domingo, 24 de fevereiro de 2019

Pensamento do Dia


Yes, nós temos laranja

Plantar laranjas sempre foi bom negócio. É verdade que um pé de laranja plantado hoje pode levar até 15 anos para produzir a primeira laranja. Tempo demais. Há pés com apenas um ano de idade, germinados em viveiros e enxertados com sementes de pés de laranja mais velhos, que chegam lá em muito menos tempo. Um jeito ainda mais rápido é contratar pessoas —“laranjas”— que se façam passar por candidatos a vereador, deputado e até senador, injetar-lhes dinheiro público para suas “campanhas” e embolsar de volta esse dinheiro, já que os ditos não estão ali para disputar de verdade. 


Um litro de suco de laranja puro leva 30 laranjas. Mas quem sabe a diferença entre um suco puro e um que leve água? Com meio litro de água e 15 laranjas, faz-se um litro de suco do mesmo jeito e reservam-se as outras 15 para fazer outro litro. As transações financeiras entre a família Bolsonaro e seu ex-motorista Fabrício Queiroz seguem o mesmo princípio. Só que, em lugar de laranjas, Queiroz compra e vende carros usados, transferindo parte dos lucros para um ou outro Bolsonaro e reservando o resto para comprar mais laranjas.

Um pé de laranja deveria ficar de 3 a 4 metros de distância um do outro. Mas, isso, só idealmente. Na prática, pode-se plantá-los lado a lado e ver no que dá. Foi o que fez o laranjeiro Queiroz ao plantar suas mulheres, ex-mulheres, filhas, enteadas e milicianos de sua confiança no mesmo espaço, a Assembleia Legislativa do Rio. O laranjal era tão atulhado que deu na vista e o suco azedou.

E não se deve usar o fundo partidário, que é uma cortesia oficial, para fazer malabarismos com laranjas bichadas. Vide os candidatos-fantasma do hoje ministro do Turismo, Álvaro Antônio. O Ministério Público, a Polícia Federal e a imprensa descobriram e o governo precisa fazer de conta que o abacaxi não é dele.

A laranja é doce, mas pode ter marimbondo no pé.

Diário do hospício em 2019

Dois problemas concretos afetam a saúde. O primeiro é sermos, no futuro, um país com elevada proporção de idosos pobres e doentes. O segundo ocorre no presente: a falta de recursos para o SUS impede o acesso adequado a inovações tecnológicas que curam e salvam, inclusive crianças e jovens. Garantir direitos à saúde é difícil, mas fica inalcançável se houver importação indevida de abacaxis da área criminal para o SUS e abandono do uso de evidências científicas para a formulação de políticas.

O ministro da Saúde denunciou a atuação de milícias em hospitais do Rio de Janeiro e o uso por traficantes de aviões alocados para assistência médica aos indígenas e aprovou uma nova (na verdade, medieval) política de saúde mental. Práticas ilícitas e punitivas de unidades de saúde foram registradas ao longo da história. Hospitais coloniais estiveram interligados a redes de contrabando, e os hospícios e eletrochoques se eternizaram como símbolos de péssimo atendimento. Mas a versão moderna dos crimes que têm como base operacional estabelecimentos de saúde e atendimentos que mutilam e matam é pior do que a original.


Segundo autoridades governamentais, parte das instituições de saúde está fora de controle da ordem jurídica. O ex-ministro da Secretaria-Geral da Presidência revelou ameaças à equipe do Ministério da Saúde e afirmou não as temer: “Quem vai ter peito de peitar a Presidência da República?” A solicitação de informações sobre os contratos para transporte aéreo de pacientes pelo deputado Eduardo Bolsonaro induziu a semelhante entendimento sobre a continuidade de atividades delituosas.

Uma norma para tratar sofrimentos mentais — publicada em 2019, baseada no preconceito e no isolamento — recusa a mobilização de estratégias de redução de danos e restringe a integração social, tornando-se um libelo anticientífico. A revelação sobre a atuação de milícias na saúde surpreendeu até quem achava que já tinha visto de tudo na gestão de unidades públicas. Filas, falta de médicos e medicamentos, ocorrência de negligências e erros médicos constituem dramas mais que suficientes para ocupar a pauta de um mandato de quatro anos.

Suspense policial em hospitais e o gênero terror do cemitério dos vivos (subtítulo do “Diário do hospício”, de Lima Barreto) estavam fora de cartaz há mais de um século. Quem já havia se acostumado a considerar a saúde como área de melhorias contínuas e incrementais ficou atordoado com a volta do estilo bandido e mocinho. Como voltar a discernir o lado do bem, se há equivalência entre indiciados e detratores?

O ministro Mandetta, filiado ao DEM, na primeira visita surpresa que fez ao Hospital de Bonsucesso estava acompanhado por dois parlamentares de seu partido, um deputado federal acusado de comprar votos e um senador cujo patrimônio teria aumentado exponencialmente após ingresso na carreira política. A diretora do hospital indicada por um deputado suplente do MDB, que nomeou mais de 40 pessoas da órbita de influência do padrinho, foi demitida. Nessa ocasião, o ministro da Saúde declarou que militares iriam ocupar cargos nos hospitais, na presença de dois políticos tradicionais, um deputado do PSD, reeleito e processado por envolvimento nas trapaças do Rei Arthur, e outro do PP, que não obteve votos para um novo mandato.

Veemência nos pronunciamentos sobre violações legais não é garantia de bons resultados para a saúde. O ministro escalado para desmontar, em nome do presidente, o esquema parlamentar-paramilitar foi demitido. Nos últimos dez anos, o Hospital de Bonsucesso perdeu mais de 50 leitos, e o da UFRJ, localizado na mesma região, e que chegou a ter mais de 500 leitos, suspendeu internações até 25 de fevereiro deste ano. Jogar todas as mazelas do país na caixa genérica da corrupção e tratar problemas de saúde com medidas repressivas são elementos de um projeto delirante e perverso. Durante a campanha eleitoral, falou-se em carreira de Estado para médicos e expansão das equipes da atenção básica. Essas ideias não saíram do papel. A atenção básica segue precária e a especializada também. O número de unidades e equipes dos centros de atenção psicossocial diminuiu. Polícia e Forças Armadas não substituem o SUS.

Sabedoria bruzundanga

A Constituição da Bruzundanga era sábia no que tocava às condições para elegibilidade do Mandachuva, isto é, o presidente.
Estabelecia que devia unicamente saber ler e escrever; que nunca tivesse mostrado ou procurado mostrar que tinha alguma inteligência; que não tivesse vontade própria; que fosse, enfim, de uma mediocridade total.
Lima Barreto

A reforma, os pobres e as corporações

Como tenho escrito neste espaço, o ajuste fiscal envolve dois tipos de gasto: itens associados ao contrato social da redemocratização —política de valorização do salário mínimo, ajustes no RGPS (Regime Geral de Previdência Social), no BPC (Benefício de Prestação Continuada) e no abono salarial, entre outros—; e itens associados aos grupos de pressão —ajustes nos RPPS (Regimes Próprios de Previdência Social) e subsídios em geral ao setor privado.

Evidentemente, quanto maiores forem os ajustes sobre as corporações e o setor privado, menores precisam ser os ajustes sobre os mais pobres. 

Sem ajuste, teremos inflação, que é jogar o não ajuste sobre os mais pobres. Quem se lembra da hiperinflação da virada dos anos 1980 para os 1990 e de seus impactos sobre os mais pobres sabe do que estou falando.

Nossa experiência nas últimas décadas é que as corporações são mais fortes do que a população.

Vejamos como será no governo Bolsonaro.
 


No jornal Valor Econômico na terça-feira passada, o futuro líder da bancada ruralista, Alceu Moreira, do MDB do Rio Grande do Sul, argumentou ser necessário haver "proteção racional" aos mercados agropecuários, "diante dos gargalos em infraestrutura e do histórico de juros altos no país".
Aplicando a mesma lógica, o setor deveria pagar impostos elevadíssimos para compensar a vantagem do sol e da água o ano todo e do bom relevo do Centro-Oeste.

O argumento do deputado está errado. As vantagens e as desvantagens que cada atividade tem no Brasil são compensadas pelo câmbio, que é flutuante. O cambio flutuante se ajusta à competitividade média das atividades do país. Os juros mais elevados, os custos tributários e trabalhistas maiores e os maiores custos de logísticas são compensados pelo câmbio.

Não faz sentido a agropecuária ter privilégios sobre a indústria e os serviços. Todos os setores precisam dar a sua contribuição para o ajuste fiscal.

Na semana passada, escrevi que o déficit do RGPS urbano foi de R$ 195 bilhões em 2018. Meu leitor atento Ricardo Knudsen notou que esse valor aplica-se ao RGPS todo. 

Se retirarmos as contribuições e os gastos do RGPS rural, o déficit reduz-se para R$ 95 bilhões. Se consideramos a perda de receita pela desoneração da folha, do Simples nacional, da desoneração das entidades filantrópicas e do programa de microempreendedor individual, o déficit em 2018 foi de R$ 42 bilhões.

O RGPS rural apresentou em 2018 déficit de R$ 114 bilhões. Se descontarmos a renúncia fiscal da exportação de bens rurais, o déficit cai para R$ 107 bilhões.

Como escrevi há duas semanas, discutir déficit é ocioso. Dado que gastamos 14,5% do PIB (Produto Interno Bruto) com benefícios previdenciários e assistenciais para a terceira idade, incluindo pensão por morte, e nossa carga tributária é de 32% do PIB, é sempre possível estabelecer na forma de lei vinculações de receitas que superem o gasto previdenciário e tornam o sistema superavitário.
O tema é se faz sentido uma sociedade com as nossas características destinar 14,5% do PIB a esse tipo de gasto.

Exercício que fiz com meu colega Carlos Eduardo Gonçalves exposto no blog do Ibre  indica que gastamos sete pontos percentuais do PIB a mais com previdência do que a norma internacional.

Adicionalmente, mostramos no mesmo exercício que esse excesso de gasto previdenciário reduz a poupança doméstica em cinco pontos percentuais do PIB. Não por coincidência os juros são elevados por aqui.

Samuel Pessôa

Brasil de mudança


O espectro do populismo

O “bolsonarismo” é, por enquanto, apenas uma caricatura mal-ajambrada de movimento populista, desses que de tempos em tempos assombram o Brasil, mas isso não significa que o País possa tranquilizar-se. Ao contrário: a esclerose precoce do governo de Jair Bolsonaro parece ter despertado no presidente o demagogo que ele sempre foi e que se encontrava apenas anestesiado em razão de conveniências políticas. Caso isso se confirme, a recuperação do País, repleta de obstáculos, será seriamente prejudicada, com consequências graves para a solvência do Estado e para a retomada do desenvolvimento. Nem é preciso enfatizar o perigo que um cenário desses representa para a estabilidade do País e mesmo para a ordem social.


São cada vez mais evidentes os sinais de que Bolsonaro, como governante, toma suas decisões não por razões de Estado ou como parte de alguma estratégia política de longo prazo, e sim estimulado pela perspectiva do aplauso fácil e imediato, este que brota de suas fanáticas hostes nas redes sociais – meio de comunicação caótico e irresponsável que Bolsonaro escolheu para se dirigir à sociedade, a título de estabelecer uma “relação direta entre o eleitor e seus representantes”, como disse em seu discurso ao ser diplomado como presidente. Desse modo, Bolsonaro equipara os atos de governo a tuítes tolos e a “memes” engraçadinhos. Nem é preciso mencionar os riscos institucionais que essa prática acarreta – basta lembrar a recente confusão criada pelo presidente e por um de seus filhos no Twitter a respeito de um dos ministros de Bolsonaro, demitido como consequência do imbróglio.

Para os propósitos de Bolsonaro, no entanto, as redes sociais são o meio ideal para confundir a opinião pública, criando uma realidade paralela na qual a gritante falta de traquejo do presidente para o exercício de tão importante cargo seja convertida em qualidade de “homem simples”. Nesse mundo bolsonarista, a falta de um programa claro de governo, em que haja firme compromisso com o progresso consistente e sadio do País, é compensada pela espetacularização das decisões do presidente e de seus ministros. Foi com esse espírito demagógico, por exemplo, que Bolsonaro anunciou recentemente nas redes sociais uma devassa no Ministério da Educação. “Daremos início à Lava Jato da Educação!”, exclamou o presidente no Twitter, para compreensível delírio dos bolsonaristas mais animados, que acham que todos os problemas do País se resumem à corrupção.

A ninguém, contudo, é dado o direito de surpreender-se. Em 1999, este jornal publicou uma entrevista com Bolsonaro na qual o então deputado federal declarou sua admiração por Hugo Chávez, então recém-eleito presidente da Venezuela, dizendo que “gostaria muito que sua filosofia chegasse ao Brasil”. Chávez conquistara o poder denunciando a hegemonia das oligarquias políticas, a degradação dos partidos, a corrupção desenfreada e a falência das instituições – e sobre essas bases ideológicas construiu uma ditadura populista tão sólida que sobreviveu a ele.

Não se pretende, com esse paralelo, sugerir que Bolsonaro possa reencarnar Chávez, mas é importante observar que o presidente brasileiro se elegeu com um discurso semelhante ao do falecido caudilho venezuelano e apresenta a mesma preocupante falta de compromisso com as liberdades democráticas. Seu histórico de defesa da ditadura militar e de supressão de direitos em nome de uma certa “ordem” fala por si, mas é preciso acrescentar ainda o fato de que Bolsonaro pretende resumir seu governo a uma luta do “bem” contra o “mal” – situação que inviabiliza a democracia. Foi assim que, recentemente – pelo Twitter, é claro –, Bolsonaro avisou que haverá “dificuldade” para “tentar consertar tudo isso”, pois “o sistema não desistirá”. Esse “sistema”, presume-se, engloba todos aqueles que discordam de Bolsonaro.

Assim, contando ainda com formidável concentração de poder político, econômico e cultural, resultado de uma vitória eleitoral acachapante e da ausência de uma oposição digna do nome, Bolsonaro e seu entorno parecem ter decidido acelerar sua marcha populista – receita certa para o desastre.

Como o glitter usado no Carnaval polui os oceanos

O Carnaval está chegando e, com ele, os inúmeros tutoriais e inspirações de maquiagens para se usar nos dias de festa. Em comum, eles têm dois elementos fundamentais: criatividade e muito glitter.

Utilizado em cosméticos e maquiagens, o glitter tem uso intenso durante as comemorações carnavalescas e é fundamental para muitos foliões, pois eleva a cor e o brilho das fantasias. Mas tem um lado negativo: eleva também a poluição dos oceanos com microplásticos.

Feito de alumínio e plástico cortado em milímetros, o glitter é classificado como um microplástico por suas dimensões inferiores a 5mm de diâmetro. Por serem minúsculos, os microplásticos não são filtrados no tratamento de esgoto e, assim, chegam a rios e oceanos, onde são incorporados pela flora e ingeridos pela fauna.

"Quando o folião se lava, esse material vai para a rede de esgoto. Um agravante é que muitas cidades brasileiras não tratam seu esgoto, então isso é lançado diretamente nos corpos de água, o que afeta a biota desde os corpos de água doce até o destino final, que são os oceanos", diz a professora Cassiana Montagner, do Instituto de Química da Unicamp.

No ambiente aquático, o maior problema é a possibilidade de ingestão pelos seres vivos que nele habitam. Além de o microplástico substituir um alimento sem oferecer em troca qualquer valor alimentício, o que gera desnutrição, ele oferece risco de obstrução das vias e alteração das funções do corpo. Quanto menor a partícula, maior a chance de ela ser ingerida por organismos menores, ampliando o alcance do problema.

"No caso do mar, o microplástico é ingerido pelo plâncton, que é ingerido pelos peixes, e acaba indo parar na alimentação humana. É a mesma coisa se considerarmos o microplástico em ambiente terrestre: de alguma maneira vai parar na comida das pessoas", diz o biólogo Cláudio Gonçalves Tiago, do Centro de Biologia Marinha da USP.

Novas linhas de pesquisas estudam também os possíveis riscos químicos associados ao glitter. Para o biólogo, um deles são os produtos químicos usados no glitter assim como os do próprio do plástico, que podem ser liberados na água.

Outra frente investiga o potencial desses plásticos de, ao entrar nos sistemas de água doce e irem parar nos oceanos, funcionarem como vetores de transporte de outros contaminantes, causando um dano químico maior. Segundo Montagner, os estudos existentes não são conclusivos.

Por se espalharem com facilidade e dada a abundância de material plástico, os microplásticos estão amplamente disseminados. Há evidências da presença deles em diversos ambientes naturais e em produtos para o consumo humano, como alimentos e bebidas. Os estudos sobre impactos para a saúde humana ainda são iniciais. No Brasil, sua presença está concentrada nas regiões costeiras do Nordeste e do Sudeste.

Diante dos riscos ambientais, fabricantes de glitter têm investido em versões ambientais, e essa tendência também chegou ao Brasil. É possível encontrar nas redes sociais, em especial no Instagram, uma vasta gama de marcas dedicadas a alternativas biodegradáveis e de cosméticos naturais que expandiram sua linha de produtos.

Em lugar de plástico, o glitter biodegradável tem componentes naturais, como celulose, óleos, ceras, agar agar, materiais alimentícios e corantes naturais.

Com preços e composições variáveis, o bioglitter é feito para deixar rastros mínimos no meio ambiente depois do uso, ao contrário do produto tradicional, que demora centenas de anos para se decompor.

Uma alternativa mais barata, para quem não pode pagar pelo bioglitter, é fazê-lo em casa. Estão disponíveis na internet vídeos no estilo "faça você mesmo" que ensinam a produzir versões caseiras.

Tiago destaca que um glitter biodegradável eficiente deve se dissolver na água sem gerar produtos químicos indesejáveis ou matéria orgânica que, em quantidades exageradas, pode causar prejuízos aos cursos d'água, como o amido. "Tudo tem que ser pensado nos termos da grande população humana que nós temos e que utilizam esses produtos."

Uma outra sugestão que circula pela internet para evitar que o glitter chegue aos oceanos é removê-lo com lenços umedecidos. A eficácia da proposta depende, porém, de os lenços serem descartados corretamente. Na prática, o biólogo é cético. "Tirar com o lenço evita chegar ao oceano amanhã, mas vai chegar daqui a 150 anos", diz.

Na opinião do professor de engenharia oceânica Paulo Cesar Rosman, da UFRJ, jogar um lenço umedecido cheio de glitter no vaso sanitário é o pior dos cenários, diante da precariedade de tratamento de esgoto e saneamento no Brasil.
Deutsche Welle

Sem base aliada, Bolsonaro tem de deixar o palanque ou vai naufragar no Congresso

Desde a redemocratização, nenhum partido conseguiu chegar perto de controlar sozinho a maioria do parlamento. Ainda assim, os ex-presidentes Fernando Henrique, Lula e Dilma Rousseff tiveram durante boa parte de seus governos bases aliadas que lhes asseguraram inclusive a aprovação incontáveis mudanças constitucionais.

Deputados federais e senadores chegaram ao Congresso pelo mesmo voto popular que instalou Jair Bolsonaro no Planalto. A legitimidade de ambos é, portanto, a mesma. O problema é que o partido do presidente saiu das urnas com apenas 10% da Câmara e 5% do Senado – ou seja, quase nada. Ainda assim, o presidente negou-se nos últimos três meses e meio a sentar para conversar com as demais legendas.


Há um motivo aparentemente nobre e outro claramente vulgar para tal escolha: o primeiro, a promessa de não aceitar indicações políticas para evitar que se repitam casos de corrupção; o segundo, a pouca disposição do novo presidente para abrir-se ao diálogo e ceder em posições radicais.

A negociação às claras, inclusive de ministérios, é legítima e ocorre cotidianamente em países desenvolvidos. O princípio é simples: cabe ao governo refletir opiniões da maioria da sociedade, cedendo e dialogando com seus representares legitimamente escolhidos. O problema das coalizões feitas nas últimas décadas no Brasil não foi exatamente a entrega dos nacos de poder, mas o uso que foi feito deles.
Nas três primeiras semanas de funcionamento do Congresso, a atrofia da base presidencial ficou evidente. Na Câmara, um decreto que tratava de sigilo de documentos foi derrubado com mais de 350 votos contra o governo, enquanto no Senado o ex-ministro Gustavo Bebianno acabou convidado a depor.

Ainda que a agenda econômica tenha apoio mesmo entre parlamentares que não cogitam se aproximar do governo, é imperativo que o Planalto monte uma base que permita o andamento de sua pauta congressual. Para tal, será inevitável deixar de lado o palanque eleitoral e abrir-se ao diálogo.
Paulo Celso Pereira

Imagem do Dia


Os 'çábops' uniram os marajás aos miseráveis

Não deu outra. Os “çábios” que conceberam o projeto de reforma da Previdência descobriram um jeito de entregar aos marajás a bandeira da defesa dos miseráveis. Fizeram isso ao propor a tunga do Benefício de Prestação Continuada, que dá um salário mínimo (R$ 998) aos miseráveis que têm mais de 65 anos. O projeto é engenhoso. Dá R$ 400 ao miserável a partir dos 60 anos, o que é um alívio para quem recebe, no máximo, R$ 371 pelo Bolsa Família. Com a outra mão querem tomar pelo menos R$ 598 mensais dos miseráveis que têm mais de 65 anos. Eles só terão direito aos R$ 998 se, e quando, chegarem aos 70 anos.

Se o conserto do rombo da Previdência precisa tungar um benefício pago aos miseráveis que têm entre 65 e 70 anos, então é melhor devolver o Brasil a Portugal. O ministro Paulo Guedes produziu um projeto racional e conseguiu apresentá-lo de forma competente. Na essência, podou privilégios. Essas virtudes levam à estupefação diante da tunga de sexagenários miseráveis. Ela só serve para soldar uma aliança maligna e hipócrita. O marajá que acumula privilégios ganha o direito de combater as reformas apresentando-se como defensor dos pobres e dos oprimidos.

Está entendido que o capitão reconheceu que errou ao combater a reforma proposta por Michel Temer, mas se as pessoas podem mudar de opinião, não podem mudar os fatos. Quando ele estava do outro lado da trincheira, lembrava que a expectativa de vida no Piauí “estava na casa dos 69 anos, quando você bota 65, você convida a oposição a fazer sua proposta e melar esse projeto”. Bingo. Os “çábios” fizeram isso, pois tomando-se a expectativa de vida do Piauí, seus miseráveis, que hoje recebem R$ 998, perderão o benefício aos 65 e irão para o outro mundo antes de terem direito a receber o que recebem hoje.

Tosa

O repórter Ancelmo Gois revelou que, num fim de semana, o ministro Paulo Guedes andou pelo Leblon e cortou o cabelo no salão Care, em Ipanema. Esses salões são os únicos lugares onde a turma do andar de cima paga para ganhar cortes. No Care uma tosa custa de R$ 130 a R$ 250. Não é o mais caro, pois há salão que cobra R$ 320.

Para a turma do regime geral da Previdência, um corte de cabelo vai de uns R$ 15 a R$ 30.

ESTÃO CORROMPENDO A MORALIDADE

Duas operações de combate à corrupção produziram episódios que corrompem a luta pela moralidade. Num, a turma da Lava-Jato do Paraná recorreu a uma gambiarra destinada a contornar a propensão libertadora do ministro Gilmar Mendes e prendeu o notório Paulo Vieira de Souza, o Paulo Preto da caixinha do PSDB paulista. No outro, prenderam e soltaram o presidente da Confederação Nacional da Indústria por causa de espetáculos teatrais mal explicados. O doutor Paulo Preto já foi preso duas vezes. Ameaçou os cúmplices com a possibilidade de romper seu silêncio, e documentos suíços mostram que amealhou milhões de dólares.

Para quem olha o caso de fora, ele não deveria estar solto, mas está.

Com barulho coreografado, o Ministério Público revelou que Paulo Preto tinha um bunker onde guardava R$ 100 milhões. Nas palavras do procurador Roberson Pozzobon, “talvez o bunker de Paulo Preto tivesse o dobro do dinheiro do bunker do Geddel”: “Isso é um escárnio”.

Para quem gosta de espetáculo, seria uma prisão exemplar, investigação primorosa. Teve milhões, bunker ,e até dinheiro no varal para não mofar. Era prato enfeitado, porém requentado.

A acusação veio da delação do doleiro Adir Assad e é de 2017. A cifra de R$ 100 milhões também é de 2017. E o bunker? “Talvez”, pois os endereços dados por Assad há dois anos não foram investigados.

São muitos os escárnios que acompanham o caso de Paulo Preto. Seria ótimo se o Ministério Público encarcerador brigasse publicamente com os magistrados libertadores, mas é péssimo que se faça isso com espetáculos de manipulação do distinto público.

Em outro episódio prenderam Robson Andrade, presidente da CNI, porque acharam o que parece ser uma roubalheira em contratos de eventos teatrais em Pernambuco. Se investigação de malfeitorias praticadas com dinheiro do Sistema S pretende girar em torno de festivais de bonecos é melhor economizar o dinheiro dessas operações espetaculares.

ERRO

Estava errada a informação que saiu aqui, contando que os sapos, quando colocados numa panela com água aquecida lentamente, não percebem o calor e deixam-se ferver. Trata-se de pura lenda.

Quem se deixa ferver ou fritar são os ministros. Muitos sapos são feios, mas nenhum é bobo.

De onde saem as balas que matam na região mais perigosa do planeta?

2 de novembro, cinco da manhã, Santo Domingo, capital de República Dominicana. Um grupo de cidadãos locais começa a discutir com outro composto de venezuelanos em um restaurante de fast food. A discussão sobe de tom, todos os envolvidos carregam armas e começam a disparar. Um dos venezuelanos acaba morto. Um membro do grupo de dominicanos e uma garota cliente do estabelecimento ficam feridos.

Este evento noticiado por jornais locais reflete quase todas as características que cercam um assassinato por bala neste país localizado na região mais violenta do planeta: a posse maciça de armas, balas perdidas, brigas entre homens na madrugada. O pesquisador espanhol Manuel Martínez e o venezuelano Alfredo Malaret ficaram três semanas no laboratório de balística forense da polícia da República Dominicana e analisaram o conteúdo de milhares de envelopes. Neles encontraram cartuchos e relatórios de histórias: desavença no trânsito que terminou em tiroteio, a bala perdida que matou uma criança, a luta que terminou com a morte de um segurança, o conflito que passou do limite num bar.


Eles estudaram 4.123 balas coletadas em cenas de crimes e aduanas no país em uma investigação de Unlirec (Centro Regional das Nações Unidas para a Paz, o Desarmamento e o Desenvolvimento na América Latina e no Caribe). O objetivo era analisar a munição empregada na área com maior número de homicídios no mundo por habitante e responder a várias perguntas: como se limitar o fluxo de balas ilegais? Quais políticas de segurança são mais eficazes? "Até agora, não havia um perfil deste tipo na região, onde há uma alta incidência de violência armada", resume Martínez.

"Uma das conclusões mais significativas foi que o nível de organização dos homicídios era muito baixo. Quando se pensa na violência nesta parte do mundo, vêm à cabeça gangues e tráfico de drogas, mas a verdade é que a maior parte ocorre entre homens de 20 a 34 anos, tarde da noite, com a presença de álcool", explica Martínez, que agora trabalha na Unidir (Instituto das Nações Unidas para Investigação sobre Desarmamento). Segundo este estudo, 98% dos que cometeram o crime eram homens e estes também representam 87% das vítimas. Um total de 63% dos crimes se deram entre sete da noite e sete da manhã.

Martínez e Malaret mencionam a "masculinidade tóxica" como a causa do alto nível de homicídios. "Reduzir o acesso a armas de fogo onde há consumo de álcool deveria ser uma prioridade nacional", enfatizam, e aconselham as autoridades a programarem uma campanha de educação voltada para os homens. Karelia Villa é especialista sênior do Banco Interamericano de Desenvolvimento na Modernização do Estado e da Segurança Pública: "É essencial implementar programas que tenham o respaldo de evidências científicas. No Caribe, vários planos estão sendo desenvolvidos nas escolas e também com jovens fora da escola para promover a resiliência à violência nos jovens. Nós os ajudamos por meio de atividades esportivas ou culturais para que tenham uma rota de fuga, e contamos com grande apoio da comunidade”.

Na América Latina e no Caribe vive 9% da população mundial, mas se acumulam 32% das mortes violentas do planeta, de acordo com o estudo sobre homicídios em geral preparado pela agência da ONU contra o crime e as drogas. Dados do Instituto Igarapé mostram que armas de fogo estavam presentes em 67% dos casos na América Central, 53% na América do Sul e 51% no Caribe. "A luta contra a violência tem sido uma prioridade na região desde os anos 1990 e se intensificou em 2011 quando novos focos de criminalidade foram detectados, especialmente na América Central e em algumas partes da Colômbia", diz Karelia Villa.

Os autores do estudo se concentraram na República Dominicana, porque atende a muitos dos requisitos necessários para a compreensão da questão da munição na região. "Desde 2006, o Governo obriga a marcar as balas, quando entram no país, com o local de origem e o lote, que indica a data. Isso não se aplica àqueles usadas pela polícia e pelos militares, somente aos civis." Graças a esse sistema, os pesquisadores descobriram que apenas 26% dos cartuchos encontrados nos assassinatos estavam registrados corretamente. "Os demais conseguiram entrar ilegalmente, ou antes que a legislação passasse a vigorar. Ou saíram do arsenal das forças de segurança."

Os principais países exportadores de munição foram os Estados Unidos, o Brasil e o México. O caso do primeiro país não surpreendeu muito os investigadores, mas eles ficaram impressionados com a presença constante de balas da mexicana Águila e da brasileira CBC. "Será preciso analisar a que se deve esse grau de penetração. Quando apresentamos os resultados deste estudo na ONU, os representantes da República Dominicana e do México concordaram em cooperar para estudá-los." No total, 96% dos invólucros pertenciam ao calibre de nove milímetros, que os especialistas consideram que, dado o grau de dano que pode causar, "não deveria ser tão acessível à população". Outro grande problema são as balas perdidas, especialmente em uma área onde a má qualidade dos materiais de construção facilita a passagem dos tiros através das paredes.

Esta pesquisa é apresentada como um primeiro passo para acabar com um dos principais problemas na América Latina e no Caribe. Os autores definem as mortes por arma de fogo como "destruição em massa em câmera lenta". "Existe um mundo de possibilidades que impediria um oceano de sofrimento humano desnecessário e começaria a pagar as dívidas àqueles cujas vidas foram roubadas por balas”.

Índio virou latifundiário

Tem muita gente que critica o grande latifundiário, mas hoje o maior latifundiário do País é o índio. Não podemos transformar o índio em mega-latifundiário
Luiz Antonio Nabhan Garcia, secretário especial de Assuntos Fundiários e Presidente licenciado da União Democrática Ruralista (UDR)

Esperando o Brasil progredir

‘ Godot?”

— Não. Esperando o Brasil.

Tem gente que morreu esperando o Brasil progredir. Eu vivi isso quando aconteceu a bossa nova, houve a inauguração de Brasília; Jorge Amado, Guimarães Rosa estavam presentes, e os antropólogos da minha geração iam derrotar os poderosos e salvar os índios e os pobres. Hoje, eu me cansei de esperar.

O Brasil cansa, diz um amigo.

Mas esperar é a esperança que não pode morrer.

Mas como contemplar o “Brasil” como uma coisa se nós somos parte dessa coisa? Se nós contribuímos para o seu atraso ou progresso?


Quando falamos da sociedade, que são organismos vivos em que nascemos e por suposto queremos bem como pátria, nós nos dividimos. Um lado nosso fala como se fosse de fora; um outro se angustia e confunde porque faz o Brasil. Como cuspir no prato que, bem ou mal, se come? Não é fácil discutir uma relação visceral com a terra na qual viemos ao mundo e entramos no palco da vida e, ao mesmo tempo, ficar esperando que uma “casta” fabricada e eleita por nós a “conserte”, remende ou embrulhe?

Quem é mais velho não esperava testemunhar essa trágica onda de roubalheiras, de descasos, de traições, de mistificações, de irresponsabilidades e, hoje, de primitivismo. Temos uma aguda consciência de que o tempo é curto para ver crescimento, otimismo e vigor. Leio que o ajuste da Previdência levará 12 anos. Será que um cara de 80 vai viver mais 12 anos?

Discernir o significado de uma espera é importante. Escravos não esperavam, inferiores esperam muito, inimigos são mal (ou jamais) atendidos, e os estruturalmente fracos e marginais — os “fodidos” ou cidadãos em geral — simplesmente não existem. A casta de senhores engravatados que nos governa, com seus impecáveis criados e carruagens pretas, sabe que o povo deve esperar pelas proclamações e leis feitas nos palácios e palanques pelos mandões ou “supremos”. Só faltamos chamar o próprio Deus para decidir questões que o bom senso resolveria com um sentido hábil de tempo — como a questão fiscal e seus dramáticos penduricalhos que podem levar à insolvência do Brasil como nação.

Parentes e amigos são atendidos na hora. Não entram em fila, como Alberto Junqueira e eu estudamos no livro “Fila e democracia” (Rocco, 2017). Ali demonstramos que a espera, mesmo temporária, demarca inferioridade sociopolítica. O “esperar sentado” revela a distância entre os segmentos que constituem a alma do Brasil.

Nos primeiros anos do Cristianismo, viveu em Roma Lúcio Aneu Sêneca, filósofo e pensador. Foi tutor e conselheiro de Nero, que depois ordenou, tal como ocorreu com Sócrates, o seu suicídio.

Ocupando muitas posições no topo do sistema político-cultural, tinha plena consciência de que todos somos um indivíduo, mas muitas pessoas. Temos muitas máscaras e ocupamos vários papéis cujas matrizes podem ser contraditórias, pois demandam lealdades diversas e decisões diferenciadas.

Num texto célebre, Sêneca ensina uma lição:

“Duas pessoas, diz ele, se combinam num comandante: uma ele compartilha com todos os outros passageiros porque também ele é um passageiro; a outra é peculiar a ele porque ele é o piloto. Uma tempestade o atinge como passageiro, mas não o atinge enquanto piloto”.

Entre ser presidente, médico, prefeito, professor, contador, gerente, vendedor, juiz, motorista, militar e pai, onde ficamos quando sabemos que os interesses e os fins desses papéis são, em certas circunstâncias, antagônicos? Se o aluno merece um zero, mas é meu filho, ele deve ganhar um sete? Qual é o papel que deve englobar o conflito potencial de papéis da casa e da rua nos regimes democráticos?

É uma densa ironia eleger um candidato autoproclamado republicano para vê-lo governando aristocraticamente, sendo persistentemente embaraçado por seus príncipes. Tal como os velhos caciques e raposas que ele se comprometeu solenemente a não imitar.