domingo, 21 de outubro de 2018

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Angel Kiyoss (China)

Cuidado, nas urnas a foto é de Platão!

Nas atuais eleições é notável o uso de mentiras e violência. Muito se discutem o voto eletrônico e as informações falsas veiculadas na internet. Os pronunciamentos de Rosa Weber, presidente do TSE, não amainam as suspeitas sobre a eficácia das medidas contra fraudes e manipulações das notícias. Mergulhados na vida recente, imaginamos enfrentar um fenômeno inusitado, a crise letal do sistema democrático. No entanto, desde a Grécia antiga esse modo de governar beira o abismo. Recordo alguns escritos clássicos de Platão, o maior adversário do governo popular. Eles trazem um diagnóstico válido para nossos tempos.

O povo que segue o palpite de pessoas sem técnica na arte política, segundo Sócrates, só pode ser doente. Em vez da prudência nos assuntos de Estado, ele obedece ditames que pioram as mazelas. Como o milagre é efetuado? Pela demagogia nas assembleias onde dominam a retórica e a lisonja . Em vez de rir ou caçoar dos que mentem e adulam a massa, o povo adoentado os aplaude e os elege para os cargos, submete-se à sua propaganda. Como curar um coletivo insensato? O símile do médico surge depressa em Platão. Para conseguir a higidez dos eleitores, pergunta o personagem socrático: “Eu deveria batalhar contra eles para os fazer melhores, como se fosse um médico? Ou me pôr a seu serviço e em ótimas relações com eles lhes agradar?”.

Com a resposta de seu parceiro, de que o mais avisado seria se pôr à disposição dos eleitores, Sócrates afirma: “Então eu devo lisonjeá-los”. E chega a premonição, pelo próprio filósofo, da sua própria sorte: dizer o verdadeiro à massa que deseja ser enganada é seguir para a morte. A cicuta destina-se aos inimigos de toda demagogia. Contra os políticos, Sócrates descreve a si mesmo como integrante do pequeno número dos estadistas (“talvez o único”, diz ele). Quando falo, minhas palavras não se destinam ao agrado, pois digo “o que é melhor, não o prazeroso”.


Vem a célebre comparação do médico e do mestre-cuca, símile que deveria estar na mente de todos os políticos ou eleitores verdadeiramente democráticos. Um médico é acusado pelo cozinheiro em tribunal de crianças. Como poderia ele se defender das acusações feitas pelo cozinheiro? “Crianças, eis aqui um homem que lhes causa muitos males. Ele esfola até os novinhos, corta ou queima, disseca e sufoca de tal modo que vocês não sabem onde se esconder. Ele obriga a tomar remédios amargos, a ter fome e sede! Ele não é como eu, pois sirvo doces para seu regalo!”. Paralisado, o médico não consegue dizer a verdade: “ Tudo faço para a sua saúde!”. O povo criança adoecida só escuta a lisonja, a mentira. A verdade é-lhe insuportável.

Em tempos de fake news, a maior é dizer que elas surgem com a internet. Seu nascimento se deu quando a linguagem, uma técnica que possibilita a sociedade, foi inventada. A fala revela paixões ou dissimula gestos amáveis em atos agressivos. A política não existe sem mentira, propaganda, demagogia. Da Ágora, onde os únicos instrumentos persuasores eram a boca e o corpo, à televisão e ao WhatsApp, passar adiante o falso é tarefa estratégica de qualquer liderança que reúne massas.

A busca de agradar e mentir chega ao ápice com as práticas de Goebbels, Walter Lippmann e o Agitprop soviético. No tremendo A Língua do Terceiro Reich, Viktor Klemperer mostra a locução diabólica do mundo ideologizado. Quando a mentira se universaliza a doença política atinge o seu grau máximo, a corrupção popular. A massa assassina quem diz algo verdadeiro ou exige disciplina ética e respeito à lei. Chegamos à situação descrita na República (488 aC). O navio do Estado, nave dos loucos, assiste à guerra dos marinheiros pelo comando, sem que nenhum deles tenha saber técnico apropriado. “Eles elogiam e tratam como marinheiro sapiente quem contribui para que obtenham o comando, seja persuadindo o dono do navio ou exercendo violência sobre ele, mas ao que não é capaz disso censuram como imprestável”. O “dono do navio” na democracia é o povo. Para os ignaros movidos pela adulação, o verdadeiro piloto seria inútil.

Platão expõe algo insuportável para as almas democráticas. O certo, num Estado saudável, seria o povo pedir para ser governado, jamais o bom governante implorar o controle. O Estado moderno foi edificado pela burocracia. Nela, o saber técnico toma as decisões e disfarça o desprezo pelas urnas com o uso de propaganda e retórica. Um Parlamento ou rei, diz Max Weber, se tornam frágeis se burocratas não lhes fornecem dados sobre economia e administração. É o “segredo do cargo”. Para vencer semelhante “espírito coagulado” (ainda Weber), na passagem do século 19 para o 20 surgem as políticas do carisma, lideranças de um homem ou partido cuja missão é restaurar todas as coisas corrompidas. Chega a hora do jurista Carl Schmitt com o Führer, que, acima da burocracia, decide sobre o direito, o inimigo e a ditadura. Ele é soberano. Do outro lado, o filósofo G. Lukács exibe fé na revolução proletária internacional que destruiria o aparelho burocrático. À direita ou à esquerda, ambos justificaram tiranias. Hoje a máquina administrativa persiste. O mundo soube em data recente: funcionários detentores dos cargos e do segredo atenuaram iniciativas desastrosas do presidente Trump na política internacional. Mas o engenho da burocracia gera o salvador do povo e sua lisonja para obter, como em Atenas, o apoio do eleitor.

Doutrinas autoritárias ou totalitárias aproveitaram a crítica platônica, nela vendo uma senda para o líder e o partido único. Os ataques de Karl Popper (The Open Society) têm boas razões para recusar a advertência platônica. Mas notemos a demagogia no Estado democrático. Quem nega que as próximas eleições indicarão como vitorioso o político que mais cativar, com mentiras e lisonjas, o maior número de eleitores? Nas urnas, a resposta, não temo adiantar, será uma enorme reiteração do que denuncia o pensador perto de quem “toda a filosofia ocidental não passa de uma nota ao pé da página”. Os votos, na sua maioria, serão em prol do cozinheiro. O médico que se cuide.

Brasileiro: cético e com medo

A mais recente pesquisa Percepções da Crise, realizada pela Fundação Getúlio Vargas, mostra uma profunda degradação dos sentimentos dos brasileiros em relação ao País.

Segundo o levantamento, com dados referentes a 2017, nada menos que 68% dos entrevistados manifestaram receio de sair de casa à noite. Quando sete em cada dez pessoas não se sentem seguras nem para dar uma volta no quarteirão depois que anoitece, fica evidente que o Estado não está dando as respostas adequadas a essa demanda tão primária dos cidadãos, base de qualquer contrato social digno do nome. Explica também por que a questão da segurança pública está entre as mais candentes destas eleições.

Outro aspecto abordado pela pesquisa que ajuda a compreender o comportamento dos brasileiros na atual corrida presidencial é a atuação dos líderes políticos do País. A desaprovação desses dirigentes é a mais alta da série histórica – em 2017 atingiu 86%, ante 25% em 2010. Além disso, 82% dos entrevistados disseram não confiar no governo, e apenas 14% declararam acreditar na honestidade das eleições.


Esses números, que não causam surpresa diante da avalanche de escândalos de corrupção nos últimos anos, se traduzem numa ampla renovação do Congresso e no protagonismo, nas disputas estaduais e pela Presidência, de candidatos que se apresentaram como “antissistema”.

O estudo sugere que o desencanto com a política e a aflição em relação à segurança se tornaram mais acentuados quando ficou claro que o avanço social dos últimos anos não era duradouro, pois fora baseado em políticas que ignoraram a degradação da situação fiscal do País – quando não colaboraram diretamente para agravá-la. “Tudo se passa como se a melhoria social observada não fosse acompanhada de mudanças econômicas à altura, que oferecessem sustentação a longo prazo”, diz o texto. Resultado: prometeu-se um paraíso de fartura e harmonia enquanto se gestava, por meio da corrupção e da inépcia administrativa, um Estado incapaz de prover serviços básicos na amplitude alardeada.

O caso da segurança pública é particularmente dramático. Com os homicídios superando os 60 mil por ano, a uma taxa de 30 mortes para cada 100 mil habitantes – 30 vezes mais alta que a da Europa –, não admira que a sensação seja de que se vive uma guerra civil no Brasil. Junto com isso, ganha força a presunção de que há leniência por parte das autoridades na atuação das polícias e da Justiça no combate à criminalidade, acrescida da percepção de que os bandidos estão sob proteção – da lei, dos direitos e dos movimentos sociais –, enquanto o cidadão comum se sente abandonado pelo Estado quando precisa se proteger dos criminosos.

Numa sociedade democrática, a segurança – entendida como proteção à vida e à propriedade – não é uma escolha, mas um dever. Se o cidadão não confia na capacidade do Estado para assegurar a integridade daquilo que lhe é mais caro, nada mais natural que despreze tanto as autoridades desse Estado como o sistema de organização política que as colocou no poder. No limite, é a própria democracia que sai desprestigiada.

A consequência é o aprofundamento da perda de credibilidade da classe política para se apresentar aos cidadãos como capaz de oferecer soluções sensatas para os graves problemas da sociedade. Ganham terreno os líderes boquirrotos que prometem acabar com a criminalidade na base da truculência, com um discurso que, no limite, questiona a própria ideia de democracia e de Estado de Direito.

Antes de fazer juízos desabonadores tanto sobre esses líderes como sobre seus simpatizantes, seria mais produtivo para o País refletir sobre como se chegou a esse estado de coisas, a começar pela dilapidação do Estado pelas corporações. Assim, se estão realmente preocupadas com o futuro, as lideranças que verdadeiramente prezam a democracia devem fomentar um compromisso nacional para, em primeiro lugar, sanear as finanças do Estado – condição indispensável para que as demandas sociais mínimas sejam atendidas e, consequentemente, os brasileiros comecem a recuperar a fé no pacto democrático.

Alta ansiedade

Muita coisa pode ser dita sobre a eleição presidencial que chega daqui a pouco ao seu turno decisivo, mas um dos pouquíssimos pontos em que todos estariam de acordo, talvez o único, é que nunca se viu na história deste país uma disputa política que deixasse tanta gente à beira de um ataque de nervos.

Um ou outro dinossauro que estava vivo nas eleições de Getúlio Vargas, em 1950, Juscelino Kubitschek, em 1955, ou Jânio Quadros, em 1960, certamente dirá:

“Não, não me lembro de ninguém, na época, que tenha tido algum surto de neurastenia tão desesperado por causa de eleição como esses que a gente vê hoje todo santo dia”.

Depois disso, houve sete eleições seguidas para presidente — a que elegeu Fernando Collor, as duas de Fernando Henrique, mais as duas de Lula e, enfim, as duas de Dilma Rous­seff.

Saiu muita faísca, é claro, houve muito bate-boca e xingatório, e muita mãe acabou sendo posta no meio, mas em geral foi mais gritaria de torcida do que briga com fuzil AK-47 no alto do morro.


Nem Dilma foi capaz de gerar a ira radioativa que explode agora do Oiapoque ao Chuí por causa de Jair Bolsonaro e Fernando Had­dad — e olhem que Dilma não é fácil, em matéria de despertar os instintos mais primitivos do eleitorado, como poderia dizer o ex-deputado Roberto Jefferson.

E antes disso, em momentos remotos da nossa história política, será que não teria havido alguma campanha tão enfurecida quanto a atual?

Antes disso, para falar a verdade, não havia eleições que pudessem ser realmente chamadas de eleições; o New York Times ou o Le Monde de hoje jamais aceitariam, por exemplo, a eleição de um Campos Salles ou a de um Washington Luís.

Mais atrás no tempo, então, já se começa a falar no Regente Feijó ou em José Bonifácio — e aí é que ninguém sabe mesmo de absolutamente nada.

O fato é que estamos vivendo momentos sem precedentes de “nervosia” — palavra de uso antigo, mas muito precisa, para descrever essa atmosfera de irritabilidade, impa­ciên­cia e hostilidade geral que se levanta hoje em dia a cada vez que o cidadão diz que vai votar em Bolsonaro ou em Haddad.

Em geral, as brigas de campanha costumam limitar-se aos próprios candidatos.

Hoje emigraram com mala e cuia para o meio de uma boa parte dos eleitores.

É entre eles, e não nos palanques ou “debates” na televisão, que está havendo agora derramamento de sangue — inclusive de sangue mesmo.

Não é preciso, para acender a banana de dinamite, gritar “Mito!” no meio de um ajuntamento petista, ou vir com um “Lula Livre!” na comissão de frente de um bloco bolsonarista.

O desastre, nesta campanha de 2018, pode acontecer no aconchego do próprio lar.

Você diz que vai votar num ou no outro, e dali a pouco está formado um barraco rancoroso em sua casa, com a súbita troca de ofensas, palavras malvadas e ressurreição de velhos ressentimentos, no que deveria ser um churrascão inofensivo de domingo.

Amigos se desentendem feio com velhos amigos.

Há brigas de pais com filhos, de irmãos com irmãos, de mulher com marido.

Familiares rompem relações, colegas de trabalho viram as costas uns para os outros e se fecham nas próprias trincheiras.

Falar de política, em suma, virou um perigo.

Os rompantes mais curiosos de neurose se multiplicam por todos os lados.

Uma senhora foi notada no Facebook fazendo um anúncio aflito: “Hoje eu tive de dar um bloque na minha tia de 78 anos!”.

Uma jornalista-­celebridade de São Paulo denunciou em seu jornal, com a gravidade reservada às notícias de grande impacto, que tinham sido feitas pichações racistas no banheiro de um colégio chique — isso mesmo, rabiscaram a parede do toalete da moçada.

Quem jamais ouviu falar de uma coisa dessas? A dona de um restaurante paulistano teve a ideia de exibir na internet uma foto, tirada junto com a sua equipe, mostrando o dedo do meio para os bolsonaristas.

Amizades intensas formadas nas redes sociais explodem antes que as pessoas tenham tido tempo de se conhecer. Lulistas são chamados de esquerdopatas.

Quem vota em Bolsonaro é fascista — embora 80% dos que fazem essa acusação não tenham a menor ideia do que estão falando.

Não optar nem por um nem por outro, então — não seria uma defesa?

Esqueça.

Nesse caso você será acusado de “isentão”, e muita gente fica irritadíssima quando é chamada de “isentão”.

O ambiente deveria estar bem mais calmo, pois até a véspera da eleição todas as “pesquisas” garantiam a mesma coisa: Bolsonaro perderia para qualquer outro candidato no segundo turno. Mas está dando o contrário.

Aí vira nervosia pura.

Paisagem brasileira

Tropeiros, José Rosário

Aos políticos

A mundialização é a realidade de hoje. O mundo se tornou uma "pequena aldeia global" onde somos condenados a conhecer tudo, onde o que acontece num canto do mundo tem consequências em todo canto. Mas em lugar de facilitar o encontro entre as pessoas por maior justiça para todos, a mundialização, até o momento, tem aumentado a divisão, cria novos conflitos e a miséria se instala em toda parte, inclusive nos países ricos e industrializados. Ricos sempre mais ricos, pobres sempre mais miseráveis.

Isso não pode continuar. Não é justo! Não é humano!

Ajudem a organizar o mundo de forma diferente. Na partilha e não na competitividade. Na solidariedade, não na busca incessante de interesse de uma minoria de privilegiados.

Lembrem-se: a beleza de uma cidade não está na beleza de seus teatros, na grandeza de seus estádios, de seus jardins, de seus monumentos, no esplendor de sua catedral... A beleza de uma cidade se realiza quando todo mundo tem uma casa digna de ser habitada por pessoas humanas, quando há água potável para todos, a saúde garantida para todos, a possibilidade de frequentar a escola para todos, a possibilidade do lazer para todos, para que o desabrochar da dignidade de cada um possa tornar-se uma realidade viva e completa.

Não fiquem fechados em seus confortáveis escritórios ou nas mansões de suas cidades... visitem as pessoas onde elas estão, onde vivem, onde sofrem, nas favelas, nos bairros populares da América Latina, na África e na Ásia.

A fome dos outros condena a civilização dos que não têm fome.
D. Hélder Câmara

Ao contrário da 'políticanalha'

Pobreza não é falta de caráter. É falta de dinheiro
Rutger Bergman

Horário eleitoral é filme de James Bond sem 007

Perde seu tempo quem procura um projeto de governo no horário político da televisão. Em 2014, estava em cartaz a ficção hollywoodiana da chapa Dilma-Temer, patrocinada pelo departamento de propinas da Odebrecht. Na atual temporada, Bolsonaro e Haddad levam ao ar uma espécie de filme de James Bond 100% feito de bandidos —sem um 007 para deter a guerra tecnológica que se alastrou para a trincheira do WhatsApp.

Os planos tenebrosos de Bolsonaro são expostos nos filmetes do PT. Assistindo-os, o brasileiro descobre, por exemplo, que será sugado por uma máquina do tempo. Ela o arrastará para um imenso complexo subterrâneo, situado em algum porão da década de 1970. Ali, hordas de esquerdistas formarão filas defronte de salas de tortura. Dentro delas, monstros com a cara do Brilhante Ustra conduzirão sessões ininterruptas de pancadaria e choques elétricos.

As intenções diabólicas que se escondem atrás de Haddad são denunciadas na propaganda do capitão. As peças revelam a existência de uma sala especial secreta sob os alicerces da Superintendência da Polícia Federal em Curitiba. À frente de um painel eletrônico, Osama bin Lula manipula Haddad por controle remoto. Simultaneamente, o gênio petista do mal reativa o Foro de São Paulo e prepara a conversão do Brasil numa espécie de ‘Cuzuela’, mistura da ditadura de Cuba com o caos autocrático da Venezuela.


Num filme convencional de James Bond, algum solitário 007 irromperia em cena para salvar a humanidade. Com uma pistola implantada num isqueiro, o agente secreto eliminaria os supervilões antes que eles apertassem os botões que farão do Brasil um centro de torturas hipertrofiado ou uma clepto-ditadura. Como 2018 virou um filme sem mocinhos, o medo ganhou novas formas e plataformas.

Em 2014, a marquetagem de João Santana intercalou na televisão notícias falsas sobre rivais e um desfile apoteótico de plantações exuberantes, obras públicas tocadas em ritmo febril, fábricas operando a todo o vapor e povo usufruindo de prosperidade inaudita. Deu em estelionato eleitoral, recessão, desemprego e Michel Temer. O Tribunal Superior Eleitoral fechou os olhos para a lama.

Agora, novamente sob a complacência do TSE, o lodo transborda da TV para o telefone celular. Vem da esquerda e da direita. Na quantidade, a milícia cibernética pró-capitão, anabolizada por um caixa dois empresarial, prevalece sobre a guerrilha companheira. Petistas gritam: “Pega ladrão!”. Bolsonaristas respondem: “Olha quem fala!” E a Polícia Federal, acionada pela Procuradoria, investiga os dois lados.

Podendo fornecer informação, a propaganda política levou ao eleitor mistificação e medo. Desinformado e angustiado, esse eleitor irá às urnas em uma semana. A maioria votará não no candidato preferido, mas no mal menor.

O Brasil não reativará o pau de arara. Tampouco virará uma ‘Cuzuela’. Mas o centro tecnológico de produção de maldades continuará ativo. Restará suportar as consequências do voto e torcer para que a democracia providencie um James Bond em quatro anos. Gente como o cronista Rubem Braga, do tempo em que as geladeiras eram brancas e os telefones pretos, talvez passe a conferir as mensagens que chegam pelo celular com um sentimento de hedionda nostalgia.

Capacidade de governar

Em uma eleição nada parecida com as anteriores, Jair Bolsonaro (PSL) e Fernando Haddad (PT) já falaram mal um do outro até não ter mais jeito. Buscam se mostrar como opostos. E são. Até na forma de divulgar o programa de governo. Bolsonaro libera o dele a conta-gotas, o que é uma prática bastante comum na política de todo o mundo, pois torna possível medir a aceitação ou rejeição de determinada proposta. Haddad apresentou um programa completo, um catatau que aos poucos vai sendo modificado para se adaptar ao pensamento do próprio candidato, visto que o primeiro fora pensado para a eventual candidatura do ex-presidente Lula, como a convocação de uma Assembleia Constituinte.

Como essa é uma eleição carregada de novidades e atipicidades, o brasileiro não deverá ver um debate entre os dois finalistas ao Palácio do Planalto. Pelas redes sociais e pela propaganda no rádio e na TV, os mais de 140 milhões de eleitores tentam entender o que um e outro pensam a respeito de temas que dizem respeito ao cotidiano do cidadão, a exemplo do combate ao desemprego, da melhoria dos serviços públicos de saúde, transporte, segurança, educação e também em relação ao futuro do País. Vamos para a frente ou vamos para trás?


O futuro do País. Essa é uma questão muito importante. Um deles, Bolsonaro ou Haddad, será eleito daqui a oito dias. Terá o escolhido pelas urnas, e essa é a decisão que vale, independentemente de tendências ideológicas, competência para governar o País, pacificar a sociedade? Ou se sentará na cadeira de presidente, no Palácio do Planalto, por um gosto pessoal ou para cumprir uma tarefa partidária?

Eleito em 1989 com uma votação expressiva, Fernando Collor mostrava tanta confiança que, um dia depois da posse, baixou uma medida provisória que confiscou todos os ativos financeiros dos cidadãos que o haviam elegido presidente, o chamado confisco da poupança. Foi uma medida tão drástica e traumática que em 2001 o Congresso aprovou uma emenda constitucional proibindo o presidente da República de editar medida provisória “que vise a detenção ou sequestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro”. Collor assumiu o mandato em 15 de março de 1990. Em 2 de outubro de 1992, sem nenhum apoio no Congresso, e com o processo de impeachment contra ele já instaurado no Senado, foi afastado da Presidência. Em seu lugar assumiu Itamar Franco, que fez um governo de pacificação e salvação nacional.

A construção da governabilidade depende de vários fatores. Um deles é básico: a capacidade que o eleito tem para montar uma equipe de credibilidade, ter o comando sobre ela, mas não centralizar tudo em torno de si, uma base forte no Congresso, diálogo com os outros poderes e com os diversos setores da sociedade. Lula, por exemplo, conseguiu montar uma equipe forte e variada. Ante a desconfiança do mercado buscou no PSDB, com o qual havia disputado o segundo turno da eleição, o seu presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, que construíra a carreira no BankBoston. Seu ministro da Fazenda foi o médico Antonio Palocci, que durante a campanha tivera uma aproximação muito forte com o mercado e com os empresários.

Já Dilma Rousseff foi apresentada como a gestora das gestoras. Sua gestão, no entanto, foi um fracasso. Ela não tinha jogo de cintura para negociar com o Congresso, não gostava de se reunir com os políticos, centralizava tudo e provocava tanto medo físico em alguns de seus ministros que vários preferiam ficar longe do Palácio do Planalto. Como Collor, Dilma sofreu um processo de impeachment e teve o mandato cassado. Talvez a marca maior dela tenha sido a mudança que impôs ao substantivo comum de dois gêneros presidente, trocando-o por presidenta.