domingo, 24 de julho de 2022
É a vergonha, gente!
Quando se discutia qual tema justificaria o voto no candidato Bill Clinton, seu assessor e estrategista da campanha, James Carville ficou famoso por responder: “É a economia, idiota!”. Ele tinha razão. Este era o tema do momento para atrair os eleitores. Na nossa eleição, em 2022, há diversas razões para não se votar pela reeleição de Bolsonaro.
“A economia é uma delas, gente!”. Com uma inflação acima da meta, o o crescimento patinando, o desemprego elevado, não se vê perspectiva de um novo momento econômico para o país nos próximos anos, com a continuação do atual governo.
Pode ser também “a democracia, gente!”. O presidente jamais escondeu sua aversão ao regime democrático, seu respeito por ditadores e torturadores. Há meses vem anunciando que não reconhece as instituições e só acredita nas urnas se o resultado for a seu favor. A defesa da democracia é uma forte razão para não votar em Bolsonaro.
Ainda pode ser “a tragédia social, gente!”. Com 33 milhões de pessoas passando fome e quase 100 milhões com deficiência nutricional, a tragédia da educação se agravando, a pobreza se ampliando, seria um suicídio moral manter um presidente sem a menor empatia pelos pobres.
Também pode ser “o desencanto, gente!”, com um presidente sem liderança, nem competência para mobilizar a população. Podem ser também as “grosserias do presidente” contra mulheres, gays, índios, doentes. “A depredação da Amazônia, gente!” “É o genocídio, gente!” Seu negacionismo ao chamar a epidemia de “gripezinha”, desaconselhando a vacinação e tentando impedir seu uso, inclusive para crianças.
“São as armas, gente!” O crime antipatriótico de armar os brasileiros para que se assassinem, criando um clima de instabilidade que levaremos décadas para superar se ele não for reeleito. “É a corrupção, gente!”, no MEC, no MS, na Codevasf, nas compras no Exército. “É a blasfêmia, gente!” de se dizer cristão, como se Jesus fosse armamentista e de corromper pastores evangélicos com ouro.
Ou “É o futuro, gente!”, condenado pelo desprezo à ciência, tecnologia, meio ambiente.
São muitas razões para não votar neste presidente. Mas, de todas, a razão que parece fundamental “é a vergonha, gente!”. A vergonha que ele nos faz ao agredir pessoas, inclusive chefes de estado estrangeiros, grupos sociais, inclusive doentes com falta de ar por causa do covid, ao falar para embaixadores dizendo que nosso Brasil é uma republiqueta de banana. Vergonha dele ser a cara e o nome que representam o Brasil no mundo.
É possível que Bolsonaro fique na história como o pior presidente do Brasil, mas é certo que nenhum até hoje nos fez passar tanta vergonha no cenário mundial. Esta é a razão maior, no meio de tantas outras. “É a vergonha, gente!” Não dá para aguentar mais quatro anos com esta cara e este nome nos representando e falando por nós, no mundo.
“A economia é uma delas, gente!”. Com uma inflação acima da meta, o o crescimento patinando, o desemprego elevado, não se vê perspectiva de um novo momento econômico para o país nos próximos anos, com a continuação do atual governo.
Pode ser também “a democracia, gente!”. O presidente jamais escondeu sua aversão ao regime democrático, seu respeito por ditadores e torturadores. Há meses vem anunciando que não reconhece as instituições e só acredita nas urnas se o resultado for a seu favor. A defesa da democracia é uma forte razão para não votar em Bolsonaro.
Ainda pode ser “a tragédia social, gente!”. Com 33 milhões de pessoas passando fome e quase 100 milhões com deficiência nutricional, a tragédia da educação se agravando, a pobreza se ampliando, seria um suicídio moral manter um presidente sem a menor empatia pelos pobres.
Também pode ser “o desencanto, gente!”, com um presidente sem liderança, nem competência para mobilizar a população. Podem ser também as “grosserias do presidente” contra mulheres, gays, índios, doentes. “A depredação da Amazônia, gente!” “É o genocídio, gente!” Seu negacionismo ao chamar a epidemia de “gripezinha”, desaconselhando a vacinação e tentando impedir seu uso, inclusive para crianças.
“São as armas, gente!” O crime antipatriótico de armar os brasileiros para que se assassinem, criando um clima de instabilidade que levaremos décadas para superar se ele não for reeleito. “É a corrupção, gente!”, no MEC, no MS, na Codevasf, nas compras no Exército. “É a blasfêmia, gente!” de se dizer cristão, como se Jesus fosse armamentista e de corromper pastores evangélicos com ouro.
Ou “É o futuro, gente!”, condenado pelo desprezo à ciência, tecnologia, meio ambiente.
São muitas razões para não votar neste presidente. Mas, de todas, a razão que parece fundamental “é a vergonha, gente!”. A vergonha que ele nos faz ao agredir pessoas, inclusive chefes de estado estrangeiros, grupos sociais, inclusive doentes com falta de ar por causa do covid, ao falar para embaixadores dizendo que nosso Brasil é uma republiqueta de banana. Vergonha dele ser a cara e o nome que representam o Brasil no mundo.
É possível que Bolsonaro fique na história como o pior presidente do Brasil, mas é certo que nenhum até hoje nos fez passar tanta vergonha no cenário mundial. Esta é a razão maior, no meio de tantas outras. “É a vergonha, gente!” Não dá para aguentar mais quatro anos com esta cara e este nome nos representando e falando por nós, no mundo.
Dificuldade de governar
Todos os dias os ministros dizem ao povo
Como é difícil governar. Sem os ministros
O trigo cresceria para baixo em vez de crescer para cima.
Nem um pedaço de carvão sairia das minas
Se o chanceler não fosse tão inteligente. Sem o ministro da Propaganda
Mais nenhuma mulher poderia ficar grávida. Sem o ministro da Guerra
Nunca mais haveria guerra. E atrever-se ia a nascer o sol
Sem a autorização do Führer?
Não é nada provável e se o fosse
Ele nasceria por certo fora do lugar.
2
E também difícil, ao que nos é dito,
Dirigir uma fábrica. Sem o patrão
As paredes cairiam e as máquinas encher-se-iam de ferrugem.
Se algures fizessem um arado
Ele nunca chegaria ao campo sem
As palavras avisadas do industrial aos camponeses: quem,
De outro modo, poderia falar-lhes na existência de arados? E que
Seria da propriedade rural sem o proprietário rural?
Não há dúvida nenhuma que se semearia centeio onde já havia batatas.
3
Se governar fosse fácil
Não havia necessidade de espíritos tão esclarecidos como o do Führer.
Se o operário soubesse usar a sua máquina
E se o camponês soubesse distinguir um campo de uma forma para tortas
Não haveria necessidade de patrões nem de proprietários.
E só porque toda a gente é tão estúpida
Que há necessidade de alguns tão inteligentes.
4
Ou será que
Governar só é assim tão difícil porque a exploração e a mentira
São coisas que custam a aprender?
Bertolt Brecht
O Brasil voltou no tempo
Em 2015, o francês Michel Houellebecq escreveu um livro de ficção em que mostra como seria a França num futuro não muito distante em que a maioria dos eleitores fosse de origem muçulmana e elegesse um líder do seu grupo com muitas das crenças fundamentalistas de seus ancestrais do Oriente Médio. Seria um desastre, claro. O país descrito pelo escritor regrediu no tempo, sobretudo nas áreas de costumes e cultura em razão da nova ordem instalada. “Submissão”, considerado na França como o livro mais polêmico daquele ano, foi coincidentemente lançado em Paris no mesmo dia do atentado à sede do jornal satírico Charlie Hebdo, que resultou em 12 mortes.
Mas o islamismo francês proposto por Houellebecq não se parece em nada com o dos radicais do Estado Islâmico. A transformação da França se dá por dentro, aos poucos, até se consumar. Claro, como toda ficção, o livro não tenta descrever uma nova realidade, mas uma realidade possível, embora improvável. Ainda assim, não se pode negar que há uma lógica no romance. Segundo projeções oficiais, até 2040 a maioria dos eleitores da Bélgica será de origem muçulmana. Muito provavelmente, as cabeças dos jovens muçulmanos belgas de hoje que forem eleitores daqui a 18 anos serão mais arejadas e modernas do que as de seus pais e avós imigrantes, mas ainda assim estarão assentadas na tradição islâmica.
No Brasil de Bolsonaro não foram necessários imigrantes muçulmanos para fazer deste um país mais conservador do que era há quatro anos, do ponto de vista moral, cultural e político. O componente religioso sempre importa numa transformação dessa ordem, e não foi diferente aqui. A comunidade evangélica ajudou a consolidar este quadro de retrocesso no Brasil, mas não é a única responsável. Se fosse um romance, a História do Brasil desde a eleição de 2018 seria mais improvável do que aquela contada em “Submissão”. Mas, por aqui já se pode visualizar as mudanças comportamentais provocadas pelo bolsonarismo.
Para onde quer que se olhe é possível ver os sinais do retrocesso. De tal forma materializado, o recuo na educação e na cultura é quase palpável. Na educação, o Brasil deu um passo gigantesco para trás, não apenas no seu financiamento, mas também no seu método. A cultura no país sobrevive graças à sua pujança, mas a ausência da indução do Estado inviabiliza criações e inibe o surgimento de novos talentos nas favelas, nas periferias, no interior, além de solapar iniciativas que não tenham o selo do bolsonarismo. Os seguidos ataques e deboches perpetrados ao politicamente correto criaram uma casca em torno do tecido social que embrutece o brasileiro. Não é por outra razão que crescem no país os crimes de homofobia, misoginia e racismo.
Ainda mais grave é o consumo desenfreado de armas produzido por leis, portarias e decretos aprovados nos últimos três anos e meio. Estamos virando um novo EUA, não em razão da nossa potência, econômica, cultural, tecnológica e militar, obviamente não, que não a temos. Mas pelo uso indiscriminado de armas, pela facilidade na sua compra, pelo acesso praticamente ilimitado à munição. Pela proliferação de clubes de tiros, de falsos colecionadores e caçadores espalhados pelo país. A violência provocada pela intolerância política, que tem índices elevados no Brasil, tende a explodir na campanha deste ano diante do número de pessoas armadas do lado bolsonarista. Um assassinato já foi produzido em Foz do Iguaçu.
Em todos os aspectos, somos hoje um país muito mais atrasado do que éramos em 2018. Todo o declínio que vivemos nesses anos foi causado pelo homem instalado no Palácio do Planalto e sua política de confronto permanente com as instituições, o estado democrático de direito, os opositores políticos e o bem-estar comum. Mesmo diante desse quadro, que parece um retrato desfocado do livro de Michel Houellebecq, Bolsonaro tem ainda cerca de 30% dos votos, segundo as pesquisas eleitorais. Com mais quatro anos, o Brasil pode se tornar igual ao país imaginado pelo autor francês. Só que pior.
Mas o islamismo francês proposto por Houellebecq não se parece em nada com o dos radicais do Estado Islâmico. A transformação da França se dá por dentro, aos poucos, até se consumar. Claro, como toda ficção, o livro não tenta descrever uma nova realidade, mas uma realidade possível, embora improvável. Ainda assim, não se pode negar que há uma lógica no romance. Segundo projeções oficiais, até 2040 a maioria dos eleitores da Bélgica será de origem muçulmana. Muito provavelmente, as cabeças dos jovens muçulmanos belgas de hoje que forem eleitores daqui a 18 anos serão mais arejadas e modernas do que as de seus pais e avós imigrantes, mas ainda assim estarão assentadas na tradição islâmica.
No Brasil de Bolsonaro não foram necessários imigrantes muçulmanos para fazer deste um país mais conservador do que era há quatro anos, do ponto de vista moral, cultural e político. O componente religioso sempre importa numa transformação dessa ordem, e não foi diferente aqui. A comunidade evangélica ajudou a consolidar este quadro de retrocesso no Brasil, mas não é a única responsável. Se fosse um romance, a História do Brasil desde a eleição de 2018 seria mais improvável do que aquela contada em “Submissão”. Mas, por aqui já se pode visualizar as mudanças comportamentais provocadas pelo bolsonarismo.
Para onde quer que se olhe é possível ver os sinais do retrocesso. De tal forma materializado, o recuo na educação e na cultura é quase palpável. Na educação, o Brasil deu um passo gigantesco para trás, não apenas no seu financiamento, mas também no seu método. A cultura no país sobrevive graças à sua pujança, mas a ausência da indução do Estado inviabiliza criações e inibe o surgimento de novos talentos nas favelas, nas periferias, no interior, além de solapar iniciativas que não tenham o selo do bolsonarismo. Os seguidos ataques e deboches perpetrados ao politicamente correto criaram uma casca em torno do tecido social que embrutece o brasileiro. Não é por outra razão que crescem no país os crimes de homofobia, misoginia e racismo.
Ainda mais grave é o consumo desenfreado de armas produzido por leis, portarias e decretos aprovados nos últimos três anos e meio. Estamos virando um novo EUA, não em razão da nossa potência, econômica, cultural, tecnológica e militar, obviamente não, que não a temos. Mas pelo uso indiscriminado de armas, pela facilidade na sua compra, pelo acesso praticamente ilimitado à munição. Pela proliferação de clubes de tiros, de falsos colecionadores e caçadores espalhados pelo país. A violência provocada pela intolerância política, que tem índices elevados no Brasil, tende a explodir na campanha deste ano diante do número de pessoas armadas do lado bolsonarista. Um assassinato já foi produzido em Foz do Iguaçu.
Em todos os aspectos, somos hoje um país muito mais atrasado do que éramos em 2018. Todo o declínio que vivemos nesses anos foi causado pelo homem instalado no Palácio do Planalto e sua política de confronto permanente com as instituições, o estado democrático de direito, os opositores políticos e o bem-estar comum. Mesmo diante desse quadro, que parece um retrato desfocado do livro de Michel Houellebecq, Bolsonaro tem ainda cerca de 30% dos votos, segundo as pesquisas eleitorais. Com mais quatro anos, o Brasil pode se tornar igual ao país imaginado pelo autor francês. Só que pior.
Se derrotado, o destino de Bolsonaro é ficar falando sozinho
Foi para o lixo uma das recomendações feitas por assessores de Bolsonaro às vésperas do lançamento de sua candidatura à reeleição: nada de atacar as urnas eletrônicas no discurso a ser ouvido por um Maracanãzinho lotado; e nada de criticar ministros do Supremo Tribunal Federal ou do Tribunal Superior Eleitoral.
Mal desembarcou, ontem, no Rio, depois de mais uma Marcha com Jesus, desta vez em Vitória, no Espírito Santo, Bolsonaro não se conteve e foi logo dizendo o que deverá repetir hoje:
“Ninguém consegue entender o senhor Fachin não aceitar as sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas a integrar uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas, que é minha, que é do povo brasileiro, não servirão de moldura para uma fotografia do TSE”.
Fachin é o ministro Edson, que em breve passará o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral ao colega Alexandre de Moraes. Os dois são os sacos de pancada preferidos de Bolsonaro, que já chamou Alexandre de “canalha”, e Fachin de comunista e advogado do Movimento dos Sem Terra, coisa que ele nunca foi.
“Eu estou pronto para conversar com ele, sem problema nenhum. Eles convidaram as Forças Armadas”, prosseguiu Bolsonaro. “É impressionante que a grande mídia não tenha mais a curiosidade investigativa. Tem um inquérito da PF desde 2018 com informações prestadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral”.
O tal inquérito é sobre a invasão por um hacker do sistema de computadores do tribunal. Isso em nada afetou os resultados das eleições daquele ano, uma vez que as urnas eletrônicas não são acessíveis pela internet. Bolsonaro sabe disso, mas não resiste a espalhar notícia falsa. Aposta na ignorância dos seus devotos.
“A eleição não é do TSE, não é do Supremo, não é do Executivo, nem do Legislativo, as eleições são do povo. E o povo quer ter certeza em quem ele votou”, completou. Mais de 70% dos eleitores dizem confiar nas urnas eletrônicas. Parte dos que não confiam dão ouvidos a Bolsonaro – entre eles, militares que o cercam.
Bolsonaro apela para a desordem no caso de não se reeleger. À falta de imaginação, copia o que fez Donald Trump ao ser derrotado por Joe Biden. O Centrão, que há quatro anos ele dizia abominar, hoje o apoia, e ele ao Centrão, mas não para melar as eleições. O Centrão não rasga dinheiro nem mandato.
Que políticos eleitos irão concordar com Bolsonaro se ele disser que perdeu por que as eleições foram fraudadas? Os votos para presidente, governador, senador, deputado são dados nas mesmas urnas e apurados da mesma maneira. Ou se anula a eleição para todos os cargos ou não se anula para nenhum.
Os políticos, depois de 2 de outubro, data do primeiro turno, deixarão Bolsonaro falando sozinho.
Mal desembarcou, ontem, no Rio, depois de mais uma Marcha com Jesus, desta vez em Vitória, no Espírito Santo, Bolsonaro não se conteve e foi logo dizendo o que deverá repetir hoje:
“Ninguém consegue entender o senhor Fachin não aceitar as sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas a integrar uma comissão de transparência eleitoral. As Forças Armadas, que é minha, que é do povo brasileiro, não servirão de moldura para uma fotografia do TSE”.
Fachin é o ministro Edson, que em breve passará o cargo de presidente do Tribunal Superior Eleitoral ao colega Alexandre de Moraes. Os dois são os sacos de pancada preferidos de Bolsonaro, que já chamou Alexandre de “canalha”, e Fachin de comunista e advogado do Movimento dos Sem Terra, coisa que ele nunca foi.
“Eu estou pronto para conversar com ele, sem problema nenhum. Eles convidaram as Forças Armadas”, prosseguiu Bolsonaro. “É impressionante que a grande mídia não tenha mais a curiosidade investigativa. Tem um inquérito da PF desde 2018 com informações prestadas pelo próprio Tribunal Superior Eleitoral”.
O tal inquérito é sobre a invasão por um hacker do sistema de computadores do tribunal. Isso em nada afetou os resultados das eleições daquele ano, uma vez que as urnas eletrônicas não são acessíveis pela internet. Bolsonaro sabe disso, mas não resiste a espalhar notícia falsa. Aposta na ignorância dos seus devotos.
“A eleição não é do TSE, não é do Supremo, não é do Executivo, nem do Legislativo, as eleições são do povo. E o povo quer ter certeza em quem ele votou”, completou. Mais de 70% dos eleitores dizem confiar nas urnas eletrônicas. Parte dos que não confiam dão ouvidos a Bolsonaro – entre eles, militares que o cercam.
Bolsonaro apela para a desordem no caso de não se reeleger. À falta de imaginação, copia o que fez Donald Trump ao ser derrotado por Joe Biden. O Centrão, que há quatro anos ele dizia abominar, hoje o apoia, e ele ao Centrão, mas não para melar as eleições. O Centrão não rasga dinheiro nem mandato.
Que políticos eleitos irão concordar com Bolsonaro se ele disser que perdeu por que as eleições foram fraudadas? Os votos para presidente, governador, senador, deputado são dados nas mesmas urnas e apurados da mesma maneira. Ou se anula a eleição para todos os cargos ou não se anula para nenhum.
Os políticos, depois de 2 de outubro, data do primeiro turno, deixarão Bolsonaro falando sozinho.
Como onda de saques por fome deu origem à milícia em município do RJ
Há 200 anos, o Brasil se tornava independente. Há 100, assistia à Semana de Arte Moderna. Mas um outro acontecimento histórico, menos conhecido, completa 60 anos em 2022.
Trata-se da maior onda de saques da história do país, que teve início em Duque de Caxias e se espalhou por toda a Baixada Fluminense.
Em meio à inflação, à fome e a uma greve geral, o quebra-quebra aos gritos de "Queremos comer" e "Saque" deixou ao menos 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos, muitos dos quais nunca se recuperaram.
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"A respeito dos distúrbios, o então prefeito Adolfo David declararia ao Jornal do Brasil que tinha assistido a uma verdadeira batalha, onde mulheres, homens e crianças gritavam que preferiam morrer lutando, a morrer de fome", relatam Rogério Torres e Newton Menezes, no livro Sonegação, Fome, Saque (1987), que relata os acontecimentos de 5 de julho de 1962.
Em resposta ao episódio, comerciantes da Baixada Fluminense passaram a patrocinar grupos armados para proteger suas lojas. Segundo pesquisadores, os grupos conhecidos como Brigada de Defesa da Família Caxiense e Turma do Esculacho marcam a origem das milícias na região.
Em 2019, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro estimava que as milícias atuavam em 14 cidades do Estado do Rio e em 26 bairros da capital, com mais de 2 milhões de pessoas vivendo sob o jugo de paramilitares.
Em agosto de 1961, com apenas sete meses de mandato, Jânio Quadros renunciou à presidência da República em meio a uma crise política, numa tentativa de voltar nos braços do povo, com mais poderes. O tiro saiu pela culatra, e a renúncia foi prontamente aceita pelo Congresso.
O vice-presidente João Goulart estava na China, numa missão oficial armada por Jânio, e militares tentaram impedir a posse dele como presidente. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, liderou o movimento pela legalidade, conseguindo impedir o golpe.
Mas o Congresso apenas permitiu a posse de Jango, em setembro daquele ano, sob um regime parlamentarista, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. Foi uma forma de limitar os poderes do político percebido pelos militares e setores da sociedade civil como "subversivo" e "comunista".
"João Goulart assume, mas a estrutura social, econômica e política do país estava numa crise profunda. O próprio Jango expressava todo um movimento crítico a essa realidade. Ele pregava grandes mudanças, com uma base política vinda do trabalhismo e com apoio de movimentos sociais e sindicais, que cresciam muito nessa época", lembra José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) e autor do livro Dos barões ao extermínio: Uma história de violência na Baixada Fluminense (2020), em entrevista à BBC News Brasil.
Naquele início dos anos 1960, uma série de fatores contribuíam para uma crise econômica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das políticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados déficits comerciais e redução da capacidade de importação do país; e um aumento da inflação que se agravava desde o final dos anos 1950.
Em 1960, a inflação acumulada foi de 25,4%; no ano seguinte, de 34,7%. Em 1962, o ano do grande saque, a alta de preços chegaria a 50,1% e a 78,4% em 1963.
"Há uma inflação galopante, um aumento acelerado de preços das mercadorias da cesta básica", afirma Marlúcia Santos de Souza, coordenadora geral no Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias (CRPH/DC).
"Começa então uma pressão dos movimentos feministas no Brasil inteiro, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro. Os movimentos de mulheres 'Panela Vazia', contra o custo de vida, contra a carestia vão pressionar o governo no sentido de controlar os preços dos alimentos."
Com preços tabelados pela Cofap (Comissão Federal de Abastecimento e Preços), comerciantes retiravam mercadoria das prateleiras, para vendê-las a preços mais altos no mercado paralelo.
"Faltava arroz, pão, feijão, enfim, raro foi o dia em que um ou mais produtos não entraram no 'index' dos sonegadores. Parecia que o país vivia em clima de racionamento de guerra. Como sempre, mais uma vez o governo Jango era responsabilizado pela carestia e pela falta de gêneros", escrevem Torres e Menezes.
Em meio à pressão crescente da sociedade civil, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e João Goulart indica San Tiago Dantas para substituí-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indicação foi vetada pelos setores conservadores.
Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convocou uma greve geral para o dia 5 de julho.
"Frente à fome e à crise econômica que se abatia sobre a Baixada e temerosos de perderem seus empregos, os trabalhadores saíam de madrugada dos bairros mais distantes de Duque de Caxias e se aglomeravam próximos à Praça do Pacificador, no centro do município", escreve José Cláudio Souza Alves, em seu livro, baseado em tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo).
Frustradas pela impossibilidade de chegar ao trabalho, cerca de 20 mil pessoas se concentravam nos arredores da praça por volta das 4h30 da manhã.
Foi quando correu a notícia de que, em uma casa comercial próxima, havia feijão, produto que naquele momento tinha praticamente sumido da mesa das famílias.
"Imediatamente após o saque da Casa da Banha, localizada na antiga estrada Rio-Petrópolis, quase ao lado da Galeria Baltazar, foi a vez dos demais estabelecimentos que estavam próximos: Armazém Dragão, Supermercado São Vicente, Mercadinho Nacional", relatam Torres e Menezes.
"A população carregava tudo que encontrava e, dos armazéns, passou aos açougues e padarias. Pelas ruas, homens, mulheres, crianças e velhos transportavam da maneira que podiam os mais diversos artigos: latas de biscoitos, sacos de arroz, feijão, mantas de carne-seca e até mesmo peças inteiras de carne", completam os autores.
Do centro de Caxias, a revolta se espalha por outros municípios da Baixada, como São João do Meriti e Nova Iguaçu. Ao meio-dia, praticamente todo o comércio de alimentos já havia sido saqueado, sendo poupados apenas estabelecimentos que estenderam na fachada a bandeira do Brasil, com faixas de apoio "à legalidade democrática".
Numa padaria na Av. Presidente Vargas, dezenas de pessoas que saíam com produtos saqueados foram atacadas por outras que esperavam do lado de fora.
O dono de uma loja de materiais de construção que, armado, tentou defender uma padaria vizinha, foi morto com um paralelepípedo. Um comerciante português atingiu um menor de idade ao atirar contra a multidão, sendo posteriormente linchado.
Após um jovem de 14 anos ser ferido durante tiroteio, o dono de uma boate foi atacado a pedradas e todos os móveis do estabelecimento empilhados na rua e incendiados.
"Nós ouvimos a quantidade de pessoas que vinham na frente, gritando 'Quebra! Quebra!', e os outros que vinham atrás já saqueando tudo, quebrando todas as portas", recordou a aposentada Maria Concebida, em entrevista sobre suas memórias daquele 5 de julho, ao documentário 1962: O Ano do Saque (2014), de Rodrigo Dutra e Victor Ferreira.
"Onde tivesse uma porta fechada que fosse de comércio, quebrava. E carregava de tudo. Então meu marido [falou]: 'Eu vou entrar, porque nós vamos passar fome'", contou Concebida.
"Nós levamos arroz, feijão e farinha. Era a única coisa mais fácil para carregar. Não roubava as coisas de dentro das casas, não. Era só alimento. No fim, os bebuns começaram a carregar as outras coisas: cachaça, bebida, tudo."
A greve geral e a onda de saques sem precedentes estamparam as capas e páginas internas de todos os jornais na sexta-feira, 6 de julho de 1962.
Sob a manchete "Explosão popular no Estado do Rio: 700 vítimas e dano de 1 bilhão", o Jornal do Brasil reportava: "O Palácio do Ingá [então sede do Governo Fluminense] informou ontem à noite que 42 pessoas morreram, e 700 foram feridas em quatro Municípios do Estado do Rio, onde a população se revoltou e, ganhando as ruas, invadiu um a um todos os armazéns, empórios e mercadinhos, num saque sistemático que causou prejuízos de Cr$ 1 bilhão [1 bilhão de cruzeiros]. (...) A manifestação foi a maior dessa espécie já verificada no País."
José Cláudio, da UFFRJ, conta que muitos estabelecimentos comerciais da Baixada nunca se recuperaram desse episódio.
Num relatório interno, a Associação Comercial e Industrial de Duque de Caxias concluiu que 30% dos comerciantes saqueados não se restabeleceram, 50% voltaram em condições precárias e apenas 20% retornaram em condições normais, cita o professor, em seu livro.
"Os processos de indenização eram complexos, pois eram necessárias regularizações e documentações para acessar. Então os comerciantes mais dinâmicos, mais organizados, mais poderosos conseguiram obter recursos volumosos e reestruturam seus mercados. É quando surgem supermercados como Sendas e Casa da Banha", diz Marlúcia, do CRPH/DC, sobre o processo de concentração do varejo em grandes redes, após a onda de depredação.
Outra consequência do levante popular de 5 de julho foi um reforço na segurança por parte dos comerciantes através de grupos armados.
"O delegado convocou voluntários para o policiamento da cidade. Estes, em grupo de 12, formariam a Brigada de Defesa da Família Caxiense. Surgia assim uma força paramilitar da qual faziam parte muitos jovens que pertenciam a famílias abastadas da cidade", escreve José Cláudio.
Eronides Batista, presidente da Associação Comercial, assim justificou a criação da milícia, em reportagem da revista Fatos & Fotos, de 21 de julho de 1962:
"Milícia é forma de expressão. Não há comando militar. Eles apenas procuram evitar novos saques e perturbações; e até hoje não houve incidentes entre eles e o povo. Nós não somos favoráveis, é evidente, à fome. Mas não somos responsáveis por ela", defendeu Batista.
O professor da UFFRJ avalia que essa milícia nascente é diferente por exemplo, do grupo de Tenório Cavalcanti, político de Caxias conhecido como o "Homem da Capa Preta", vestimenta que usava para esconder a submetralhadora que sempre carregava, chamada Lurdinha.
"Cavalcanti tinha um grupo de capangas, mas de âmbito privado, pessoal. O que acontece em 1962, que é a indicação de algo diferenciado, é a formação de grupos de vigilantes, homens que vão pegar em armas para proteger o comércio, muitos deles ligados à classe média, como a Turma do Esculacho", cita José Cláudio.
Ele destaca que muitos desses "playboys armados" se projetam politicamente a partir de sua ação nas milícias, caso, por exemplo de Hydekel de Freitas, genro de Tenório Cavalcanti, que depois se tornaria prefeito de Duque de Caxias e deputado federal.
"Surge daí a ideia da formação de uma estrutura de segurança contra uma ameaça que são os próprios populares da cidade, ao passarem necessidade e fome. É o embrião de uma estrutura apoiada pelo Estado, financiada pelos comerciantes e tendo por trás um apoio político que a mantém", diz o pesquisador, sobre os paralelos com a milícia atual.
Mas os resultados da greve geral não foram apenas negativos. Foi dessa mobilização da classe trabalhadora que nasceram conquistas como o 13º salário.
Para José Claudio, passados 60 anos, as desigualdades sociais do país se intensificaram, com um fator inédito: a pandemia, que penalizou mais as camadas vulneráveis. Ele cita ainda a volta da inflação e da fome, como elementos que permitem um paralelo entre agora e então.
"Mas, naquela época, havia um movimento popular e grupos sindicais muito fortes, que queriam modificações na sociedade. Esses grupos estavam se organizando e se movimentando. Hoje, não há um movimento forte por parte das camadas populares para sanar as desigualdades sociais e uma organização política desses grupos dentro do campo da esquerda", avalia o sociólogo.
"Ao contrário, há um crescimento de grupos de extrema direita. Movimentos que querem manter essa população controlada a partir de discursos conservadores, moralistas e que apoiam o extermínio, como 'bandido bom é bandido morto'."
Para José Cláudio Souza Alves, da UFFRJ, inflação e fome são pontos comuns entre 1962 e 2022, mas contexto político é bastante diferente
O pesquisador observa que as milícias e os grupos de extermínio se mantiveram ao longo da ditadura militar, aprofundando suas relações políticas, econômicas e territoriais.
"Eles começam a se eleger nos anos 1990, como vereadores, prefeitos e deputados estaduais nessa região da Baixada. Até que, a partir de meados dos anos 1990, as milícias vão se configurar como são hoje, uma estrutura mais ampla, com vários mercados de bens e serviços que eles vão monopolizar nas áreas que controlam", diz o professor.
"O poder desses grupos hoje é muito mais expressivo do que aquele grupo da Turma do Esculacho, que pegava em armas. Hoje já superamos isso em muito: são mais de 2 milhões de habitantes atingidos pela milícia somente no Rio de Janeiro, 14 municípios com presença maciça de milicianos, um território de 348 km quadrados onde eles estão atuando e, na cidade do Rio, 57% do território ocupado por grupos criminais está na mão de milícias. Então isso mudou muito e, a meu ver, piorou muito, daquele momento para o atual."
Trata-se da maior onda de saques da história do país, que teve início em Duque de Caxias e se espalhou por toda a Baixada Fluminense.
Em meio à inflação, à fome e a uma greve geral, o quebra-quebra aos gritos de "Queremos comer" e "Saque" deixou ao menos 42 mortos, 700 feridos e mais de 2 mil estabelecimentos atingidos, muitos dos quais nunca se recuperaram.
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"A respeito dos distúrbios, o então prefeito Adolfo David declararia ao Jornal do Brasil que tinha assistido a uma verdadeira batalha, onde mulheres, homens e crianças gritavam que preferiam morrer lutando, a morrer de fome", relatam Rogério Torres e Newton Menezes, no livro Sonegação, Fome, Saque (1987), que relata os acontecimentos de 5 de julho de 1962.
Em resposta ao episódio, comerciantes da Baixada Fluminense passaram a patrocinar grupos armados para proteger suas lojas. Segundo pesquisadores, os grupos conhecidos como Brigada de Defesa da Família Caxiense e Turma do Esculacho marcam a origem das milícias na região.
Em 2019, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro estimava que as milícias atuavam em 14 cidades do Estado do Rio e em 26 bairros da capital, com mais de 2 milhões de pessoas vivendo sob o jugo de paramilitares.
Em agosto de 1961, com apenas sete meses de mandato, Jânio Quadros renunciou à presidência da República em meio a uma crise política, numa tentativa de voltar nos braços do povo, com mais poderes. O tiro saiu pela culatra, e a renúncia foi prontamente aceita pelo Congresso.
O vice-presidente João Goulart estava na China, numa missão oficial armada por Jânio, e militares tentaram impedir a posse dele como presidente. O governador do Rio Grande do Sul, Leonel Brizola, liderou o movimento pela legalidade, conseguindo impedir o golpe.
Mas o Congresso apenas permitiu a posse de Jango, em setembro daquele ano, sob um regime parlamentarista, tendo Tancredo Neves como primeiro-ministro. Foi uma forma de limitar os poderes do político percebido pelos militares e setores da sociedade civil como "subversivo" e "comunista".
"João Goulart assume, mas a estrutura social, econômica e política do país estava numa crise profunda. O próprio Jango expressava todo um movimento crítico a essa realidade. Ele pregava grandes mudanças, com uma base política vinda do trabalhismo e com apoio de movimentos sociais e sindicais, que cresciam muito nessa época", lembra José Cláudio Souza Alves, professor da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFFRJ) e autor do livro Dos barões ao extermínio: Uma história de violência na Baixada Fluminense (2020), em entrevista à BBC News Brasil.
Naquele início dos anos 1960, uma série de fatores contribuíam para uma crise econômica profunda. Entre eles: um endividamento externo crescente, herdado das políticas desenvolvimentistas do governo Juscelino Kubitschek (1956-61); elevados déficits comerciais e redução da capacidade de importação do país; e um aumento da inflação que se agravava desde o final dos anos 1950.
Em 1960, a inflação acumulada foi de 25,4%; no ano seguinte, de 34,7%. Em 1962, o ano do grande saque, a alta de preços chegaria a 50,1% e a 78,4% em 1963.
"Há uma inflação galopante, um aumento acelerado de preços das mercadorias da cesta básica", afirma Marlúcia Santos de Souza, coordenadora geral no Centro de Referência Patrimonial e Histórico de Duque de Caxias (CRPH/DC).
"Começa então uma pressão dos movimentos feministas no Brasil inteiro, incluindo São Paulo e Rio de Janeiro. Os movimentos de mulheres 'Panela Vazia', contra o custo de vida, contra a carestia vão pressionar o governo no sentido de controlar os preços dos alimentos."
Com preços tabelados pela Cofap (Comissão Federal de Abastecimento e Preços), comerciantes retiravam mercadoria das prateleiras, para vendê-las a preços mais altos no mercado paralelo.
"Faltava arroz, pão, feijão, enfim, raro foi o dia em que um ou mais produtos não entraram no 'index' dos sonegadores. Parecia que o país vivia em clima de racionamento de guerra. Como sempre, mais uma vez o governo Jango era responsabilizado pela carestia e pela falta de gêneros", escrevem Torres e Menezes.
Em meio à pressão crescente da sociedade civil, o primeiro-ministro Tancredo Neves renuncia e João Goulart indica San Tiago Dantas para substituí-lo. Dantas tinha o apoio da esquerda do Congresso e do movimento sindical, mas sua indicação foi vetada pelos setores conservadores.
Em resposta ao veto e à indicação para o cargo do conservador Auro de Moura Andrade, o movimento sindical convocou uma greve geral para o dia 5 de julho.
"Frente à fome e à crise econômica que se abatia sobre a Baixada e temerosos de perderem seus empregos, os trabalhadores saíam de madrugada dos bairros mais distantes de Duque de Caxias e se aglomeravam próximos à Praça do Pacificador, no centro do município", escreve José Cláudio Souza Alves, em seu livro, baseado em tese de doutorado defendida no Departamento de Sociologia da USP (Universidade de São Paulo).
Frustradas pela impossibilidade de chegar ao trabalho, cerca de 20 mil pessoas se concentravam nos arredores da praça por volta das 4h30 da manhã.
Foi quando correu a notícia de que, em uma casa comercial próxima, havia feijão, produto que naquele momento tinha praticamente sumido da mesa das famílias.
"Imediatamente após o saque da Casa da Banha, localizada na antiga estrada Rio-Petrópolis, quase ao lado da Galeria Baltazar, foi a vez dos demais estabelecimentos que estavam próximos: Armazém Dragão, Supermercado São Vicente, Mercadinho Nacional", relatam Torres e Menezes.
"A população carregava tudo que encontrava e, dos armazéns, passou aos açougues e padarias. Pelas ruas, homens, mulheres, crianças e velhos transportavam da maneira que podiam os mais diversos artigos: latas de biscoitos, sacos de arroz, feijão, mantas de carne-seca e até mesmo peças inteiras de carne", completam os autores.
Do centro de Caxias, a revolta se espalha por outros municípios da Baixada, como São João do Meriti e Nova Iguaçu. Ao meio-dia, praticamente todo o comércio de alimentos já havia sido saqueado, sendo poupados apenas estabelecimentos que estenderam na fachada a bandeira do Brasil, com faixas de apoio "à legalidade democrática".
Numa padaria na Av. Presidente Vargas, dezenas de pessoas que saíam com produtos saqueados foram atacadas por outras que esperavam do lado de fora.
O dono de uma loja de materiais de construção que, armado, tentou defender uma padaria vizinha, foi morto com um paralelepípedo. Um comerciante português atingiu um menor de idade ao atirar contra a multidão, sendo posteriormente linchado.
Após um jovem de 14 anos ser ferido durante tiroteio, o dono de uma boate foi atacado a pedradas e todos os móveis do estabelecimento empilhados na rua e incendiados.
"Nós ouvimos a quantidade de pessoas que vinham na frente, gritando 'Quebra! Quebra!', e os outros que vinham atrás já saqueando tudo, quebrando todas as portas", recordou a aposentada Maria Concebida, em entrevista sobre suas memórias daquele 5 de julho, ao documentário 1962: O Ano do Saque (2014), de Rodrigo Dutra e Victor Ferreira.
"Onde tivesse uma porta fechada que fosse de comércio, quebrava. E carregava de tudo. Então meu marido [falou]: 'Eu vou entrar, porque nós vamos passar fome'", contou Concebida.
"Nós levamos arroz, feijão e farinha. Era a única coisa mais fácil para carregar. Não roubava as coisas de dentro das casas, não. Era só alimento. No fim, os bebuns começaram a carregar as outras coisas: cachaça, bebida, tudo."
A greve geral e a onda de saques sem precedentes estamparam as capas e páginas internas de todos os jornais na sexta-feira, 6 de julho de 1962.
Sob a manchete "Explosão popular no Estado do Rio: 700 vítimas e dano de 1 bilhão", o Jornal do Brasil reportava: "O Palácio do Ingá [então sede do Governo Fluminense] informou ontem à noite que 42 pessoas morreram, e 700 foram feridas em quatro Municípios do Estado do Rio, onde a população se revoltou e, ganhando as ruas, invadiu um a um todos os armazéns, empórios e mercadinhos, num saque sistemático que causou prejuízos de Cr$ 1 bilhão [1 bilhão de cruzeiros]. (...) A manifestação foi a maior dessa espécie já verificada no País."
José Cláudio, da UFFRJ, conta que muitos estabelecimentos comerciais da Baixada nunca se recuperaram desse episódio.
Num relatório interno, a Associação Comercial e Industrial de Duque de Caxias concluiu que 30% dos comerciantes saqueados não se restabeleceram, 50% voltaram em condições precárias e apenas 20% retornaram em condições normais, cita o professor, em seu livro.
"Os processos de indenização eram complexos, pois eram necessárias regularizações e documentações para acessar. Então os comerciantes mais dinâmicos, mais organizados, mais poderosos conseguiram obter recursos volumosos e reestruturam seus mercados. É quando surgem supermercados como Sendas e Casa da Banha", diz Marlúcia, do CRPH/DC, sobre o processo de concentração do varejo em grandes redes, após a onda de depredação.
Outra consequência do levante popular de 5 de julho foi um reforço na segurança por parte dos comerciantes através de grupos armados.
"O delegado convocou voluntários para o policiamento da cidade. Estes, em grupo de 12, formariam a Brigada de Defesa da Família Caxiense. Surgia assim uma força paramilitar da qual faziam parte muitos jovens que pertenciam a famílias abastadas da cidade", escreve José Cláudio.
Eronides Batista, presidente da Associação Comercial, assim justificou a criação da milícia, em reportagem da revista Fatos & Fotos, de 21 de julho de 1962:
"Milícia é forma de expressão. Não há comando militar. Eles apenas procuram evitar novos saques e perturbações; e até hoje não houve incidentes entre eles e o povo. Nós não somos favoráveis, é evidente, à fome. Mas não somos responsáveis por ela", defendeu Batista.
O professor da UFFRJ avalia que essa milícia nascente é diferente por exemplo, do grupo de Tenório Cavalcanti, político de Caxias conhecido como o "Homem da Capa Preta", vestimenta que usava para esconder a submetralhadora que sempre carregava, chamada Lurdinha.
"Cavalcanti tinha um grupo de capangas, mas de âmbito privado, pessoal. O que acontece em 1962, que é a indicação de algo diferenciado, é a formação de grupos de vigilantes, homens que vão pegar em armas para proteger o comércio, muitos deles ligados à classe média, como a Turma do Esculacho", cita José Cláudio.
Ele destaca que muitos desses "playboys armados" se projetam politicamente a partir de sua ação nas milícias, caso, por exemplo de Hydekel de Freitas, genro de Tenório Cavalcanti, que depois se tornaria prefeito de Duque de Caxias e deputado federal.
"Surge daí a ideia da formação de uma estrutura de segurança contra uma ameaça que são os próprios populares da cidade, ao passarem necessidade e fome. É o embrião de uma estrutura apoiada pelo Estado, financiada pelos comerciantes e tendo por trás um apoio político que a mantém", diz o pesquisador, sobre os paralelos com a milícia atual.
Mas os resultados da greve geral não foram apenas negativos. Foi dessa mobilização da classe trabalhadora que nasceram conquistas como o 13º salário.
Para José Claudio, passados 60 anos, as desigualdades sociais do país se intensificaram, com um fator inédito: a pandemia, que penalizou mais as camadas vulneráveis. Ele cita ainda a volta da inflação e da fome, como elementos que permitem um paralelo entre agora e então.
"Mas, naquela época, havia um movimento popular e grupos sindicais muito fortes, que queriam modificações na sociedade. Esses grupos estavam se organizando e se movimentando. Hoje, não há um movimento forte por parte das camadas populares para sanar as desigualdades sociais e uma organização política desses grupos dentro do campo da esquerda", avalia o sociólogo.
"Ao contrário, há um crescimento de grupos de extrema direita. Movimentos que querem manter essa população controlada a partir de discursos conservadores, moralistas e que apoiam o extermínio, como 'bandido bom é bandido morto'."
Para José Cláudio Souza Alves, da UFFRJ, inflação e fome são pontos comuns entre 1962 e 2022, mas contexto político é bastante diferente
O pesquisador observa que as milícias e os grupos de extermínio se mantiveram ao longo da ditadura militar, aprofundando suas relações políticas, econômicas e territoriais.
"Eles começam a se eleger nos anos 1990, como vereadores, prefeitos e deputados estaduais nessa região da Baixada. Até que, a partir de meados dos anos 1990, as milícias vão se configurar como são hoje, uma estrutura mais ampla, com vários mercados de bens e serviços que eles vão monopolizar nas áreas que controlam", diz o professor.
"O poder desses grupos hoje é muito mais expressivo do que aquele grupo da Turma do Esculacho, que pegava em armas. Hoje já superamos isso em muito: são mais de 2 milhões de habitantes atingidos pela milícia somente no Rio de Janeiro, 14 municípios com presença maciça de milicianos, um território de 348 km quadrados onde eles estão atuando e, na cidade do Rio, 57% do território ocupado por grupos criminais está na mão de milícias. Então isso mudou muito e, a meu ver, piorou muito, daquele momento para o atual."
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