Os presidentes, os reis, os papas são construções imaginárias que os fazem diferentes do que são em carne e osso, por nascimento e educação, para que se tornem a outra pessoa que devem ser quando chamados ao exercício da função impessoal do poder.
O aspecto fascinante da apresentação pública da pessoa que hoje ocupa a Presidência da República está no que nos revela e pode revelar a arqueologia que lhe expõe os acertos e erros, incoerências e contradições à luz do que deveria personificar e não consegue.
Na ONU, ele se apresentou perante o mundo como réu. Defendeu-se, acusando. Fê-lo mal porque as fragilidades de seu governo não têm defesa. Foi um discurso de província, aos coadjuvantes e não às nações. Sua palavra não foi expressão de consciência dos dilemas da sociedade contemporânea. Não falou como estadista e conselheiro a partir da difícil e problemática experiência brasileira de país cada vez mais rico e cada vez mais pobre ao mesmo tempo.
Que lições tirar dessa contradição que nos oprime e diminui? Que lições recomendar às nações num momento em que os países democráticos e lúcidos já sabem que o sistema econômico terá que ser significativamente reformulado para superar o equívoco da economia iníqua do lucro sem limite e sem ética? Que reformas sociais são necessárias para que a sociedade moderna se torne uma sociedade justa e acolhedora? Como salvar o capitalismo sem inviabilizar a democracia?
O mundo tem acumulado riquezas que demonstram que a justiça social é possível. Falta-nos a clareza da faxina ética que remova do protagonismo do poder aqueles que já não representam a consciência das carências radicais que nos pedem a reforma social e política profunda, que nos devolva a nós mesmos.
O discurso de Bolsonaro na ONU revelou-se distante do que se espera de quem fala dessa tribuna excelsa. Historicamente é tribuna para a voz sensata dos que têm algo a dizer como porta-vozes da condição humana. Gente que sabe falar a língua humanitária de Mahatma Gandhi (1869-1948), que, na roca simbólica, fiou pacientemente a linha da não violência na construção da independência da Índia. O fio que desmoralizou e esvaziou a tradição militarista da dominação colonial.
Ou gente que conhece a língua do silêncio revolucionário, como Nelson Mandela (1918-2013). Nos muitos anos de sua prisão, sabia que na mordaça da cadeia se transformava em guerrilheiro da construção de uma nação, símbolo de liberdade e de emancipação. Seus opressores tiveram que ir buscá-lo no cárcere para pedir-lhe que fizesse da África do Sul um novo país, lugar de todos e não lugar de alguns. Ele ensinou aos brancos a dialética de que só os negros poderiam libertá-los ao libertarem-se a si mesmos.
Gente como Martin Luther King (1929-1968), cuja marcha arrastou consigo a consciência da América em direção a Washington e à universalização dos direitos civis. Um negro que limpou da falsa brancura americana a sujeira do sectarismo, da discriminação e da desigualdade racial.
Ou gente como o cacique Raoni Metuktire, um dos raros brasileiros que sabem falar ao mundo sobre a humanidade das nações indígenas, de seu direito à diferença social e antropológica, sua visão de mundo ancestral. Num só, ele é os muitos indígenas que falam todos os dias a fala daquele cacique suruí-paíter, de Rondônia, nos anos 1970, que no contato com o primeiro branco, em seu território invadido, durante a ditadura militar, não o flechou. Apenas disse-lhe: “Branco, eu te amanso!”.
Jair Messias mostrou-se muito aquém desses monumentais modelos de pessoa, de gente comprometida até o fundo da alma com a universalidade do gênero humano, sua libertação e sua emancipação das carências éticas e políticas minimizantes e empobrecedoras.
Seu discurso foi uma costura malfeita de retalhos de informações mutiladas. Não foi um discurso para informar, mas apenas para encobrir as próprias insuficiências e os erros do governo.
Sua referência torta a índios e caboclos como responsáveis pelos incêndios no Pantanal e na Amazônia é desinformada. Nessa tradição cultural e técnica da agricultura de roça, como é definida, há uma sabedoria ancestral que protege a natureza necessária à sobrevivência humana. O oposto da voracidade iníqua e lucrativa da devastação imediatista promovida pelo ilegalismo do latifúndio, o da doutrina de deixar a boiada passar, o do fogaréu.
O presidente do Brasil apresentou ao mundo um discurso de má assessoria e de má consciência. Coisa de amadores.
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