nas redes sociais para que a promessa de Jair Bolsonaro seja cumprida. Mas nada de falar mal diretamente do “meu presidente”. Ele é o herói que, contra tudo e todos, vai mudar o Brasil.


Chega até a ser engraçado o fanatismo desse pessoal. Eu, por exemplo, quando não tenho nada para fazer, me divirto bloqueando seguidores de Bolsonaro que vêm sujar o meu Twitter. Deve dar fissura neles e eu rio com essa possibilidade. Se houvesse um instrumento para medir a cegueira político-ideológica, muito provavelmente os bolsonaristas superariam os lulistas. No PT, pelo menos, existem diferentes correntes. Em determinado momento, inclusive, houve até espaço para Dilma Rousseff tentar rivalizar com Lula, numa repetição canhestra da criatura tentando devorar o criador. No bolsonarismo, não. O caudilhismo é levado a sério como antigamente, numa interpretação bastante peculiar do que seja o conservadorismo.

A realidade político-policial é apreensível pelos cinco sentidos: Bolsonaro puxou o tapete da prisão de condenados em segunda instância. Tentou interferir na PF para livrar o filho senador de maiores apuros. Tem um advogado que escondeu Fabrício Queiroz, faz negócios com gente encrencada e se encontra com ele às escondidas no Palácio do Alvorada. Nomeou como PGR um inimigo da Lava Jato. Virou amigo de infância de ministros do STF antes odiados pelos bolsonaristas. Forçou a saída de Sergio Moro do governo. Trabalha pela reeleição como se nunca houvesse dito que a extinguiria. Quer comprar votos em 2022 ampliando o programa assistencialista que criticava. Deu as costas para a agenda liberal na economia. E, por último, mas não menos importante, aliou-se ao Centrão, antes considerado inimigo como o PT. Nunca houve traição tão grande, mas os bolsonaristas seguem firmes com ele.

Os seus fanáticos gostam de dizer que o Brasil está há quase dois anos sem corrupção. Não põem na conta a descoberta da rachadinha no gabinete de Flávio, os cheques de Fabrício Queiroz para Michelle Bolsonaro ou os apartamentos comprados com dinheiro vivo pelos filhos do presidente. Tiraram do currículo dos Bolsonaro qualquer fato desabonador, assim como funcionários do Detran somem com pontos da carteira do motorista que lhes pagou uma cervejinha. Vamos esquecer o passado. E você vai comparar essas vaciladas com a montanha de dinheiro roubada durante os governos do PT, seu isentão? Desonestidade virou conceito relativo. Depende da quantia. O que os bolsonaristas também fingem não ver é que, ao entregar-se ao Centrão, o presidente assinou um pacto com o fisiologismo e um contrato futuro de corrupção da grossa.

A turma ganhou o apelido de gado. Eu prefiro chamar mesmo é de mulher de malandro.

Vampiros digitais

É muito perturbador saber que o mundo maravilhoso da internet, seus aplicativos e redes sociais, criados para conectar as pessoas, também tiveram um efeito colateral maligno, desagregador e imprevisto. E, pior, irreversível e incontrolável.

“O dilema das redes” (Netflix) é um documentário com depoimentos de cientistas e filósofos da era digital e dos designers, engenheiros e executivos que criaram os aplicativos e os modelos de negócio do Facebook, Instagram, Twitter e outros. São quase todos jovens e brilhantes, milionários vitoriosos e admirados, que trabalharam sem descanso e se sentiam criadores de maravilhas digitais, até descobrirem que também tinham criado um monstro.

Em depoimentos sinceros, assumem suas responsabilidades, sem pedir desculpas: foi o preço para usarmos “de graça” esses fabulosos instrumentos de comunicação. A frase-chave é: se estão lhe oferecendo algum produto de graça, pode ter certeza de que o produto é você. Assim como o almoço, não existe a conexão grátis: alguém está pagando.

O Google e as redes sociais sabem tudo sobre você: o que come, o que vê, o que lê, suas opiniões, seus posts, seus amigos, quem você segue, onde mora, quanto ganha, onde gasta, seus gostos e desgostos, sabe até o que você gostaria de ter. Para informar e divertir de graça, usam seus dados para vender anúncios com o alvo certo: você.

Se vivesse hoje, George Orwell ficaria encabulado com seu Big Brother de “1984”, o acharia tosco, bisonho e impreciso diante do Google e das redes sociais. Eles comandam os seus desejos e direcionam você para a publicidade, sabem quanto tempo você gasta com elas, os algoritmos o estimulam de todas as formas a ficar cada vez mais tempo on-line. Nem que seja brigando. Para valer dinheiro, você tem que estar conectado, ligado, viciado. Imagine um dia sem o Google e as redes sociais.

Para manter os usuários dependentes da droga digital, os algoritmos programam até o antagonismo, monetizando os conflitos e criando uma adição nefasta que se alimenta de ódio.