segunda-feira, 31 de maio de 2021

Imagem do Brasil

 


#Fora Bolsonaro

Mais de uma centena de pedidos de impeachment, dois processos já em fase de análise no Tribunal Penal Internacional (TPI) de Haia, uma queixa-crime e representações diversas enviadas à Procuradoria-Geral da República. A quantidade de procedimentos contra o presidente Jair Bolsonaro – a maioria relativa à pandemia – bate todos os recordes. De um lado demonstra que, embora as limitações impostas pelo vírus tenham inibido manifestações de ruas, há mobilização real contra o mandatário. De outro, aponta o perigo da descrença nas instituições diante da lentidão ou simples engavetamento dos processos.

Esse talvez seja o papel mais importante da CPI da Pandemia. Assegurar ao cidadão, atropelado cotidianamente pelos impropérios de Bolsonaro, que há saídas legais para punir aqueles que mentem, enganam e atentam contra a vida. De pouca valia terá a exibição de testemunhos, das incongruências e mentiras deslavadas, se a Comissão se limitar à culpabilidade já sabida sem indicar punição.

Desde a redemocratização, todos os presidentes sofreram pedidos de impeachment. Fernando Collor renunciou antes de o Senado concluir a votação de sua cassação. Fernando Henrique Cardoso teve 24 representações contra ele; Lula, 37; Dilma Rousseff, 68, sendo afastada por crime de responsabilidade; e Michel Temer, 31. Em dois anos e meio, Bolsonaro já colhe 118 na Câmara, protocoladas por mais de 500 organizações da sociedade civil, com milhares de assinaturas de endosso.

O real adversário de Lula não é Bolsonaro

As bandeiras vermelhas das manifestações de esquerda no sábado passado podem ter feito Jair Bolsonaro sorrir, mas é preciso entender que a polarização de 2022 não será a mesma de 2018. Se na última eleição presidencial boa parte dos eleitores de Jair Bolsonaro tapou o nariz e votou nele, para evitar a volta do PT ao poder, na próxima esses mesmos eleitores devem tapar o nariz e votar em Lula, para impedir que Jair Bolsonaro permaneça no Palácio do Planalto. Ou dividir-se votando massivamente em branco ou nulo, o que deverá ajudar o petista. Há ainda um primeiro turno no meio do caminho do atual presidente, e ele pode até mesmo não passar ao segundo tempo no qual Lula já está garantido, visto que muita gente que votou em Jair Bolsonaro em 2018 poderá votar num terceiro nome que não significará necessariamente uma terceira via.


Não serão petistas ou bolsonaristas que definirão o resultado no ano que vem. Será o eleitorado que, na falta de um candidato com ar de novidade que se mostre viável até o início do ano que vem, acostumou-se a oscilar entre o que fede mais e o que fede menos. E Jair Bolsonaro fede muito mais, porque fede a mortes, enquanto o cheiro da corrupção e lavagem de dinheiro de Lula está se tornando cada vez mais rarefeito. Trata-se de constatação.

O chefão petista é muito mais esperto do que o oponente. Por trás das bandeiras vermelhas, há articulação intensa com políticos de todos os matizes e grandes empresários — entre eles, os mesmos que tentam segurar Paulo Guedes, elogiando algumas ações suas em público, não para agradar a Jair Bolsonaro, mas por entender que, sem o ex-super ministro da Economia na Esplanada, a situação poderia degringolar de vez. É preciso entregar um país não completamente arruinado ao ex-condenado. A divulgação do encontro dele com Fernando Henrique Cardoso é só a ponta do iceberg.

Enquanto Jair Bolsonaro aposta no antilulismo, com discurso extremado como se a polarização fosse a mesma de 2018, Lula aposta no antibolsonarismo, com discurso afável, pouco ideologizado, de “união nacional”, porque sabe que a polarização em 2022 será outra, a do extremismo versus “polo democrático”, e que o seu cheiro de ralo já não incomodará tanto, visto que o cheiro de morte do oponente já é bem mais acentuado. De qualquer forma, Jair Bolsonaro não saberia e não poderia fazer diferente: é um sujeito de inteligência limitada e enveredou pelo caminho sem volta da sociopatia. O atual presidente não é o real adversário de Lula, apesar da retórica do chefão petista. O real adversário de Lula é um nome forte que represente uma alternativa honesta e racional a ele. Mas esse nome ainda não existe e não se sabe se existirá a tempo.

Monólogo para um depredador ambiental

Depois de mim,
o aquecimento global,
o derretimento das geleiras,
as inundações,
os furacões,
os tufões,
as chuvas ácidas,
o desflorestamento,
a savanização,
mais extinção de espécies,
mais doenças transmitidas por
insetos,
mais epidemias,
mais pandemias,
mais câncer,
mais fome,
mais crianças esqueléticas
vagando nos lixões.
Alcides Ribeiro Soares

A inconstitucionalidade como tática

Não há nada de anormal em que, vez por outra, haja alguma tensão nas relações entre Executivo, Legislativo e Judiciário. A autonomia de cada Poder não é absoluta, cabendo aos outros promover ou restabelecer o equilíbrio. Fundamento da separação dos Poderes, essa dinâmica de freios e contrapesos é o cerne do sistema proposto por Montesquieu.

O presidente Jair Bolsonaro tem, no entanto, se valido desse sistema de controle para uma nefasta manobra. O objetivo tem sido fustigar o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio de atos acintosamente inconstitucionais.


A manobra se dá da seguinte forma. O governo Bolsonaro propõe ações judiciais ou edita atos que, desde o início, já se sabe que o Supremo rejeitará, em razão de manifesta inconstitucionalidade. O objetivo, no entanto, não é obter o que foi pedido. O que se quer é a decisão negativa do Judiciário.

Depois, esse conjunto de decisões judiciais contrárias ao governo Bolsonaro – afinal, não se trata apenas de uma ação manifestamente inconstitucional, mas de uma série de medidas contrárias à Constituição – é usado como desculpa para a incompetência do próprio governo. A mensagem de irresponsabilidade é simples: o presidente Jair Bolsonaro tenta fazer o bem para o País, mas o Supremo não deixa.

Exemplo dessa tática é a mais nova manobra do presidente Jair Bolsonaro em relação à pandemia. A Advocacia-Geral da União (AGU) acionou o Supremo para questionar as medidas de restrição dos governadores de Pernambuco, Paraná e Rio Grande do Norte.

O tema é pacífico. A Constituição prevê a competência compartilhada da União, Estados e municípios em relação à saúde pública.

Além disso, o Supremo, no primeiro semestre de 2020, já reconheceu que governadores e prefeitos podem decretar restrições para conter a pandemia. Ou seja, não há nenhuma dúvida sobre qual será a decisão do STF em relação à nova ação da AGU, mas mesmo assim – ou melhor, precisamente por isso – o governo Bolsonaro acionou o Supremo.

Outro ato para fustigar o Supremo diz respeito ao decreto, anunciado pelo Executivo federal, sobre as redes sociais. Sob o pretexto de regulamentar o Marco Civil da Internet, o presidente Jair Bolsonaro deseja proibir que as redes sociais excluam publicações ou suspendam perfis que contrariem as normas dessas plataformas.

As redes sociais não podem ser passivas no combate à desinformação. É crescente a percepção de que – para a saúde pública, para o livre debate de ideias e para a própria democracia – as redes sociais não podem ser um espaço sem lei.

O presidente Jair Bolsonaro promete, no entanto, fazer o exato oposto, impedindo que as redes sociais zelem pelos respectivos ambientes virtuais e pela validade de suas regras. É óbvio que um decreto com tal conteúdo não tem como prosperar no Supremo, por manifesta ilegalidade e inconstitucionalidade. Mas isto é o que Jair Bolsonaro deseja: mais um pretexto para dizer a seus apoiadores que ele defendeu – e o Supremo negou – a liberdade de expressão.

Uma terceira medida sem a menor viabilidade, mas que por isso mesmo Jair Bolsonaro vem dedicando cada vez mais energia, é o voto impresso. O STF já declarou que é inconstitucional, pelos riscos de manipulação e pela desproporção do custo econômico, a obrigatoriedade da impressão de registros de votos depositados de forma eletrônica na urna. Na decisão, o Supremo lembrou que não há nenhum indício de fraude nas urnas eletrônicas. A fraude existia antes, quando se utilizava cédula de papel nas eleições.

A inviabilidade do voto impresso pouco importa, no entanto, a Jair Bolsonaro. Seu objetivo é disseminar a desconfiança no sistema eleitoral, para que possa apresentar sua eventual derrota eleitoral como resultado de um complô contra ele – um complô com a participação do Supremo.

O uso do aparato público – em última análise do dinheiro público – para produzir continuamente inconstitucionalidades não é apenas uma afronta ao Supremo. É um deboche com a Constituição e um vil insulto à Nação.

O neocinismo dos generais

O general Pazuello disse na CPI que estava sem máscara num shopping de Manaus porque estava precisamente procurando máscara para comprar. Na manifestação no Rio, ele apareceu sem máscara, foi chamado de “meu gordinho” por Bolsonaro e saudou “a galera que apoia o presidente”.

Como explicar essa falta de seriedade no comportamento público de um general? Pazuello já havia antecipado a explicação na própria CPI.

Questionado sobre a frase “um manda, o outro obedece”, ele respondeu que isso é apenas uma coisa de internet. Na opinião dele, a internet é um espaço onde se pode falar qualquer coisa, sem o mínimo compromisso com a verdade ou a coerência.

O general Augusto Heleno, numa convenção do PSL, cantou o seguinte verso: “Se gritar pega Centrão, não fica um meu irmão”. Todos riram porque associaram Centrão a ladrão com rapidez.

Perguntado sobre isso, depois que Bolsonaro fez um acordo com o Centrão, o general Heleno sugeriu que o Centrão nem existe mais e que sua frase faz parte do show da política.

Assim como o general Pazuello vê a internet como um espaço onde se pode falar tudo, o general Heleno equipara a política a um show, sem correspondência com a realidade da vida do país.


Não é novidade o processo de decadência da política. Promessas, contradições e cinismo fazem com que as pessoas não só desconfiem, e até mesmo sonhem com um fim da política. Os franceses criaram até uma expressão para traduzir essa mistificação: langue de bois, que, em nosso idioma, se aproxima de falas de um de cara de pau.

Há alguns anos, num grande volume sobre democracia, seu organizador, Bruno Latour, registrou um dos prolemas que precipitavam essa decadência: a suposição de que não importam mais os fatos, mas sim as versões de cada um.

Ele citou um momento decisivo, quando Colin Powell, então secretário de Estado dos EUA, apresentou falsas imagens sobre instalações de armas de destruição em massa para justificar a intervenção americana no Iraque.

Os generais cooptados por Bolsonaro chegam à política num momento delicado. Em vez de buscar fortalecer os aspectos positivos dessa prática socialmente vital, eles decidiram navegar nas suas águas mais turvas.

São neocínicos porque se comportam como ex-seminaristas em seu primeiro carnaval. Grosseiramente mentem e expõem sua mentira, porque a consideram intrínseca à nova profissão.

O problema se estende para além dos generais e alcança também a massa de militares incorporada pela administração civil do governo Bolsonaro. Ela encarna outro tipo de degradação da política, muito praticada pelos partidos fisiológicos. A principal característica dessa prática é ocupar cargos apenas pela proximidade política, sem nenhuma relação com o conhecimento específico para realizar as tarefas que deles decorrem.

Um exemplo mais radical é o próprio general Pazuello — e a equipe de militares deslocada para combater a maior pandemia desde a Gripe Espanhola, no princípio do século XX. Pazuello não é medico, não conhecia o SUS nem a doença que combateria, não estava informado das propriedades do remédio que seu ministério indicaria: a cloroquina.

As Forças Armadas trabalham com seriedade e disciplina, embora essa característica, a disciplina, tenha sido também detonada por Pazuello. Mas é ilusório alimentar a partir dessas qualidades uma sensação de onipotência salvacionista, como se os militares pudessem realizar melhor que os civis quaisquer tarefas de governo.

O resultado desses equívocos não será bom. Os generais tornaram-se políticos caricatos, a eficiência militar é colocada em dúvida, a própria preparação do generalato é um enigma diante da performance geral de Pazuello.

Ainda não é exatamente a Venezuela, mas estamos na fronteira.

Pensamento do Dia

 


A dúvida é a arma do negócio

Nos anos 50, um maço de cigarro nas mãos era tão comum quanto um celular é hoje. Foi quando dois pesquisadores ingleses, Richard Doll e Austin Hill, perceberam que os casos de câncer no pulmão cresceram seis vezes no Reino Unido em apenas 15 anos. Suspeitaram do cigarro e iniciaram uma pesquisa que salvaria muitas vidas, mudaria a história da saúde pública e do marketing político.

Para muita gente, a razão do aumento de casos de câncer estava na fumaça de carros, ônibus e caminhões que se multiplicavam com as novas estradas do Pós-Guerra. Como quase todo mundo fumava, inclusive os pesquisadores e os médicos do sistema de saúde, fazia sentido achar um culpado que não questionasse o sagrado ritual do cigarrinho de cada dia.

O estudo publicado em 1954 provou, de forma irrefutável, que fumar aumentava em 16 vezes a chance de desenvolver câncer de pulmão, além de ser também a causa de um surto de doenças cardiovasculares. Os próprios Doll e Hill deixaram de fumar, assim como os médicos, que, expostos a uma avalanche de dados, foram os primeiros a largar o vício.

Parecia ser questão de tempo para o consumo de cigarros diminuir, mas a lógica é frágil quando bate de frente com os interesses de uma indústria bilionária. Com a publicação dessa primeira pesquisa, começou uma guerra de narrativas que duraria décadas. Os executivos da indústria do tabaco se reuniram para discutir como enfrentar a ameaça à saúde de sua galinha dos ovos de ouro: o cigarro. Durante um desses encontros foi criada a arma psicológica que, se injetada nas cabeças da população, ganharia a guerra: a dúvida.

A indústria não atacava os pesquisadores, mas questionava os dados. Contratava outras pesquisas relacionando a poluição à incidência de câncer, ou as doenças cardiovasculares à má alimentação. Profissionais de relações públicas inundando a mídia com resultados conflitantes e com alarmantes pesquisas sobre qualquer outro vilão da saúde que tirasse o foco do cigarro. A nicotina adicionada ao cigarro era uma aliada, fazendo do fumante um dependente ávido por duvidar de qualquer dado questionando o hábito que lhe dava tanto prazer.

Décadas depois, graças a vários vazamentos de documentos secretos, a indústria do tabaco acabou exposta. Produtos criados para criar dependência, dados e índices manipulados levaram os CEOs das companhias ao Congresso americano, onde confessaram, de cabeça baixa, saber, desde os anos 50, do mal que o cigarro provocava. A dúvida se dissipou, fumar virou pecado e foi proibido em espaços públicos.

Turbinada pela chegada das mídias sociais, a maior arma de manipulação de massas já criada, essa estratégia de marketing de combate renasceu nas mãos dos ideólogos e marqueteiros da extrema-direita, prontos para declarar a guerra santa contra o statu quo.

A tática continua a mesma: questionar certezas para criar dúvidas. Negar a ciência, embaralhar dados, reescrever a história, inundar a rede de fake news oferecendo uma realidade paralela a todos os que têm como hobby desconfiar de qualquer fato que contradiga suas próprias opiniões e certezas. O inimigo agora é a imprensa, a academia, a ciência, o liberalismo, todos parte de uma conspiração da elite intelectual de esquerda, que teria como único objetivo o domínio mundial.

A indústria do petróleo e do carvão gerando pesquisas conflitantes com a opinião unânime da comunidade científica sobre a influência do homem no aquecimento global, colocando a pulga da dúvida atrás das orelhas de muita gente e atrasando políticas para a mudança da matriz energética mundial.

O movimento antivacina e seus médicos de Facebook, criando o mito da cloroquina, da vacina com chips da Microsoft, DNA mutante, efeitos colaterais em números astronômicos, minando a confiança da população na única ferramenta disponível para erradicar a pandemia: a vacina.

O marketing da dúvida não conseguiu salvar a indústria do cigarro. Assistindo na CPI às mentiras de ministros sobre a má-fé do governo na condução da pandemia expostas por cartas, documentos, dados e fatos, não tenho dúvida de que, um dia, ser trumpista, negacionista, obscurantista, terraplanista ou bolsonarista será tão constrangedor quanto acender um cigarro num elevador. 

Marcello Serpa

Incompetência fúnebre

A pandemia deu um conteúdo fúnebre à inépcia do governo Bolsonaro. Num primeiro momento, morria-se de Covid. Desde dezembro de 2020, mês em que o Butantan e a Pfizer deixaram de entregar os milhões de doses que o Ministério da Saúde demorou a comprar, morre-se no Brasil de falta de vacina

Aumento da pobreza e falta de comida transformam ovo em 'prato principal' na pandemia

Coloca a panela no fogão, acende, põe um fio de óleo e quebra um ovo. Este se tornou o novo hábito diário da aposentada Maria José de Araújo, de 73 anos, e de milhares de brasileiros nos últimos meses na hora de preparar as refeições.

Com o agravamento da crise financeira causada pela pandemia do coronavírus e as constantes altas do preço da carne, aliados à perda da renda e do emprego, o ovo tornou-se a principal fonte de proteínas de muitas famílias.

"Eu sempre comprava costela, bife ou frango. Mas hoje bife é para rico. Aqui em casa, nem pensar. Quando compro alguma coisa diferente, é coxa e sobrecoxa. Até o pé do frango está caro", afirmou Maria José, que mora com o marido e a filha na Brasilândia, zona norte de São Paulo.

"Antes, a gente sempre colocava carne na mesa. Mas hoje a gente faz tudo com ovo. Omelete, ovo frito, cozido. Daqui a alguns dias, a gente não vai aguentar mais", contou à reportagem.


Um estudo do grupo de pesquisas Food for Justice: Power, Politics, and Food Inequalities in a Bioeconomy (Comida por Justiça: Poder, Política e Desigualdades Alimentares em uma Bioeconomia, em tradução livre), da Universidade Livre de Berlim, apontou que o ovo foi o alimento que teve maior aumento no consumo dos brasileiros durante a pandemia: 18,8%.

Na avaliação dos pesquisadores, esse crescimento no consumo de ovos aponta para uma clara substituição no consumo de carne, que teve redução de 44%.

O número de pessoas que disse ter comido mais carne, entre novembro e dezembro de 2020, foi de apenas 3,2%.

O vendedor de ovos Leonardo Carlos Ribeiro Cabral, de 37 anos, sentiu essa mudança. Suas vendas dispararam.

Antes da pandemia, ele vendia cerca de 1,5 mil a 2 mil caixas de ovos por mês. "Hoje, eu vendo 4 mil", disse.

Três vezes por semana, ele percorre os 70 km que separam a Freguesia do Ó, na zona norte de São Paulo, e a cidade de Mairinque, para buscar ovos.

Cabral entrou nesse mercado há seis anos como ambulante, vendendo cartelas de porta em porta e anunciando o produto por meio de um alto-falante, em uma Kombi.

Mas a perda de renda e a fome durante a pandemia fizeram o negócio de Cabral prosperar. Hoje, ele tem três funcionários que vendem o alimento em carros nas ruas.

"A gente mudou da água para o vinho. Eu tinha duas peruas velhas que usava para vender ovos. Hoje, comprei uma van, comprei um carro novo e estou construindo quatro casas para investimento porque não sei até quando vai durar essas vendas", afirmou.

Cabral contou que percebeu uma mudança no perfil de seus clientes no último ano.

"Antes, as pessoas de classe média não compravam. Hoje, elas são as que mais compram, principalmente quando a Prefeitura fecha os comércios e as pessoas não podem sair de casa. Se eu soubesse que vender ovo seria tão bom, hoje eu teria um galinheiro", afirmou sorrindo.

Ele cita um de seus clientes, que compra ovos para revender: um taxista que deixou de fazer corridas e encheu o carro com o produto para comercializar na zona norte da capital paulista.

Agnaldo Machado dos Santos, de 34 anos, tem história parecida. Ele trabalhava como motorista de aplicativo, mas foi alertado por um amigo sobre o aquecimento do mercado de venda de ovos e agora usa o carro para vender o produto na rua.

"Eu encho o porta-malas com caixas de ovos, abro em um lugar com grande movimento e fico ali com uma placa por uns 20 minutos. Depois vou mudando de lugar ao longo do dia. Chego a ganhar 50% a mais do que fazendo corridas", contou Santos.

O economista Marcelo Neri, diretor do centro de estudos FGV Social, afirmou que a queda na renda provocada pela pandemia agrava uma tendência crescente de insegurança alimentar que o Brasil atravessa nos últimos anos.

A Food for Justice apontou que, em abril de 2021, 59,4% dos domicílios do país se encontravam em situação de insegurança alimentar. Isso ocorre quando uma família diz ter preocupação com a falta de alimentos em casa ou já enfrenta dificuldades para conseguir fazer todas as refeições.

De acordo com o estudo da Food for Justice, os mais altos percentuais de insegurança alimentar são registrados em famílias com apenas uma fonte de renda (66,3%). Isso se acentua ainda mais quando essa responsável é uma mulher (73,8%) ou uma pessoa parda (67,8%) ou preta (66,8%).

Uma pesquisa feita pelo Data Favela, uma parceria entre Instituto Locomotiva e a Central Única das Favelas (Cufa), em fevereiro, apontou que, entre os 16 milhões de brasileiros que moram em favelas, 67% tiveram de cortar itens básicos do orçamento com o fim do auxílio emergencial, como comida e material de limpeza.

Outros 68% afirmaram que, nos 15 dias anteriores à pesquisa, em ao menos um dia faltou dinheiro para comprar comida. Oito em cada dez famílias disseram que, se não tivessem recebido doações, não teriam condições de se alimentar, comprar produtos de higiene e limpeza ou pagar as contas básicas durante os meses de pandemia.


A crise fez o consumo de carne no Brasil chegar ao menor patamar em 25 anos, de acordo com a Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), desde o início da série histórica, em 1996.

Hoje, cada brasileiro consome, em média, 26,4 kg de carne por ano. Isso significa uma queda de quase 14% na comparação com 2019, um ano antes da pandemia. A queda em relação a 2020 é de 4%, segundo o Conab.

Economistas apontam que, com a alta do dólar, os produtores preferem vender a carne para outros países, como a China, que paga em dólares.

Mas nem o ovo escapou ileso da crise. De acordo com o Índice de Preços ao Consumidor da Fundação Getúlio Vargas, no último ano, seu preço teve uma alta acumulada de 11,45%, enquanto a inflação do consumidor foi de 6,35%.

"Se o ovo não tivesse ficado mais caro, eu estaria vendendo ainda mais", disse Leonardo Cabral.

O preço da sua caixa de ovos, com 30 unidades, passou de R$ 10 para R$ 15, um aumento de 50%.

A aposentada Maria de Araújo conta que, onde ela mora, o ovo encareceu bastante também. A cartela com uma dúzia, que custava R$ 8, hoje sai por R$ 13.

"Se continuar assim, até ovo vai ser difícil comprar", afirmou à BBC News Brasil.

O economista Marcelo Neri, da FGV, diz que a procura maior pelo ovo causou essa subida repentina do preço.

"O aumento do preço das commodities e a variação cambial causaram uma alta nos alimentos", afirmou o professor da FGV.


Isso faz com que as famílias procurem por proteínas que tenham um custo mais baixo. Mas Neri pondera que o mercado deve se ajustar e os preços devem diminuir, seguindo tendências históricas.

"O aumento das commodities é uma boa notícia para a macroeconomia brasileira, mas ruim para o consumidor. A notícia boa é que esse aumento não veio para ficar. O preço das commodities flutua, e eu diria que isso não é um choque permanente", afirmou Neri.

Mas o economista ressalta que há uma tendência de piora da insegurança alimentar desde 2014. Um fenômeno, segundo ele, ligado ao aumento da desigualdade e pobreza.

Neri explica que o auxílio emergencial ajudou a reduzir esse problema, mas que parte desse benefício foi anulado pelo encarecimento dos alimentos.

Para o economista, a melhor solução hoje para amenizar o impacto na alta dos preços é investir na melhoria de renda da população e aguardar para que os valores voltem a patamares pelo menos mais próximos dos anteriores.

"As outras alternativas, como o controle de preços, não são boas. A gente já experimentou isso no passado e viu que causa escassez porque as pessoas consomem e gera uma corrida que não chega a lugar nenhum. Temos que pensar em políticas estruturais e de melhora de renda da população", afirmou Neri.

O Brasil de Bolsonaro já não é uma democracia

“Corrupção é um sintoma de que alguma coisa está errada na gestão do estado [..] Em presença da corrupção, as instituições públicas são usadas para enriquecimento pessoal e para distribuição de benefícios a outros corruptos” (Corrupção e governo: causas, consequências e reforma/ Susan Rose-Ackerman e Bonnie Lafipka – Rio de Janeiro: FGV Editora, 2020).

Trata-se de uma obra densa. A síntese conceitual revela a profundidade da corrupção e sugere que o combate ao deletério fenômeno atenda à múltipla visão da diversidade das causas: políticas, econômicas, sociais, institucionais e culturais.


De logo, alerta para o discurso moralista, retórica populista e bandeira do combate aos fatos visíveis com ênfase nos aspectos jurídico-penais: um apelo simplista e sedutor quando as raízes da corrupção exigem uma agenda reformista ampla e consistente. O enfrentamento da questão, além de permanente, se coloca diante de uma “economia criminal” que permeia o tecido social das nações de modo complexo e sustentada por uma força destruidora a exemplo das estratégias e do aparato tecnológico do narcotráfico.

É um sistema globalizado que resulta de um conluio entre autoridades e criminosos: a máfia do século XXI. O Brasil ultrapassou a era da propina e do pixuleco. No arsenal das armas, a mais eficiente é a solidez da democracia. Somente a força do regime e de suas instituições são capazes de atacar o crime e assegurar a paz social.

Nesta linha de raciocínio, Manuel Castells, respeitável estudioso da dinâmica social da democracia e pioneiro na percepção da “sociedade em rede”, em parceria com Francisco Calderon, lançaram recentemente no Brasil A nova América Latina (Ed. Schwartz – Rio de Janeiro, 2019).

Em entrevista ao Valor Econômico, Castells afirma, a partir de constatações empíricas, “a falta de representatividade dos políticos”, acrescentando que “os movimentos sociais são a defesa contra os retrocessos”. Para medir o aumento da violência e da desigualdade, criaram o índice de desenvolvimento desumano

Sobre o nosso país, foi contundente: “O Brasil de Bolsonaro já não é uma democracia […] a corrupção em grande escala, exemplificada pela Odebrecht, condicionou a política brasileira. Parte do Congresso é uma coleção de caciques regionais e grupos de pressão privada […] Tudo isso não é democracia porque a democracia é mais do que votar a cada quatro anos em eleições condicionadas pelo dinheiro e poderes ocultos”.

Porém, esperançoso, diz: “Há vida depois de Bolsonaro”.

Que prevaleça a mediania aristotélica: “virtude está no meio, os extremos são os vícios”.

Essas capas são uma mentira

As capas do Globo e do Estadão de hoje (domingo) são muito mais do que uma vergonha histórica. Grandes jornais, com responsabilidade pública, traindo os fatos. Centenas de milhares de brasileiras e brasileiros ocupam as ruas do Brasil gritando “Fora, Bolsonaro” e o Globo dá como manchete “Pib reaquece” e o Estadão fala de “turismo”. Centenas de milhares de brasileiras e brasileiros gritando nas ruas “Eu te Responsabilizo, Bolsonaro” e o Globo e o Estadão acham que podem simplesmente minimizar – e tanto têm certeza que podem, que minimizam. Fato, que fato? Notícia, onde? Centenas de milhares de brasileiras e brasileiros nas ruas e o Globo e o Estadão acham que não é manchete. Tipo… quase nada aconteceu.


A NÃO cobertura do 29M por grande parte da grande imprensa dá a dimensão da gravidade do que estamos vivendo, o que sabemos bem, e dá a dimensão da complexidade do que estamos vivendo, para além do que seria possível imaginar. Os grandes jornais acham que podem ignorar a realidade e continuar se apresentando como imprensa. Podemos pensar que, além de todos os significados, não aprenderam nada com a ditadura militar. Daqui uns 30 anos vão vir com explicações, arrependimentos e mea culpas. Mas é muito pior do que isso. Fizeram uma escolha – e fizeram essa escolha mesmo sabendo o que ela custa para um jornal. Sacrificaram o jornalismo em nome dessa escolha. Se alguém ainda não tinha entendido, agora entendeu.

Significa muito o que aconteceu nessas capas. Vai render muitos livros e teses acadêmicas. Mas, agora, neste momento, precisamos lutar pela vida. E já entendemos que uma parcela significativa da grande imprensa já começou a sacrificar os fatos e a ocultar a realidade, mesmo que a realidade sejam centenas de milhares de brasileiras e brasileiros na ruas.

Um jornal mostra se merece esse nome nos momentos cruciais vividos pela sociedade, aqueles em que a imprensa é mais necessária do que nunca à democracia. A ampla crise vivida pelo Brasil poderia ser o momento em que a imprensa mostraria o quanto é necessária e insubstituível, como tem acontecido em outros países, em que a imprensa voltou a ser valorizada como agente fundamental para o restabelecimento da verdade. O que testemunhamos com essas capas é uma traição a todos os princípios do jornalismo. Essas capas são uma mentira. Felizmente, esses não são os únicos jornais do Brasil. Leiam (escutem e assistam) quem tem respeito pela nossa inteligência, quem tem respeito pelo jornalismo, quem tem respeito pelos fatos.

Sinto nojo. Mas também uma enorme tristeza.

sábado, 29 de maio de 2021

O protesto nacional deste sábado e a CPI da Pandemia encurralam presidente

O presidente Jair Bolsonaro começa a viver seu declínio. Seu nervosismo, às vezes visível e às vezes camuflado, indica que começa a sentir na carne que até seus demônios começam a abandoná-lo.

Sua amarga e ao mesmo tempo sarcástica resposta dias atrás ao seu clã matutino de fanáticos, “para quem não está contente comigo, tem Lula em 2022”, é de um grande simbolismo que reflete seu estado interno de raiva.

Seu instinto político captou a força do amistoso e histórico encontro entre Lula e Fernando Henrique Cardoso, que agitou todas as forças do poder. Bolsonaro sabe que foi um golpe baixo contra ele que poderia ser fatal.


Todo esse pano de fundo de um Bolsonaro que começa a sentir que a terra se move sob os seus pés e talvez por isso tenta aparecer a cavalo ou de moto como para camuflar sua debilidade e mostrar uma força que já não tem.
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Neste contexto, é significativa a CPI da Pandemia no Senado, que está conseguindo atrair de uma maneira impensável a atenção da rua, pois está sendo seguida com especial interesse por todas as classes sociais. É como se tivesse sido criado um consenso de que a CPI trairia o quase meio milhão de vidas sacrificadas se, como tantas outras, terminasse em nada.

Há uma espécie de sentimento comum de que a CPI, mesmo que não seja definitiva para apear do poder Bolsonaro, negacionista e genocida declarado, deixará o presidente fustigado, comprometendo seriamente suas chances de reeleição. O “fora Bolsonaro” e o “qualquer um é melhor do que ele” tornaram-se um mantra nacional.

Daí a importância de que bem no meio dos trabalhos da CPI, a oposição, sob o signo do “fora Bolsonaro”, tenha convocado para este sábado um protesto nacional que, apesar da pandemia, já adquiriu outro forte simbolismo contra os demônios do bolsonarismo que envenenam este país, intoxicando-o com os gases do ódio e da guerra entre irmãos.

Os símbolos sempre carregam uma grande força renovadora ou destrutiva. Hoje em um Brasil atormentado por um clima de asfixia coletiva, o simbolismo da CPI junto com a convocação anunciada da primeira manifestação nacional contra o Governo que acontecerá, segundo o jornal Folha de S. Paulo, em 110 cidades, entre elas 27 capitais, podem significar o início de uma mudança radical com o cerco ao inferno em que tentam transformar o país.

Por isso é fundamental que a CPI e as manifestações, apesar das restrições impostas pela pandemia, não fracassem. A oposição tem formas criativas e simbólicas de dar destaque e força às manifestações por meio de slogans significativos e gestos como pedir que as famílias que desejam sair do pesadelo demoníaco do bolsonarismo coloquem nas janelas algo que represente o luto pelas vítimas da covid-19, resultado da política destrutiva e da ausência de sentimentos de dor e compaixão da sociedade pelo extermínio ao qual uma política de morte está arrastando o país.

A direita soube usar no passado os símbolos e os slogans nas manifestações a favor do impeachment de Dilma Rousseff e do “fora Lula” que ajudaram a Lava Jato a prender o ex-presidente e a tirar Dilma do poder.

É fundamental que desta vez as forças políticas de oposição que se reunirão no sábado saibam sensibilizar uma sociedade em busca de uma solução urgente contra o negacionismo bolsonarista da pandemia que tenta fazer do Brasil o maior cemitério do mundo.

Que o cerco a Bolsonaro está se agudizando como solução para resgatar a esperança perdida neste país é revelado pelo fato de que até o presidente da Câmara, que foi apoiado por Bolsonaro, tornou público pela primeira vez que começou a analisar os mais de 100 pedidos de impeachment que até agora dormiam sonhos tranquilos.

Sinal de que até os políticos que tinham começado a acolher o genocida parecem ter pressa em se afastar dele. Tudo isso graças ao fato de que a rua começa a pressionar os governantes e as instituições a abandonar uma política suicida já reconhecida mundialmente.

O Brasil, apesar de todos os seus problemas ainda não resolvidos como o racismo herdado da escravidão e suas abissais desigualdades sociais, é um povo que o mundo sempre viu como um laboratório no qual se poderia construir uma nova civilização baseada não apenas em suas riquezas naturais, mas também espirituais e de sincretismo cultural e religioso.

Justamente tudo que o bolsonarismo-raiz tenta destruir com sua política demoníaca. Uma política que desperta nas pessoas essa zona de sombras, de ódio e de violência que habita em cada um, algo que só a cultura e uma convivência civilizada são capazes de neutralizar, deixando que prevaleçam os sentimentos positivos do abraço e do desafio à dureza da vida, que são o melhor da alma brasileira.

Pensamento do Dia

 


Uma procissão de mortos

Sic transit gloria mundi (assim passa a glória deste mundo). Os papas pronunciam a frase três vezes, na cerimônia de posse, para lembrar a miséria que há na vaidade das pompas terrestres. Não por acaso, para os gregos, ídolo é o mesmo que fantasma, como que reconhecendo a dimensão especial dos papéis que lhe são reservados. Tanto que Scott Fitzgerald dizia (em O Grande Gatsby) “mostre-me um herói e escreverei uma tragédia”. E segue a vida. E vem a morte. Não há como alterar esse roteiro.

Momento mais evidente dessa finitude, e também do prazer intenso de viver, para mim é quando perco alguma pessoa próxima. E, de logo, tomo emprestado frase atribuída a Chopin, “não me compreendam tão depressa”. Porque essa aparente contradição entre sentimento de perda, e alegria indescritível, só pode ser explicada em função do cenário em que tudo isso ocorre, a alameda que vai da pequena capela do Cemitério de Santo Amaro (Recife) até o portão de entrada que lhe fica em frente. Depois de cada um desses enterros, invariavelmente, me dirijo a essa capelinha. E, dali, “vou por onde me levam meus próprios passos”, em palavras de José Régio (Cântico Negro), até o portão e depois à rua. Um caminhar lento, e em tão profunda solidão, que sou capaz de ouvir meus próprios passos, como se fossem de outra pessoa. E, em certo sentido, são mesmo.

Capela e portão convertidos em símbolos. Com diferenças grandes. A porta da capela está usualmente fechada; e o portão, aberto sempre. Atrás fica um homem morto, pregado na cruz; em frente, pessoas de carne e osso, vivendo suas bem-aventuranças e seus martírios. Atrás, apenas uma imagem de pureza e perfeição; em frente, vendedores de amendoim, motoristas de táxi, curiosos, pedintes, o circo da realidade. Atrás, a inscrição Jesus Nazarenus Rex Judaeorum; à frente, no portão, inscrição nenhuma. Mas quando passo por ele sempre lembro, por alguma razão imprecisa, da porta do inferno na divina Comédia, de Dante, onde se lê “deixai toda esperança, vós que entrais”.


Nessa caminhada, de um lado e de outro, uma legião de mortos que um dia tiveram as mesmas esperanças e desalentos que hoje temos. Mulheres e homens como nós, velhos e moços, gordos e magricelos, ricos e desvalidos, brancos, negros, pardos, mulatos. Todos democraticamente enterrados, lado a lado. Lembrando aos que passamos, com seu silêncio impotente, que o destino do homem é a igualdade. É o esquecimento. É o pó.

Olhando esses desconhecidos, sempre com muita pena (eu que nem os conhecia), fica para mim claro que o homem não nasce quando nasce, nem morre quando morre. Ele começa a nascer muito antes de se converter em feto, já traçando raízes nos locais onde andará, nos amigos que terá, quase como se seu itinerário já estivesse previamente traçado. Assim é com quase todos. E ele morre, no enterro, apenas sua primeira morte; para depois ir morrendo outras mortes, devagar, primeiro na memória dos amigos, depois em suas ideias, até que um dia desaparece de todas as lembranças para cumprir seu destino de ser, completamente, só nada.

O amigo Pessoa disse (em Sá Carneiro) “Nunca supus que isto que chamam morte/ Tivesse qualquer espécie de sentido”. E essa morte é sempre dura. Sinto isso agora, na carne, por terem sido tantos, em volta, e em tão pouco tempo. Menos de um ano. Uma sobrinha, Juliana. Minha mãe (ah!, minha mãe). Dona do Carmo (mãe de Lectícia). E agora, nessa terça, nossa irmã Patrícia. De Covid. Mesmo já tendo tomado a segunda dose da Coronavac quase 50 dias antes. Mulher de Pedro Arruda. E mãe de Gustavo (com Renatinha) e Bruna (com Alonso). Éramos 6, como no título do romance de Maria José Dupré. Hoje, somos apenas 5, a melhor parte de nós se foi. Choro por ela e por todos nós.

Alicerces de (des)governo


Bolsonaro, quando sai na rua, precisa de mil policiais fazendo segurança. Falar que estou com medo de ir pra rua?! Ele, que tá com metade do que tenho nas pesquisas, é que tem que ficar com medo. Daqui a pouco, só vai poder visitar quartel e fazer reunião com miliciano
Lula

Nem tudo é culpa da Covid-19

Nunca me acostumarei com o fato de os problemas essenciais que afligem o país passarem longe da agenda política brasileira. Do mesmo modo não me conformo com a passividade com que a sociedade reage a essa indiferença.

Talvez isso seja fruto de uma cultura fatalista e complacente que acha que tudo é como deveria ser e que os homens não têm o poder de mudar o seu destino.

A política brasileira hoje funciona no modo sobrevivência. A grande maioria dos políticos, esteja no Legislativo ou no governo, tem apenas um único grande desejo – o de preservar posições no poder.


Por isso, evitam qualquer tentativa de mudança, cujas consequências podem ser rupturas difíceis de prever com clareza. Governos e parlamentos usam todos os meios de que dispõem para promover mudanças triviais e cosméticas, fingindo mudar apenas para que tudo fique essencialmente como está.

A força deste desejo de conservação tem sido capaz de paralisar um gigante que é este nosso país, tão rico de toda a sorte de recursos e povoado por uma gente de muitas origens e, na sua maior parte, criativa, inteligente e trabalhadora.

Nos últimos 40 anos, após nossa sociedade ter atingido um certo nível intermediário de renda e de maturidade, o medo do crescimento e da transformação parece ter sufocado nossas energias.

O Brasil tem hoje uma das maiores taxas de desemprego no mundo, em torno de 14,2%. Esse dado oculta certas particularidades que o tornam mais grave. Do total da força de trabalho, além dos desempregados, que somam hoje mais de 14 milhões, temos cerca de 10 milhões que trabalham sem carteira assinada e 23 milhões que trabalham por conta própria, ambos os grupos privados de proteção social.

Todos esses dados mostram como é precária e vulnerável a vida na maioria das famílias brasileiras. Alguém poderá dizer que grande parte deste estado de coisas se deve à pandemia e às medidas de isolamento social que foram adotadas para proteger as pessoas.

Infelizmente, o que é verdade para muitos países no mundo não é verdade para o Brasil, pois a situação crítica do nosso mercado de trabalho é estrutural e antecede o surgimento da Covid.

Em alguns países a pandemia provocou muito desemprego e pobreza. Nos Estados Unidos, antes da Covid havia praticamente pleno emprego, com apenas 4% da população desempregada. No auge da doença o desemprego subiu para 15%.

Passados os piores momentos a taxa de desempregados recuou para 6%. No conjunto dos países desenvolvidos a pandemia fez o desemprego saltar de 5%, em média, para 9%, mas os índices agora já estão voltando à normalidade.

No Brasil a situação é muito diferente. Nossas taxas de desemprego e a precariedade do trabalho estavam elevadas há muito tempo. Já em 2018 o desemprego estava em 12,8%. No auge da pandemia, em 2020, a taxa subiu para apenas 13,5% e agora, com a vida voltando aos poucos ao normal, foi novamente para 14,2%.

O alto desemprego no Brasil não é definitivamente o resultado das medidas sanitárias adotadas por Estados e Municípios.

É uma condição estrutural provocada pelo baixo crescimento crônico de nossa economia. Nosso país há muito tempo mostra grande incapacidade de criar empregos porque não cresce e não investe em novas atividades produtivas.

Não tenho dúvida de que este é nosso problema principal: empregar os brasileiros dispostos a trabalhar e criar condições para que o trabalho por conta própria esteja protegido contra as incertezas da vida econômica.

Por isso, nossas políticas públicas precisam priorizar o crescimento acima de qualquer outro objetivo. E, paralelamente, assegurar boa educação para todos, com ênfase na formação técnica dos que atendam às exigências de um trabalho cada dia mais dependente de novas tecnologias.

Se o Estado brasileiro não for capaz de fazer isto, em breve todos os seus recursos serão pequenos apenas para conter a revolta e as desordens de uma população que perdeu todas as suas esperanças.

Imunidade de quê?

Ninguém sabe quando nem como a pandemia irá acabar. Todos temos o direito de arriscar palpites, uns com maior fundamentação do que outros, mas continuam a ser apenas e só palpites, por mais fórmulas, algoritmos e equações que tenham sido usados para os calcular. O problema, no caso deste vírus, é que sempre que tentamos adivinhar o resultado do “jogo”, mais concretamente o momento em que ele terminará, acabamos, na maior parte das vezes, por criar esperanças infundadas em muitas pessoas. Pior: sempre que nos convencemos de que o fim estava próximo, acabámos por vê-lo afastar-se, afinal, para mais longe. E, invariavelmente, trocar a esperança pela desilusão – acompanhada, ainda por cima, da impaciência e, tantas vezes, da frustração.


É importante manter acesa a chama da esperança nesta luta contra a pandemia. Até porque há razões para isso. Uma delas é a certeza que nos deve sempre animar de que se a espécie humana é a dominante no planeta em que habitamos, isso deve-se à sua capacidade de resistência e de sobrevivência. À forma como conseguimos, através da inteligência e do trabalho em conjunto, superar as dificuldades e vencer os perigos. A esperança é fundamental para combater o desânimo, ajudar-nos a cerrar fileiras e ultrapassar obstáculos. Por isso, da mesma maneira que devemos manter a esperança acesa, precisamos também de saber combater a corrente das falsas esperanças. Em especial, a ideia de que isto está quase a acabar e que já podemos relaxar, sem preocupações.

Podemos, por favor, deixar de falar na imunidade de grupo ou, no mínimo, de a estar sempre a prometer para o fim de cada folha do calendário, como se isso fosse a panaceia imbatível para dar cabo do vírus que nos atormenta? Para que serve estar permanentemente a agitar a meta dos 70% de vacinados, arriscando datas precisas e tudo, se, em boa verdade, ninguém pode dar garantias absolutas de que, depois disso, a pandemia ficará controlada?

Percebem-se as justificações políticas desta opção: após um início de vacinação feito aos trambolhões, em que as doses chegavam a conta-gotas e com uma lentidão exasperante, é preciso demonstrar que, agora, o processo entrou – e ainda bem! – na chamada velocidade de cruzeiro. Com uma média de 100 mil vacinações por dia, as contas são fáceis de fazer e qualquer um percebe que, num País com apenas dez milhões de habitantes, a tarefa de conseguir proteger a esmagadora maioria da população não precisa de ser tão prolongada como noutros países mais populosos. Estão criadas as condições, aliás, para que tudo corra bem e se alcance mesmo os tais 70% de imunizados algures durante o verão.

Mas não disparem logo os foguetes, quando esse número for alcançado. Comecem, desde já, a refrear as euforias e as declarações de vitória. Nem o objetivo final é a suposta imunidade de grupo, nem este jogo termina com a marca dos 70 por cento. A meta deve ser a de conseguir ter toda a população vacinada. O jogo termina aos 100% e não aos 70%, de vacinados, por mais que esse número possa parecer, agora, mágico e radioso.

Cantar vitória aos 70% é correr o risco de, a partir desse momento, muitas pessoas não quererem ser vacinadas, por pensarem que já estão protegidas pela tal imunidade de grupo. Não é fantasia – esse fenómeno já ocorre em países onde a vacinação vai mais adiantada, como os EUA e o Reino Unido, lançando alguns sinais de alarme, devido ao aparecimento de novas variantes, que podem encontrar entre os “fugitivos” das vacinas espaço para criar focos de transmissão, com consequências imprevisíveis.

A verdade, insisto, é que ninguém sabe, de ciência certa, como tudo isto irá acabar, nem quando o vírus deixará de ser uma ameaça. A prioridade tem de ser, por isso, a vacinação total. Atingir os 70% será só o prémio depois de escalada a montanha, mas ainda vai ser preciso pedalar mais até à meta. E trabalhar para que ninguém caia na descida.

sexta-feira, 28 de maio de 2021

Bolsonaro e Pazuello zombam das Forças Armadas

Jair Bolsonaro já logrou êxito no seu intento de desmoralização das Forças Armadas. Ao colocar o folgazão general Eduardo Pazuello debaixo de sua asa e impedir que ele sofra a punição que sua conduta ao comparecer a um comício político exigiria, o presidente da República liberou geral a anarquia militar. E faz isso porque quer se beneficiar dela.

É puro método a estratégia de corromper as instituições por dentro, que o bolsonarismo, tal qual uma praga de cupins, vai levando a cabo ao longo dos últimos dois anos e meio.

No caso das Forças Armadas, o atual presidente primeiro ganhou os generais com o canto da sereia da necessidade de acabar com a corrupção do PT. Graças a essa fantasia, fez com que os generais, que antes o desprezavam, passassem a vê-lo como seu candidato em 2018, a ponto de cruzarem, já ali, a linha ao ameaçar não aceitar a decisão do STF caso fosse concedido habeas corpus para soltar o ex-presidente Lula.

Vencida a eleição, os generais foram instalados de volta no poder, com direito a um vale-tudo em que os da ativa assumiram cargos políticos, algo que todos os conhecedores da hierarquia militar sempre alertaram que daria confusão.


A ascensão política rendeu frutos: foi feita uma reforma da Previdência sob medida para os fardados, cujos privilégios já eram evidentes, mas estão escancarados agora: um aumento de R$ 5,5 bilhões nos gastos com pessoal militar em 2020.

Como o poder vicia, os generais foram perdendo a mão dos limites, e cada vez mais atrelando a instituição aos anseios de Bolsonaro. Aceitaram graciosamente seu pedido de cabeça do comandante do Exército, Edson Pujol.

O general Braga Netto topou de bom grado substituir Fernando Azevedo e Silva, um de seus pares submetido ao moedor de carnes bolsonarista — mais um, depois de Santos Cruz e Otavio do Rêgo Barros.

E agora o Exército se prepara para uma nova capitulação: deve fechar os olhos para o escárnio da participação de Pazuello num comício de reeleição de Bolsonaro, zombando da CPI da Covid e da população enlutada.

A carta entregue pelo ex-ministro da Saúde para explicar sua presença num caminhão de som, sem máscara, para ouvir um discurso de campanha do presidente apenas dois dias depois de mentir perante a CPI já nasce um clássico do cinismo.

Pazuello diz que não foi a um ato político, mas a um… passeio de moto! Que o fato de não ser um evento político estaria demonstrado porque, vejam só, Bolsonaro não é filiado a nenhum partido. “Não contavam com a minha astúcia”, se jactaria o personagem mexicano Chapolin Colorado.

E a desculpa esfarrapada deverá ser engolida pelo comando das Forças Armadas, que ainda aceitou um “cala-boca” dado por Bolsonaro, que proibiu a emissão de qualquer nota a respeito da conduta de Pazuello.

A voracidade em subverter a disciplina é tamanha que ontem mesmo o presidente reuniu Braga Netto, o comandante do Exército e soldados numa preleção política, com direito a falar de 2022 e polarização eleitoral, ao inaugurar uma obra em São Gabriel da Cachoeira. No discurso, voltou a fazer menção à possibilidade de pedir que as Forças Armadas cumpram uma certa “missão”, “dentro das quatro linhas da Constituição”, para restabelecer uma “normalidade” que ele diz estar sendo conspurcada.

Essa interpretação mentirosa do que a Constituição determina como papel das Forças Armadas tem sido repetida pelo presidente e seus aliados em tom de ameaça toda vez que Bolsonaro se vê acuado, seja pela CPI, seja pela queda da popularidade, seja por pesquisas que mostram que ele não terá vida fácil nas urnas no ano que vem.

Ao aceitarem fazer parte desse roteiro com intenções golpistas, as Forças Armadas se apequenam e permitem a implosão da hierarquia e da disciplina, que deveriam ser seus dois pilares inegociáveis.

'Brasil, Um País Somente'

O Brasil é um fingidor, e por isso mesmo mente. Compulsivamente mente e chega a fingir que não existe um ditador, que, aliás, deveras mente. Mente solenemente. Que não existe pandemia, que cloroquina cura gente, que vacina é uma aguinha, tudo eloquentemente.

Realismo mágico em três versões

Com o realismo mágico, García Márquez reportou o mundo a sua volta, em particular o de sua juventude vivida no interior da Colômbia. Sim, era uma espécie de reportagem sobre o extraordinário embutido nas histórias narradas por seus avós e de modo algum criado por ele. Na minha infância, eram comuns os casos situados na fronteira entre o real e o imaginário, entre o visível e o invisível. Eu também — e muita gente de sessenta anos ou mais — poderia ter inventado, se me fosse dado talento, o realismo mágico, bastava registrar, ao lado de mulas sem cabeça e sacis, as peripécias de meus antepassados. O avô materno de minha mãe colocava maçãs na cabeça de suas filhas e, de uma certa distância, atirava na fruta. Verdade? É o que sei. Nas mãos de Gabo, suspeito, as maçãs seriam para lá de rubras e as meninas, apesar de pálidas, esperariam os tiros de olhos abertos.


O escritor colombiano não só registrou as histórias de seus ancestrais, falsas ou verdadeiras, o que ele não poderia atestar, como também espalhou, a seu gosto, ervas e pimenta sobre elas. Não fosse assim, não seria um escritor, mas um contador de causos. Nem contador de causos, já que esses, ao relatar o que viram ou ouviram, dão um jeito no inverossímil da realidade. Não sendo escritor nem contador de causo, García Márquez talvez pudesse ter sido um contabilista com talento para esconder do fisco parte da renda de seus clientes. Sempre projeto sobre o Nobel de 1982 a pecha de mentiroso. Creio que lhe cai bem.

O boom da literatura fantástica ficou para trás. Entretanto esses dias tão cheios de assombros parecem propícios à exploração do mágico. Sendo assim, sugiro três argumentos, que podem ser explorados em diferentes nichos de mercado, àqueles que nalgum canto do universo escrevem sob a bênção do velho Gabo. Corram à cozinha, separem os temperos mais picantes e mãos à obra.

Distopia: no lugar dos coronéis déspotas, velhos e sozinhos, o personagem é o homem orgulhoso da própria ignorância e fiel à violência. Ele tem o olhar vidrado, não como o de um louco, mas como o de uma besta. Recusa o passado, encantado ou não, por ser um tempo morto. Seu foco são o presente, para desfrutar as benesses da fortuna, e o futuro, para garantir a boa vida dos descendentes e perpetuar o próprio nome como um herói da pátria. Ambicioso e gabola, apresenta-se numa versão mais que requentada do velho caudilho. O déspota atualizado percebe a passagem do real para o virtual, no qual age. As fake news, sua mão sobre o novo mundo, trocam o acaso e a riqueza do contraditório por algoritmos que escravizam, inicialmente, aqueles que o escolheram como libertador e, em seguida, os demais.

Humor: o olhar vidrado do poderoso expressa o assombro de quem não entende uma vírgula do que está se passando. Ele é o menino do “A vida é bela” que, ao crescer, continuou a enxergar o real como um jogo. Em vez de viver, joga, e tudo para ele — inclusive ou principalmente o horror — é encantamento e beleza. Envolvido em sucessivas situações vexatórias, como a de negar a ciência, bradar contra a democracia e babar de medo, vê-se transformado num palhaço sem graça e sem circo. Quando chega ao limite da tolerância, ao apontar o dedo contra seus detratores e ameaçá-los de morte, causa mais riso que medo. Não fosse, apesar de patético, perigoso, seu desatino seria comovente.

Terror: o novo Messias teria voltado à terra para acabar com a corrupção original, o passo em falso de Adão e Eva, e com a alimentada pela cobiça. Seu discurso enaltece um passado em nada similar ao fantasmagórico e recorrente de Garcia Marques, mas um que nunca existiu, aquele no qual, sob ditadura, homens e mulheres foram felizes. Encontra seguidores fanáticos, no entanto, quando o discurso messiânico se transforma em idiotice política, surgem os desiludidos, que, em número crescente, fogem para lugares distantes, se ajeitam em pequenos sítios e abandonam o mundo virtual, praça de guerra do líder. O até então ídolo se vê incapaz de manejar a tecnologia a seu favor, perdendo assim o poder de influir com suas mentiras na vida de todos, seus partidários ou não. Abandonado, meio milhão de almas penadas o visitam e o aniquilam. Enquanto isso, os fugitivos se agarram à única ideia do falso Messias com a qual ainda concordam, a de o passado ter sido o melhor momento não exatamente de suas vidas, mas da existência humana. Empenham-se, então, em reerguer montanhas, replantar florestas, desinventar a agricultura, sobreviver da caça, enfim, dedicam-se a arrastar suas vidas cada vez mais para trás. Até que chega a hora de enfrentar os dinossauros.

Pensamento do Dia

 


A CPI e o Tribunal de Nuremberg; quem banaliza o quê?

Sempre que a evocação do Holocausto ou do tribunal de Nuremberg servir para justificar a truculência e a morte e para minimizar o horror, estejam certos de que estarei aqui e em qualquer parte para repudiar tal manifestação. E quem fala por mim? As muitas dezenas de artigos que já escrevi a respeito em minha página, hoje hospedada no UOL, e reiteradas declarações em programas de rádio.

Erra a Conib (Confederação Israelita do Brasil) ao atribuir ao senador Renan Calheiros (MDB-AL) a banalização do Holocausto judeu quando o relator da CPI associou o comportamento de homicidas da Covid-19 ao de alguns réus no tribunal de Nuremberg.

Basta voltar à fala de Renan para constatar que ele se referia àqueles que, no julgamento histórico, ou alegavam ignorância ou exibiam uma descarada indiferença. Tenho caros amigos na Conib. Reconheço, como eles sabem e como é público, a importância de sua luta e de entidades congêneres mundo afora.
Pouco importa o que eu pense sobre o atual governo de Israel —e não penso coisas muito boas—, resta a evidência de que o antissemitismo ainda é um "botão quente" em política, frequentemente acionado pelas mais variadas expressões do neofascismo —incluindo o de matriz islâmica. Não é de hoje que participo desse debate.

Mas é preciso saber quando a evocação do tribunal de Nuremberg —ou mesmo do Holocausto judeu— serve para rotinizar o genocídio e o morticínio em massa e quando esse chamamento à memória tem o propósito de encarecer agressões de lesa-humanidade que estão sendo rotinizadas. O zelo não pode correr o risco de, involuntariamente, tomar o lugar da impiedade.


Qual foi o propósito do senador? As perspectivas algo otimistas falam em 700 mil mortos de Covid-19 no país até o fim do ano, quem sabe antes. As mais pessimistas, em perto de 1 milhão. Haveria milhares de vítimas ainda que tivéssemos um governo realmente ocupado em fazer a coisa certa, afinado com a ciência, com a melhor técnica e com o conjunto de dados empíricos colhidos por especialistas.

Mas, como resta evidente e como a CPI tem demonstrado à farta, fez-se o contrário. Eu realmente não creio que a evocação do "tribunal de Nuremberg", apelando ao simbolismo extremo, quando se está na rota da morte de 500 mil "pretos de tão pobres e pobres de tão pretos", degrade a memória do horror.

Atualiza-se a constatação de que ações de Estado podem fazer do morticínio um ativo político.

Hannah Arendt vela, todos os dias, o programa "O É da Coisa", com sua imagem ao fundo. É meu trilho principal. O livro "Eichmann em Jerusalém - Um Relato sobre a Banalidade do Mal" está longe de ser uma unanimidade entre judeus e não judeus que escreveram sobre a política de extermínio de um povo. Acima e além das dissensões, creio que reste um consenso: o Holocausto concerne a todos os homens.

Ninguém tem licença especial, pouco importa a origem, para cometer erros sobre a história do Holocausto ou para ignorar os mecanismos que levam a políticas de extermínio. O genocídio foi capítulo do nazismo, não o contrário. E o nazismo compreende um modo de entender o mundo, de entender o outro, de lidar com a divergência.

Em palestra conferida na Hebraica do Rio, em 2017, Bolsonaro atacou as reservas indígenas e quilombolas —a propósito: está em curso hoje, no Brasil, o genocídio do povo yanomami— e afirmou sobre uma comunidade negra, de egressos da escravidão: "Eu fui num quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Não fazem nada. Eu acho que nem para procriador ele serve mais. Mais de R$ 1 bilhão por ano é gasto com eles". Foi aplaudido. O aplauso foi indigno. As reações de repúdio ficaram bem abaixo da gravidade da ofensa.

Aprendi com um amigo que os judeus "são iguais sendo diferentes e são diferentes sendo iguais". Pareceu-me, de início, mero jogo de palavras. Mas depois compreendi o que há de profundo aí. Que nos emprestem não apenas a sua dor, mas também a indignação que alimenta a luta.

Os que, por ação e omissão, mataram e matam os brasileiros têm de pagar por isso. A metáfora extrema serve para lembrar que, para certos crimes, não pode haver perdão.

Brasil no vagão da xepa


Brasil  ficou de fora da 1a e 2a classes de vacinas. Viaja hoje de carona, no vagão de cargas, com as sobras de insumos e vacinas 
Simone Tebet (MDB-MS)

O hipócrita e falso dilema de Bolsonaro entre a vida e a liberdade

Enquanto a CPI da Pandemia no Senado está sendo qualificada como a da mentira, cientistas e especialistas em medicina anunciam uma terceira onda da epidemia, mais grave e perigosa que as anteriores. E isso quando o Brasil está chegando a meio milhão de vidas sacrificadas, 100.000 a mais que em 10 anos de guerra na Síria entre civis e militares.

A pandemia da covid-19 está apresentando um problema filosófico e teológico antigo, mas frente a uma realidade nova. Trata-se de discutir se a vida vale mais que a liberdade. Sem dúvida, o ideal é poder conjugar as duas realidades: viver em liberdade. A covid-19, entretanto, rompeu essa utopia, e os países tiveram que escolher entre salvar vidas ou sacrificar algumas liberdades.


Até agora, a maioria dos países civilizados preferiu impor o isolamento para salvar vidas. O Brasil está sendo uma exceção com Bolsonaro, como foram os Estados Unidos com Trump. O Brasil poderia ter salvado milhares de vidas se tivesse tido um governo que preferisse preservar a vida a renunciar temporariamente a algumas liberdades.

O Brasil tem hoje um dos chefes de Estado mais radicalmente negacionistas, alguém que desde o primeiro momento contestou as medidas restritivas da liberdade, o que levou o Brasil a se tornar o epicentro mundial da pandemia por semanas. Enquanto no resto dos países os governos preferiram sacrificar algumas liberdades para salvar vidas, Bolsonaro não só se mostrou contrário às medidas desagradáveis impostas pela pandemia como ridicularizou aqueles que optaram por defender a vida, qualificando-os de “covardes” e “frouxos”.

Agora que o Brasil poderia estar às vésperas de uma terceira onda da covid-19 mais grave que as anteriores, volta a ser discutida falsa tese de que a liberdade vale mais que a vida.

É fato que, visto de forma abstrata, o dilema existe e é tão antigo como o mundo. Entretanto, diante do grito de “liberdade ou morte”, as sociedades modernas preferiram a vida, renunciando a certas liberdades.

E continua de pé a tese de que nada vale mais que a vida, nem sequer a liberdade. Existe um consenso mundial de que a vida é o valor supremo. Até um dos argumentos contra a pena de morte é que é preferível a prisão perpétua a perder a vida.

Até perante uma doença grave preferimos aceitar restrições a nossa liberdade para continuarmos vivos. É verdade que alguns, num ato de heroísmo, às vezes sacrificam a própria vida para evitar a morte do próximo. Por isso são considerados heróis, porque não existe nada mais precioso que a vida.

Dias atrás, Bolsonaro propôs a seus fiéis e fanáticos seguidores esse eterno dilema sobre a vida e a morte. Afirmou que seus partidários estão dispostos a sacrificar a própria vida para defender a liberdade, que está dando armas à população para defender essa liberdade, e que “seu Exército” não permitirá que ninguém imponha restrições à liberdade para defender a vida.

E, como o presidente é incapaz, mesmo filosoficamente, de conceber o valor real da vida, já que é um cultor contumaz da morte e da violência, voltou a defender que a liberdade de ir e vir, eventualmente restringida por causa da pandemia, vale mais que a vida.

Seria cômico se não fosse trágico o fato de que alguém como ele, que sempre se declarou a favor das ditaduras castradoras das liberdades, apareça hoje como paladino da liberdade. Justo ele que odeia a democracia e os direitos humanos. Sua única filosofia é manter um poder autoritário, inimigo de qualquer tipo de liberdade, mesmo que à custa de produzir um genocídio.

A CPI que apura eventuais responsabilidades pelo genocídio brasileiro nesta pandemia é a demonstração de que Bolsonaro e seu Governo apostaram descarada e criminalmente em sacrificar vidas humanas em nome de um falso e interessado conceito de liberdade, defendido na verdade por medo de perder o poder. Na filosofia bolsonarista, não existe um diálogo possível entre a vida e a liberdade. O poder absoluto se ergue forte e covarde ao mesmo tempo, à custa de ampliar a triste caravana de mortes e dor que podia ter sido evitada com um Governo que, em lugar de cultuar a morte, fosse um responsável defensor da vida.

A humanidade que se move entre os instintos de vida e de morte sempre procurou formas éticas e políticas de tentar conjugar esses instintos básicos. Desde o início das civilizações, os povos tentaram defender a vida como valor supremo. Do “não matarás” das Tábuas da Lei até as democracias modernas, tenta-se conjugar esse direito inviolável à vida com o direito à liberdade.

Nasceram assim as leis e as constituições que impõem restrições à liberdade absoluta para defender o valor supremo da vida. É um difícil equilíbrio destinado, no entanto, a proteger a vida.

E é essa primazia de sacrificar vidas em nome de uma falsa liberdade, símbolo do negacionismo do presidente brasileiro, que deve ser freada a tempo, afastando-o de um poder suicida, o que poderia devolver o país à normalidade de saber sacrificar algumas liberdades individuais para evitar uma hemorragia de vidas humanas. O Brasil aposta na vida, por isso está em sua grande maioria desobedecendo ao presidente em sua postura contra a vacina. Segundo as últimas pesquisas nacionais, apenas 5% dizem que não pretendem se vacinar.

Esse é o ridículo exército de seguidores dos quais o genocida se gaba ―ele que está cada dia mais sozinho e começa a ser abandonado até por uma parte de seus fiéis admiradores, como os evangélicos. O capitão que costuma aparecer arrogante montando um cavalo, desafiando a morte, se revela diariamente como uma pura e patética ficção que começa a se dissipar como uma bolha de sabão.

O capitão da reserva, afinal, não se importa nem com a vida nem com a liberdade. Seu único sonho e sua única obsessão são manter seu poder, mesmo que à custa de aparecer como um novo e triste tirano da história.