sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

As primeiras vítimas

O populista é por definição e conduta um ser egoísta, exibicionista e algo delirante. Desleal, dedica-se à arte de fazer as vezes de herói com o pescoço alheio. Tem especial talento para criar distrações sem efeito prático, mas bastante eficazes no quesito espetáculo.

A confusão armada pelo presidente Jair Bolsonaro com a fanfarronada sobre o preço dos combustíveis é um exemplo típico: ele sabe que é impossível “zerar” a cobrança de impostos, mas lança o desafio a fim de posar de benfeitor, deixando aos governadores o papel de predadores do contribuinte.

Esse tipo de governante gosta de atuar pela lógica do confronto, mas corre de situações em que as bolas divididas possam lhe render prejuízos eleitorais, ainda que as questões sejam absolutamente relevantes do ponto de vista do coletivo.


Luiz Inácio da Silva abandonou as mudanças na Previdência; esqueceu-se do discurso feito dias após a posse em prol da modernização das leis trabalhistas, com destaque para o funcionamento dos sindicatos; passou ao largo do sistema de tributos; e arquivou toda e qualquer reforma assim que percebeu o tamanho do contraditório a ser enfrentado.

Bolsonaro faz um pouco diferente, até porque, ao contrário de Lula, a unanimidade não está nos planos dele. Não por desejo, mas por impossibilidade. Joga, então, com o acirramento dos atritos de maneira seletiva, para consolidar a fidelidade de uma parcela do público, mas preserva margem de manobra quando a coisa tem dimensões mais amplas.

É o caso das reformas na estrutura do Estado. Foi assim na Previdência, quando deixou o serviço para o Congresso e conseguiu faturar nas duas pontas: as hesitações serviram à defesa de corporações de seu interesse e o resultado lhe permitiu pôr no currículo a aprovação de uma reforma travada havia anos.

Agora o presidente tenta lance semelhante com a proposta de alteração nas regras do funcionalismo público. Faz que vai, mas não vai. Provavelmente esperando contar com o senso de responsabilidade do Parlamento. A dita reforma administrativa estava pronta para ser mandada ao Legislativo no fim do ano passado. Bolsonaro suspendeu o envio alegadamente por receio de que se reproduzissem aqui as manifestações de rua então ocorridas no Chile.

Os farrapos da desculpa já eram evidentes, mas ficaram mais nítidos quando o adiamento voltou a ser cogitado por ausência de “clima político” e existência do risco de a discussão da reforma render prejuízos eleitorais na municipal de outubro. Ora, mas não era Bolsonaro que não iria se envolver em eleições, estando até decidido a demitir ministros que se envolvessem?

A verdade é que não há interesse real da parte de governantes de perfil populista de combater privilégios (no valor dos salários, nas aposentadorias, na estabilidade, nos benefícios funcionais e nas avaliações de desempenho) em searas com forte potencial de reação e nós complicados de ser desatados.

Donde Jair Bolsonaro prefere deixar a questão ao encargo exclusivo do Congresso, até para ter a quem responsabilizar caso a reforma não prospere. E não apenas a administrativa. Será assim também no caso da tributária.

Decadência

E aí, o título evocou os sete pecados capitais? Não é desse tipo de decadência que se trata. A decadência sobre a qual escrevo é a definida pelo historiador e crítico cultural Jacques Barzun, falecido em 2012. Sua obra magna — Da alvorada à decadência: a história da cultura ocidental de 1500 aos nossos dias — foi publicada em 2000, quando o autor tinha 93 anos. Lembrei-me dela ao ler, no domingo passado, o ensaio de Ross Douthat no New York Times sobre seu novo livro, intitulado The decadent society (A sociedade decadente). Tanto Barzun quanto Douthat apresentam contraposições bem elaboradas à obra de Steven Pinker, O novo Iluminismo, publicada em 2018. Nesse livro, o argumento central de Pinker é que os intelectuais tendem ao pessimismo como uma espécie de atrator cognitivo — prefiro atrator ao termo mais comum, viés —, o que os leva a ignorar os progressos conquistados em diversas áreas nas últimas décadas. Tenho inúmeras críticas a essa obra específica de Pinker, mas as deixarei para outro artigo.

Voltando a Barzun. Sua definição de decadência não é moral ou estética. Sobre o termo, ele explica: “As artes como expressão da vida parecem ter sido exauridas, os estágios de desenvolvimento já foram ultrapassados. Instituições funcionam dolorosamente. A repetição e a frustração são o resultado intolerável dessa situação (...) Quando as pessoas aceitam a futilidade e o absurdo como estados normais, a cultura está decadente”. Douthat elabora: sociedades lideradas por gente mesquinha e arrogante não estão necessariamente em decadência, mas sociedades que não mais reconhecem no conhecimento e na sabedoria as qualidades para seus líderes podem, sim, estar decadentes.

A decadência nem sempre leva à catástrofe, pois sociedades decadentes definidas no sentido que Barzun empresta ao termo podem perdurar por anos a fio, como revelam diversos casos históricos. Nesse sentido, a decadência é perfeitamente compatível com alguma noção de “progresso” — a tecnologia que permite maior conforto e uma sensação de ganho de eficiência é a mesma tecnologia por meio da qual nos engalfinhamos em moção perpétua nas redes sociais. Ou seja, a decadência é mais entropia do que ruptura, mais o café que esfria na mesa do que o leite derramado.


Na ciência social, campo em que incluo a economia em todas as suas vertentes, inclusive a tecnicista, há sinais de decadência. Quem são os grandes pensadores da atualidade que nos apresentam maneiras novas de refletir sobre nossos problemas? Não digo que eles não existam, mas, quando procuro referências para compreender o ressurgimento do nacionalismo, a normalização do polo mais extremado da extrema-direita, a aceitação de injustiças sociais sem a turbulência que marcou o século XX, esbarro nas mesmas pessoas extraordinárias.

Hannah Arendt, Albert Hirschman, o próprio Barzun, além de tantos outros que viveram profundamente o século passado, não o atual. O caso das injustiças sociais é especialmente interessante: nos anos 1960, os movimentos pelos direitos civis se espalharam, tomando as ruas mundo afora. Hoje o que se vê é uma mobilização virtual, descontente, sim, mas, ao mesmo tempo, agressiva e desalentada, espantosamente conivente com as estruturas sociais que reproduzem a desigualdade e que não haverão de mudar sem que se desgrude da incandescência da telinha.

Entendo que se deva lançar mão deles, também. Como escrevi em um artigo para este espaço na semana passada, linhas foram cruzadas, a porteira foi aberta e a boiada já passou. A presunção de que as coisas cedo ou tarde voltarão a seu lugar e a ordem se restabelecerá é, em si, uma atitude decadente.

A decadência, como definida por Barzun, é confortável para uns e bastante penosa para outros. Para os que dependem dos minguantes programas sociais, para os que estão parados no túnel de Hirschman esperando por uma mobilidade social que desapareceu, para os jovens que precisam de mais do que a proficiência mínima em áreas fundamentais da educação, para os que vivem nas comunidades onde reinam as milícias e os crimes cometidos pela polícia, para todos os diretamente afetados por ciclos climáticos alterados pelo descaso ela certamente é penosa. Esses grupos influenciam e são influenciados pelo que chamamos de economia. Ignorar essa realidade é irresponsável e de uma profunda decadência intelectual, decadência que apenas haverá de prolongar a convergência para a entropia que hoje ocorre no Brasil e no mundo. Café em temperatura ambiente, afinal, é absolutamente insuportável.
Monica de Bolle

Governos não são eleitos para insultar educadores

A publicação de uma lista da Secretaria de Educação de Rondônia com a determinação de recolhimento de 43 obras literárias destinadas às escolas, nos põe em face de orientações de governo que pedem análise e preocupação. Na objeção política ao livro e à leitura, no Brasil, que esse ato representa, é a civilização que está sob ataque com a chegada ao poder da mentalidade do desmonte do Estado brasileiro. Por aí, os eleitos de 2018 dão indicações de que supõem que, ao elegê-los, o povo abriu mão de seus direitos e conquistas como nação. Tudo vai se tornando revogável.

Não se trata de um evento de província, que nem por isso seria menos grave. Trata-se de desdobramento da guerra interna à erudição, declarada em diferentes atos de governo, como quando há semanas o próprio presidente sentenciou que os livros didáticos têm palavras demais. No seu governo, os livros serão, pois, instrumentos de minimização da cultura.


Governos não são eleitos para insultar educadores ou menosprezar cientistas ou desfazer as conquistas culturais e civilizatórias de um país. O governo atual não foi eleito para revogar o que somos no que de melhor temos. Protege-se no silêncio cúmplice da maioria.

As evidências que surgem nos diferentes setores do poder atual mostram que o regime de 1º de janeiro de 2019 funciona como um corpo invisível. É regulado por contaminação e identidade de propósitos que reúne os dispersos e frágeis na formação de um ser coletivo servil e cúmplice. Os absurdos de Brasília infiltram-se nos poros de Porto Velho e do país inteiro.

O governo de Rondônia filiou-se ao mesmo espírito da objeção presidencial antipedagógica, interpretou-a e ampliou-a. Entendeu que os livros arrolados fossem vetados e afastados dos estudantes. No veto, foi usado o pretexto de terem “conteúdos inadequados às crianças e adolescentes”. Dentre os autores visados pela medida kafkiana, estão Machado de Assis, o maior escritor brasileiro (fundador da Academia Brasileira de Letras), Mário de Andrade, (da Academia Paulista de Letras), um dos pais do nosso modernismo, Euclides da Cunha (da ABL), Ferreira Gullar (da ABL), Rubem Fonseca, Carlos Heitor Cony (da ABL), Nelson Rodrigues, Edgar Allan Poe, Franz Kafka.

Interpelada, a Secretaria da Educação de Rondônia tentou minimizar as providências não consumadas, mas vazadas. O fato, porém, de que funcionários tenham se sentido autorizados a tomar a medida obscurantista é uma indicação de que a intolerância política e o autoritarismo estão de prontidão. À menor distração, podem invadir e ocupar nossos espaços de expressão e de liberdade.

A secretaria argumentou que recebera denúncia de que um dos autores censurados, Rubem Fonseca, usa palavrão em suas obras. Aqui, porém, não raro, quem não fala, pensa em palavrão. Nestes dias, o presidente fez para jornalistas o gesto impróprio e obsceno da banana, com o braço. Na linguagem gestual dos moleques de rua esse é o palavrão dos palavrões. Os repetidores de sinais do poder veem os palavrões dos outros, mas não os de sua própria cultura de botequim.

Não é o caso, mas no Brasil e em Portugal palavrão tem a função de ponto de exclamação falado. Seria falso e hipócrita negar importância literária ao modo como nos expressamos na vida, quando o palavrão indica a prioridade do que sentimos em relação ao que pensamos. Já os governantes estão obrigados a pensar antes de falar e antes de fazer. Caso contrário, ficam aquém da função que exercem.

A medida esboçada, em Rondônia, vai além e destaca em rodapé a recomendação: “Todos os livros de Rubem Alves devem ser recolhidos”. Está aí a impressão digital do sujeito oculto da delação. Rubem Alves foi educador respeitado, professor da Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), que lhe reconheceu a competência e os serviços à educação do povo brasileiro ao lhe conceder o título de seu professor emérito.

Ele foi pastor presbiteriano em Lavras (MG), formado pelo Seminário Presbiteriano do Sul, em Campinas, filósofo, teólogo protestante renomado. Fez doutorado no Seminário Teológico de Princeton, nos EUA, com uma tese original e renovadora de grande repercussão, sobre Teologia da Esperança. Poeta, era também autor de livros infantis.

Como aconteceu com outros membros de várias igrejas protestantes e evangélicas no regime militar, Rubem Alves foi perseguido dentro de sua própria igreja. Seu pensamento social e educacional teve a envergadura de pensamento crítico e de questionamento da pastoral da subjugação e do silêncio em relação às questões sociais e do trabalho. Pastoral que dominou igrejas que sucumbiram à tentação da teologia da prosperidade, a teologia do individualismo alienante.
José de Souza Martins

Pensamento do Dia


Militarização do Governo Bolsonaro, trincheira da democracia ou presságio de ditadura?

Nunca desde os tempos da ditadura militar existiu no governo brasileiro uma presença tão maciça das forças do Exército ocupando os cargos de importância como no atual do capitão Jair Bolsonaro. Pela primeira vez na democracia, temos um militar nos três primeiros postos do Governo: o presidente, o vice-presidente e o ministro da Casa Civil, o recém nomeado general Walter Souza Braga Netto, que atuou como interventor federal no Rio de Janeiro e que agora assume no lugar de Onyx Lorenzoni. O cargo de chefe da Casa Civil é considerando como uma espécie primeiro-ministro.

Há quem veja nisso uma trincheira contra os perigos que espreitam a democracia e os que veem como presságio de uma nova ditadura. Os mais otimistas alegam que hoje as forças armadas brasileiras são de uma nova geração formada nos valores democráticos e na modernidade, vacinadas contra as tentações autoritárias e baluarte da democracia. Isso se deve ao apreço atual da sociedade pelos militares, uma das instituições, ao lado da Igreja, mais bem avaliadas nas pesquisas nacionais pela grande maioria dos brasileiros de todas as classes sociais.


E os pessimistas? Eles preferem ver nessa maciça presença dos militares no Executivo e na Administração pública um perigo real à volta do autoritarismo e até uma aprendizagem para que o presidente Bolsonaro prepare um golpe contra a democracia, dominando o Congresso para governar com a força das armas.

São os que viram com ironia e sarcasmo que até o ministro da Casa Civil seja um general do Exército. Sem dúvida a aposta de Bolsonaro de militarizar o Governo é arriscada e preocupa as forças democráticas como preocuparia um governo de religiosos e teocrático como nos países islâmicos.

Para entender melhor quem tem razão entre otimistas e pessimistas seria preciso ter uma visão mais clara dos bastidores em que o Governo se moveu até agora na defesa dos valores democráticos e das nostalgias autoritárias. Se os militares presentes no Governo estão sendo uma barreira aos desejos ditatoriais do Presidente ou um incentivo a eles. Hoje o Governo, após as mudanças e as novas nomeações de militares, é mais autoritário ou mais democrático do que antes?

É importante saber o que aconteceria hoje caso se repetissem, como no Chile e na França, manifestações maciças e violentas na rua contra o Governo. Se Bolsonaro decidisse apostar pela repressão e o corte de liberdades, seria apoiado pelos militares presentes no Governo ou impediriam suas tentações?

São perguntas graves e urgentes para saber se a democracia e suas conquistas libertárias desde os tempos da ditadura se consolidaram com essa forte presença dos militares no Governo ou se na verdade isso pode significar um incentivo à volta dos tempos sombrios das ditaduras e governos autoritários do passado.

Que a índole e a história pessoal do presidente Bolsonaro, desde seu começo no Exército sempre foram turbulentas e autoritárias e mais tarde no longo período como deputado federal, foram de nostalgia da ditadura e da tortura e inimigo dos direitos humanos, já é biografia. As perguntas que se impõem é se o fato dos militares aceitarem participar do Governo tão marcadamente está significando uma forma de se constituir um freio e vigilância das tentações autoritárias do Presidente, ou em uma maneira do Exército de querer entrar no Governo da nação pela porta democrática.

O fato de que na atual dinâmica do Governo, tenham sido até agora os seguidores mais acérrimos do filósofo e guru ultradireitista, Olavo de Carvalho, os maiores detratores e inimigos dos militares no Governo, pode significar que eles são vistos como muito progressistas pelos radicais do Governo, ao ponto de empurrar o presidente Bolsonaro a mudar vários generais do Governo. Já não é um segredo que os filhos ativos do Presidente revelaram uma índole autoritária que por vezes surpreendeu até seu pai que precisou alertá-los a ser mais moderados em suas ânsias iconoclastas.

O Brasil, o quinto maior país do mundo, o gigante e coração econômico do continente vive com o Governo Bolsonaro um de seus momentos mais delicados de sua democracia que pode depender, curioso paradoxo, dos militares que até hoje demonstraram seu respeito pelos governos democráticos e nunca deram sinais de rebelião nem mesmo com os governos de esquerda de Lula e Dilma. Sequer quando o Ministério do Exército passou às mãos de um civil nos governos de FHC.

Uma democracia consolidada no Brasil, sem o barulho de sabres, seria o melhor presente que o país pode dar aos outros países irmãos da América Latina que hoje se veem tentados a colocar a democracia em crise para dar passagem às velhas saudades de tempos que todos queremos esquecer.

Trump de bolso

Jair Bolsonaro, ao se olhar no espelho, deve se ver como um Donald Trump em ponto menor. Um Trump de bolso, mas tão voluntarioso quanto, cortador de atalhos, que faz o que acha que precisa ser feito. Daí, como Trump, sente-se autorizado a espezinhar a máquina administrativa, a liturgia do poder e as instituições. Acontece que, por mais grosso, Trump não improvisa. Faz-se de ignorante, mas frequentou museus em jovem, estudou economia e aprendeu a falar. O matuto Bolsonaro estudou ordem unida, saltar de paraquedas e lavar cavalos. Há uma diferença.

Assim como Trump, Bolsonaro cavalga sobre a Constituição que jurou defender, desfaz conquistas de governos anteriores e despreza conceitos que há muito se julgavam estabelecidos, quanto às minorias, ao meio ambiente e às relações internacionais. Dia sim, dia não, precisa investir contra o Congresso, o Judiciário, a imprensa, a ONU e qualquer organismo que veja como uma ameaça à sua autoridade —para mostrar que está no poder. E como bate sem levar troco sente-se forte.

Também como Trump, Bolsonaro frita e demite aliados de cuja lealdade desconfia e desfaz-se de amigos que o ajudaram a vencer. Ele é o chefe. Pior, submete importantes auxiliares a uma ciranda de humilhações, elogios e novas humilhações, para mantê-los na ponta dos pés. Já fez isso com o vice-presidente Hamilton Mourão, o ministro Sergio Moro e outros, e acaba de fazer com os governadores da Amazônia. Eles levam a bofetada e não reagem. Um dia, para surpresa de Bolsonaro, alguém reagirá.

Enquanto canta de galo em seu terreiro, Bolsonaro ajoelha-se e acoelha-se diante de Trump. Sob sua orientação, o Brasil trabalha até contra si mesmo para favorecer os EUA, sem receber em troca um mínimo agrado.

Trump despreza Bolsonaro? Resposta: claro que não. Trump nem sequer pensa em Bolsonaro a ponto de desprezá-lo.
Ruy Castro

Falabella disse tudo sobre Paulo Guedes

Odete Roitman tinha alergia a pobre. A magnata de “Vale Tudo” detestava o Brasil em geral e os brasileiros pobres em particular. “Essa terra não tem jeito. As pessoas aqui não trabalham, é um povo preguiçoso”, dizia. Para ela, o país podia ser resumido como “uma mistura de raças que não deu certo”.

Bia Falcão dizia que “pobreza pega”. Pega como sarna, como um vírus. Entra pela pele, pela respiração”, garantia. Numa cena de “Belíssima”, a empresária explicou sua receita para circular em áreas populares. “Prendo o ar. Não toco em nada para não me contagiar”. “Não sei como eu não morri”, emendou, depois de narrar uma incursão pelo subúrbio.

Caco Antibes gostava de rir da pobreza. “Pobre é uma coisa triste”, ironizava o trambiqueiro de “Sai de Baixo”. Dizendo-se um “príncipe dinamarquês”, ele fazia piada com tudo o que viesse do povo. “Casamento de pobre é a visão do inferno”, debochava, como se só os ricos tivessem direito a subir ao altar.

Justo Veríssimo era um político sincero. “Odeio pobre. Quanto mais pobre, mais eu odeio”, repetia. Filiado ao Partido Sinceramente Hipócrita, o deputado só se dirigia ao povo na hora de pedir votos. “Eu quero é que pobre se exploda”, bradava, sem medo de chocar o eleitor.

As madames das novelas entraram para a história da TV. Retrataram o pior de certa elite brasileira: o preconceito, o ódio de classe, a aversão à mobilidade social. Foram vilãs perfeitas, interpretadas com maestria por Beatriz Segall e Fernanda Montenegro. Nos humorísticos, Miguel Falabella e Chico Anysio exploraram o lado cômico da demofobia. Suas caricaturas lembravam personagens bem reais, que insistem em povoar o noticiário de Brasília.

Ontem o jornal “Extra” chamou Paulo Guedes de “ministro Caco Antibes”. Ele mereceu a honraria ao comentar que o dólar barato estava levando empregadas domésticas à Disney. “Uma festa danada”, ironizou. Ouvido pela repórter Luiza Barros, Falabella definiu Caco como “um personagem psicótico da ficção”. Em uma frase, o ator disse tudo: “Ser comparado a ele deveria ser uma vergonha para o ministro”.

Brasil com champanha


A tentação de Goebbels

Em 1934 o jovem Luís Simões Lopes, chefe de gabinete de Getúlio Vargas e mais tarde criador do Departamento Administrativo do Serviço Público (Dasp) e da Fundação Getúlio Vargas, vai a Berlim, fica fascinado com o Ministério de Propaganda de Goebbels e manda uma carta entusiasmada para o presidente dizendo que o Brasil precisava de algo parecido. “O que mais me impressionou em Berlim”, escreve, “foi a propaganda sistemática, metodizada do governo e do sistema de governo nacional-socialista. Não há em toda a Alemanha uma só pessoa que não sinta diretamente o contato do nazismo ou de Hitler, seja pela fotografia, pelo rádio, pelo cinema, através da imprensa alemã, pelos líderes nazis, pelas organizações do partido...”.

A carta expressa dúvida sobre a obsessão nazista com a grande conspiração dos judeus para dominar o mundo (“parece-me que através do capitalismo seria mais fácil”), mas é só um detalhe: “A organização do Ministério da Propaganda fascina tanto que eu me permito sugerir a criação de uma miniatura dele no Brasil.

Evidentemente, não temos recursos para manter um órgão igual ao alemão (...), mas podemos adaptar a organização alemã dotando o país de um instrumento de progresso moral e material formidável. A Alemanha, além de outras todas, leva-nos a vantagem de ter um governo praticamente ditatorial”.

“Com todos os tropeços que se nos deparam, devemos ensaiar a adoção dos métodos modernos de administração, de órgãos de ação pronta e eficaz, experimentados em outros países.”

Depois de detalhar as áreas de atividade do ministério, a carta continua dizendo que “a antiga nobreza é contra Hitler, que acabou na Alemanha com as castas”, e “a democratização é um fato. Os ‘dancings’, cinemas etc., que eram frequentados pela elite, estão hoje repletos de povo, que vive satisfeito e distraído, esquecido da política”.

Num apêndice há um resumo das principais áreas de atuação do Ministério da Propaganda: são dez itens, começando com questões gerais da vida social e política, combatendo os adversários dentro e fora do país e controlando todos os meios de propaganda e publicação, da arte e de cultura, e culminando com a organização de manifestações oficiais, festas nacionais, feriados e o hino nacional.

Estávamos em 1934, ano em que uma nova Constituição foi promulgada, com a promessa de marcar uma nova eleição em 1938. Dois anos antes São Paulo havia se insurgido contra o governo central e a nova Constituição foi, sobretudo, uma tentativa de conciliação de Vargas com as elites paulistas, que durou até a implantação da ditadura, em 1937.

Não é por acaso que essa carta tenha sido repassada por Getúlio para Gustavo Capanema, Ministro da Educação, em cujo arquivo se encontra. Na visão de Getúlio, e do próprio Capanema, caberia a esse ministério, em aliança com a Igreja conservadora, administrar o uso do rádio, do cinema, das artes, dos currículos escolares e de grandes eventos cívicos, como os grandes desfiles e o canto orfeônico, mobilizando o povo a favor da Nação, tal como entendida pelo governo.

Ao longo dos anos, o ministério fez o que pôde para cumprir esse papel, ao mesmo tempo que acenava para os intelectuais com a proteção ao patrimônio histórico e a convivência com os modernistas, Em 1939, desistindo do Ministério da Educação, que chegou a ser prometido a Plínio Salgado, Vargas finalmente segue a sugestão de Simões Lopes e cria o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), a versão cabocla do ministério de Goebbels. Basta ler os objetivos do DIP no seu decreto de criação para ver que foram praticamente copiados do resumo feito cinco anos antes por Simões Lopes.

Simões Lopes e Getúlio Vargas compartilhavam a ideia de que a democracia representativa era um modelo político fracassado, que precisava ser substituído por regimes que fizessem uso de todos os meios para modernizar a sociedade e instaurar a verdadeira democracia, que para eles significava deixar o povo “satisfeito e distraído”. O que diferenciava o regime de Vargas dos fascismos europeus era que ele via a mobilização ideológica como ameaça, e por isso mesmo se desfez de seus aliados integralistas logo após o golpe de 1937.

Coisas como antissemitismo, nacionalismo, religião, normas constitucionais, direitos humanos, arte, literatura, todo esse mundo de valores e princípios, certos ou errados, eram meras conveniências que podiam ou não ser usadas para conseguir o que importava: a administração “moderna”, a capacidade de ação “pronta e eficaz” e o esperado progresso “moral e material”.

É possível que hoje, como nos anos 1930, a grande tentação de Goebbels não seja tanto a ideologia grotesca do nazismo, com o antissemitismo assassino, o nacionalismo doentio, o anti-intelectualismo e o culto macabro da morte e da violência, mas, sobretudo, a indiferença ética e moral dos que colocam seus objetivos políticos, com boas ou más intenções, acima de tudo e não se importam com os meios para chegar a seus fins.

É isso que nos deve preocupar mais.
Simon Schwartzman

O maior genocídio de todos os tempos não foi o Holocausto, mas o dos povos indígenas

Pode parecer leviano, a princípio, o título do texto, porque o extermínio de vidas humanas, sob qualquer forma, é uma atrocidade que não pode ser comparada em número, nem em dor.

Entretanto, como memória coletiva, o Holocausto – talvez pela proximidade do fato histórico – esteja mais vivo, ou porque um determinado “tipo” de vida valha mais do que outro em certos imaginários culturais.

No livro “Controvérsia de Valadolid”, de Jean-Claude Carrière, mostra-se um debate havido entre o padre dominicano Las Casas, um defensor dos indígenas americanos, e Luis Sepúlveda, um filósofo seguidor de Aristóteles, sobre se os índios da recém conquistada América eram seres humanos e, portanto, teriam uma alma que poderia ser salva por Deus. Sepúlveda advoga, diante do cardeal que representava o Papa, que “não, esses não são homens como nós”; enquanto Las Casas defende: “Sim, eles são homens como nós.”


A problemática apresenta como, há séculos, os indígenas são tratados por aqueles que se dizem os guardiães da cultura e da civilidade: como seres não humanos e incapazes de despertar empatia, sendo, portanto, autorizado o seu extermínio sem qualquer tipo de culpa, já que sequer eles teriam as suas almas salvas por Deus.

Isso explica, em parte, a razão pelas qual as vidas indígenas importam pouco e seu genocídio teria sido relativizado no plano histórico em relação ao Holocausto – e não apenas as vidas indígenas, como também a dos africanos escravizados que foram trazidos ao continente americano ou, mais recentemente, aqueles que foram dizimados durante os processos de independência das colônias africanas.

No Peru, estima-se que, em 1532, quando chegaram os espanhóis, havia 16 milhões de habitantes. Em 1570, essa população já estava reduzida a 2 milhões, de acordo com Peter Klen, em “Nación y sociedad en la historia del Perú”, conforme divulgado pela indígena peruana Roxana Quispe Collantes em sua página no Facebook.

Esse caso demonstra o processo sanguinário que houve na América devido à expansão dos Estados-nação europeus durante a colonização. Esta, seja na América, África, Ásia, deu-se através do genocídio das populações originárias, em suas formas de vida e cultura.

Não precisamos voltar ao século XVI para dimensionar melhor a questão. Na recente histórica política brasileira, o extermínio das práticas culturais e da vida dos indígenas está mais do que nunca presente.

Durante o regime militar, que teve início com o golpe de 1964, os indígenas da região amazônica, sobretudo, foram explorados ou exterminados em prol do “desenvolvimento” da região. Um dos presos políticos que teve de ser exilado no Canadá foi o ex-funcionário da FUNAI Tiuré, de etnia potiguara, que foi perseguido pelos militares. Conforme já noticiado pelo GreenMe, o coronel Carlos Aloysio Weber, ex-comandante do 5° Batalhão de Engenharia e Construção, declarou que:
“Pode parecer irônico falar isso, mas a repressão, as torturas, as atrocidades cometidas no meio urbano parecem maior, parecem que doeram mais do que as que foram cometidas contra os índios. Hoje se fala em 400 desparecidos nas cidades, mas nós podemos falar em cinco mil desaparecidos indígenas, porque houve extermínio sistemático de aldeias. Era uma política de estado”.
Ainda contando como a ditadura militar lidou com a questão ambiental e indígena na Amazônia ele agrega:
“Como você pensa que nós fizemos 800 quilômetros de estrada? Pedindo licença, chê? Usamos a mesma tática dos portugueses, que não pediam licença aos espanhóis para cruzar a linha de Tordesilhas. Se tudo o que fizemos não tivesse dado certo, eu estaria na cadeia, velho”.
Este ano, com a política empreendida pelo governo de Jair Bolsonaro, que parece uma reatualização do “projeto desenvolvimentista” dos militares, as lideranças indígenas brasileiras têm percorrido o mundo para denunciar a violência que os seus povos estão sofrendo.

O “Nenhuma gota a mais”, que ecoou em uma manifestação, este ano, em Nova York, e nas marchas que houve aqui no Brasil, é um basta ao genocídio perpetrado aos povos indígenas e à sua cosmovisão, que, como tem sido analisada por muitos especialistas, é a mais capaz para lidar com os desafios contemporâneos relacionados à preservação do meio ambiente e das formas de vida do planeta.

O assassinato do líder indígena e guardião da floresta Paulo Paulino Guajajara – morto em uma emboscada na sexta-feira, 1°, no Maranhão, por madeireiros armados – foi noticiado em jornais do mundo inteiro.

O líder sabia que estava correndo perigo e vinha, em vão, há tempos anunciando as ameaças recebidas, como bem informou a Survival, ONG pelos direitos dos povos da floresta.

Este é apenas mais um capítulo do maior genocídio de todos os tempos, o dos povos indígenas.

Acelerador da desigualdade

Democracia não garante queda da desigualdade, mas disparidade aumenta em ditaduras
Pedro Ferreira de Souza pesquisador do Ipea vencedor do Prêmio Jabuti com o livro "Uma História da Desigualdade: a Concentração de Renda entre os Ricos no Brasil - 1926-2013"

A desumanização

A Desumanização é o título de um lindo livro de Valter Hugo Mãe. Em tempos de discussão sobre gravidez precoce, sua leitura é imperdível. Mostra numa escrita quase poética as consequências cruéis da falta de acolhimento familiar nesses casos. Roubei para usar aqui no seu sentido literal. Cai como uma luva para ilustrar a falta de humanidade deste governo, intolerante aos diferentes dele.

Presidente, filhos, ministros e colaboradores perderam a censura e com ela a cortesia. Pode ser bom que revelem o que realmente pensam, sem disfarces. Mas choca porque estão no comando de políticas públicas para todos os brasileiros, e não apenas seus eleitores. Políticas que deveriam ser desenhadas para integrar, unir, gerar oportunidades a quem não tem.

Essa é a essência do liberalismo. Mas este governo teima em separar, desunir e antagonizar.


Cada vez parecem se sentir mais à vontade para suas impropriedades, e vão subindo o tom. Não é só o conteúdo que ofende, mas a forma, que amplifica a ofensa. Gestos impróprios na porta do Palácio, # com palavrões, xingamentos a seguidores nas redes sociais. A agressividade dos seus apoiadores é estimulada pelo exemplo de cima, transformando a internet em uma praça de guerra.

Não deveria ser surpresa. Afinal, Bolsonaro começou sua campanha na votação do impeachment homenageando Ustra. Nada mais desumano e covarde que a tortura.

Todo dia é um 7 a 1. Compartilham ataque covarde e sexista a uma jornalista. Outra foi mandada de volta para o Japão. Debocham das aparências das mulheres. Aplaudem vídeos nos quais o homossexualismo é apresentado como origem de perversidades e dizem que portadores de HIV pesam no orçamento. Se divertem quando jornalista do “círculo do poder” faz chacota de brasileiro em palestra.

O Goebbels tupiniquim só foi demitido, a contragosto do chefe, porque se sentiu tão à vontade que saiu do armário. Na Fundação Palmares está alguém que acha que a escravidão foi uma bênção para os negros. Um ministro, que nos remete ao personagem Justo Veríssimo, acha que pobre não sabe poupar, destrói o meio ambiente e não pode ir a Miami. Vivem numa bolha. E partilham das mesmas ideias.

Tudo isso é condenável, não porque atrapalha andamento das reformas ou nos faz passar vergonha em fóruns internacionais. A falta de empatia, combinada com uma tendência autoritária, é perigosa.

Os exemplos desses despautérios são muitos. Vou me concentrar na questão da Aids, porque revela não só preconceito, mas total falta de preparo para analisar e implementar políticas públicas

O programa brasileiro de prevenção e tratamento da Aids é reconhecido mundialmente pela sua excelência. Iniciado em meados dos anos 90, permitiu reverter as projeções mais pessimistas do início daquela década.

O plano se baseia em distribuição gratuita de medicamentos e camisinha; testes gratuitos; profilaxia para a pré-exposição de pessoas que se relacionam com infectados. Há muito preconceito nessa área. A testagem é importante para reduzir o risco de transmissão e fundamental para melhorar a qualidade e expectativa de vida do portador. Exames para diabetes e colesterol são feitos com naturalidade, já HIV não faz parte da rotina, mas deveria. A prevenção é a chave.

Quando o coquetel foi descoberto, em 1995, o Brasil e a África do Sul tinham a mesma porcentagem de sua população infectada pelo HIV. Os dois países seguiram estratégias diferentes. Hoje são 10% de sul-africanos, maiores de 15 anos, portadores. Porcentual que aplicado ao Brasil equivaleria a 17 milhões, em lugar dos 800 mil brasileiros infectados hoje. É resultado da distribuição gratuita de medicamentos, que reduzem a carga viral e a transmissão. São milhões de vidas poupadas.

A distribuição de medicamentos custa aos cofres públicos apenas R$ 1,8 bilhão ao ano. Seria importante registrar também as despesas evitadas para tratamento da doença no SUS. A quebra de patentes e o uso de genéricos permitiu a redução sistemática do custo dos medicamentos antirretrovirais, que significa hoje menos de 0,06% dos gastos públicos anuais.

Apesar disso, o presidente Bolsonaro declarou em entrevista que “pessoa com HIV é despesa para todo o Brasil”. Faz dobradinha com o ataque ao jornalista com “cara de homossexual terrível”.

Todo tratamento, de qualquer doença, é despesa, seja pressão alta, diabetes ou sarampo. Com sua forma peculiar de fazer política pública, a declaração foi baseada no relato de uma obstetra amiga. Palpite caseiro. Ao ser cobrado pela imprensa, deu uma banana para os jornalistas. Por todo conjunto de sua obra, parece evidente que o problema do presidente com o HIV não é o custo do tratamento.

Já é lugar comum apontar as impropriedades ditas por este governo. Às vezes, voltam atrás, mas, na maioria dos casos, colocam a responsabilidade na imprensa. As falas são sempre retiradas do contexto. A culpa é sempre dos outros.

Mas as palavras ficam.

A militarização do Planalto

A queda do ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, era pedra cantada. A surpresa é a sua substituição por mais um oficial de quatro estrelas da ativa, o que significará a completa militarização do Palácio do Planalto. O presidente Jair Bolsonaro convidou para o cargo o general Braga Neto, chefe do Estado-Maior do Exército e ex-interventor na segurança do Rio de Janeiro, função que exerceu com discrição e habilidade política. Caso não aceite o convite, o nome mais cotado para o cargo é o do almirante de esquadra Flávio Rocha, atual comandante do 1º Distrito Naval, recém-promovido a quatro estrelas, que já havia sido convidado para uma assessoria especial da Presidência.

Aliado de primeira hora na campanha presidencial, Onyx deverá ser deslocado para o Ministério da Cidadania, no lugar do emedebista Osmar Terra. A troca de guarda na Casa Civil era esperada, mas não ocorreu ainda por causa da relação de amizade entre ambos. A pasta foi completamente esvaziada, principalmente depois da perda do Programa de Privatizações e Investimentos (PPI). A gota d’água foi o desempenho de Onyx na negociação com o Congresso, na qual o governo acabou cedendo R$ 30 bilhões em emendas impositivas do relator e das comissões, que foram vetadas por Bolsonaro —o Palácio do Planalto teve que negociar um acordo com os partidos da sua própria base para recuperar R$ 11 bilhões, por causa da derrubada dos vetos.

A substituição de Onyx pelo general Braga Neto pode melhorar o funcionamento interno do governo. Essa será a sua missão principal. A doutrina de organização vigente no Exército se baseia na cooperação e coordenação entre suas unidades, mas nunca superou completamente as tendências autárquicas de suas grandes unidades, e da própria Força em relação à Marinha e à Aeronáutica. O outro lado da moeda é a “militarização” dos processos decisórios, confinados a círculos restritos e de cima para baixo, o que vem se traduzindo na exclusão da sociedade civil e dos demais níveis de governo dos fóruns de discussão e deliberação sobre políticas públicas, mesmo em questões nas quais esse tipo de concepção induzem ao erro.


O Estado brasileiro precisa ser enxugado, é verdade, mas seu caráter democrático está consagrado pela Constituição de 1988. É um “Estado ampliado”, em razão da autonomia de muitos de seus órgãos e da participação colegiada da alta burocracia e de representantes da sociedade nas decisões. Nos governos do PSDB e do PT, pela própria natureza social-democrata desses partidos, esses fóruns e organismos foram, num primeiro momento, normatizados e consolidados. Num segundo, porém, foram instrumentos de aparelhamento partidário, cooptação de lideranças e abdução de interesses que, a rigor, deveriam ser negociados no âmbito do Congresso, e não nos gabinetes da Esplanada.

Agora, há um movimento inverso, cujo desfecho não está suficientemente claro. Mas caminha numa direção de completo apartamento do processo decisório do governo de instâncias de participação da sociedade e representação subnacional — como governos estaduais e municipais —, ainda que alguns desses fórum subnacionais sejam poderosíssimos, como é o caso do conselho de secretários de Fazenda. O outro lado da moeda será a reorganização autônoma da sociedade civil e o fortalecimento do poder de negociação do Congresso, para onde convergirão todas as demandas e reivindicações dos governadores e prefeitos — além de entidades da sociedade civil. Resta saber como o governo lidará com isso.

A presença de militares no governo por si só não significa a “militarização” das políticas públicas, o que não teria a menor chance de dar certo. Mas essa tendência existe, sobretudo quando as concepções dos militares sobre certos assuntos, como a Amazônia, por exemplo, convergem com grandes interesses econômicos (como no caso da mineração) ou de natureza ideológica e religiosa (caso da política indigenista). Entretanto, é inegável que os militares no governo têm revelado mais bom senso diante das crises e conflitos do que a ala ideológica e religiosa que cerca o presidente Jair Bolsonaro.

Uma outra questão é a relação dos militares com os servidores civis, que têm cultura completamente distinta e mais experiência na gestão da máquina pública. A cooperação entre ambos pode dar mais eficiência à máquina do governo, mas os conflitos e tensões serão inevitáveis em razão dessas diferenças. Todos os estudos sobre a burocracia mostram que a sua eficiência depende da confiança e da observação das normas. E que o “espírito de corpo” dos servidores, sobretudo em funções essenciais do Estado, reage às mudanças de rotina quando impostas sem discussão e negociação.

'A grande mentira verde': Como a destruição da Amazônia vai além do desmatamento

O tamanho da destruição atual da Amazônia é bem maior do que se acredita.

Atualmente, o bioma contém a maior e mais diversa floresta tropical do mundo, ocupa mais de 6,8 milhões de km2 e abriga 33 milhões de pessoas em nove países.

Conjunto de ecossistemas que formam una zona de mesmo clima, flora e fauna.Esconder

Em 2018, Brasil e Bolívia estiveram entre os cinco países que mais perderam florestas primárias, as matas virgens, no mundo, de acordo com a organização internacional Global Forest Watch.

A grilagem de terras, a expansão de fronteiras agropecuárias, a mineração e a exploração econômica descontrolada, entre outros fatores, são consideradas as principais atividades responsáveis pela perda de floresta.

Mas o desmatamento é só uma parte do problema.

“Falar só de desmatamento quando falamos da destruição da Amazônia é o que eu chamo de a grande mentira verde”, diz à BBC News Brasil o climatologista Antonio Donato Nobre, pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe).

A perda de floresta amazônica até hoje é muito maior do que os quase 20% de desmatamento dos quais se fala nos meios de comunicação.

Nobre e outros pesquisadores acreditam que, para ter um panorama mais completo da destruição da floresta, é preciso considerar também a degradação.

Degradação é o fenômeno que acontece quando o acúmulo de perturbações em um trecho de floresta (incêndios, extração de madeira e caça descontrolada, por exemplo) retira daquele ecossistema sua capacidade de funcionar normalmente.


Em 2019, por exemplo, Brasil e Bolívia também viram aumentar dramaticamente o número de incêndios na região amazônica.

“A questão é que a degradação tem um papel importante na maneira como a floresta muda, e nós não estamos vendo. Não há nenhum tipo de política para evitar a degradação”, diz à BBC News Brasil o botânico Jos Barlow, professor da Universidade de Lancaster, no Reino Unido, e pesquisador da Rede Amazônia Sustentável (RAS).

“Assim como uma pessoa saudável tem menos chances de pegar uma gripe, uma floresta saudável tem menos chance de queimar e de sucumbir às mudanças climáticas. O que a degradação faz é deixar a floresta cada vez mais vulnerável”, explica.

Entre as muitas funções da Amazônia está ajudar a América do Sul — e todo o planeta — a equilibrar o clima, distribuir as chuvas pela região e capturar quantidades enormes de dióxido de carbono (CO2), um dos principais gases causadores do efeito estufa.

São papéis fundamentais para mitigar os efeitos da mudança climática. “Podemos ver essas árvores nas fotos de satélite, mas para a função climática essas florestas degradadas já não existem mais”, diz Antonio Nobre.

O avanço da degradação e o desmatamento estão empurrando o ecossistema para um “ponto de não retorno” no qual ele perderia sua capacidade de funcionar, de acordo com os cientistas Carlos Nobre e Thomas Lovejoy, dois dos principais especialistas em Amazônia no mundo.

Se a situação não for revertida, dizem eles, os impactos dessas mudanças poderiam se acelerar, com consequências catastróficas.
Nem toda perda de floresta é igual

Quando falamos em dados de desmatamento, nem sempre falamos da mesma coisa.

Uma maneira de medir o desmatamento é levando em conta todas as áreas da floresta em que a vegetação foi completamente eliminada. É o que se chama perda de cobertura florestal.

Só em 2018, a perda de cobertura florestal em toda a Amazônia chegou a 4 milhões de hectares (40 mil km2), segundo dados da Global Forest Watch.

Mas algumas destas áreas desmatadas são de florestas primárias, aquelas que se encontram em seu estado original — não afetadas, ou afetadas o mínimo possível, pela ação humana. Por serem mais antigas, elas têm mais diversidade de espécies e guardam mais carbono.

As florestas secundárias, por sua vez, são todas as que estão em recuperação de processos de desmatamento ou de degradação grave. Mas elas podem levar décadas e, em alguns casos, séculos, para voltarem a ter as características que tinham quando primárias se forem mantidas intocadas, o que também é raro.

Em 2018, a Pan-Amazônia, como é chamado o conjunto do bioma em todos os países, perdeu cerca de 1,7 milhão de hectares de floresta primária, segundo os dados produzidos pelo sistema de monitoramento da Universidade de Maryland, nos EUA, e publicados pelo Global Forest Watch.

Isso significa que pouco mais de três campos de futebol de mata virgem foram desmatados a cada minuto em 2018.

A perda pode parecer insignificante perto da imensidão da floresta (representa cerca de 0,32% do total), mas não é uma questão só quantitativa e, sim, qualitativa.

“Essa forma de medir o desmatamento é importante porque as florestas primárias são muito mais ricas e diversas em biodiversidade”, explica Jos Barlow, da Universidade de Lancaster.

Uma floresta é muito mais do que suas árvores. É o produto de todos os processos e interações entre milhares de espécies de plantas e animais que coexistem ali. Por isso a floresta amazônica é insubstituível.

“Cada hectare desmatado significa que uma parte do ecossistema deixa de funcionar, e isso afeta todo o resto”, diz à BBC News Brasil a pesquisadora Erika Berenguer, especialista em florestas tropicais da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e da RAS.

Nos últimos dez anos, as taxas de perda de florestas primárias se mantiveram altas ou voltaram a aumentar na maioria dos países amazônicos, como apontam a Global Forest Watch e dados oficiais.

Nas florestas primárias vivem árvores que podem ter centenas ou até mesmo milhares de anos de idade. Elas cumprem um papel essencial na batalha contra as mudanças climáticas, já que agem como um enorme armazém de dióxido de carbono.

Uma pequena parte do CO2 que as árvores absorvem no processo de fotossíntese é emitida de volta para a atmosfera durante sua respiração. A outra parte é transformada em carbono e usada na produção dos açúcares que a planta necessita para seu metabolismo.

“Medimos a quantidade de carbono em uma árvore pela espessura do tronco. O carbono é armazenado ali, em forma de biomassa”, explica Erika Berenguer.

Por isso, quanto maior e mais antiga a árvore, mais carbono ela costuma armazenar.

Segundo Berenguer, uma árvore grande (com pelo menos três metros de circunferência) pode armazenar cerca de 3 a 4 toneladas de carbono.

Isso equivaleria a cerca de 10 a 12 toneladas de dióxido de carbono — ou a média que um carro de passeio emite durante quatro anos.

Um dos efeitos do desmatamento é liberar o CO2 guardado na floresta de volta na atmosfera — seja pela queimada ou pela decomposição da madeira cortada, processos que transformam o carbono das árvores novamente em gás.

Por este motivo, os cientistas temem que a região deixe de ser um armazém de carbono e se transforme em um importante emissor de CO2, acelerando os efeitos da mudança climática. Um estudo recente mostra que cerca de 20% do total da Amazônia já emite mais dióxido de carbono do que absorve.