terça-feira, 9 de agosto de 2022

Brasil 2023

 


Limite retrátil

Atenção à competitividade eleitoral de Bolsonaro. Está vivo. Nunca esteve morto. Semeia o caos com uma mão, investindo no 7 de Setembro permanente; e, com a outra, extrai os frutos da parceria que multiplica gabinetes paralelos e distribui codevasfs. Os frutos: o pacotão de estímulos por meio do qual despejará bilhões — o Tesouro bancando a campanha pela reeleição — até o final do ano. Concorre para a instabilidade, mas vai disputar os votos.

Se “é a economia, estúpido!”, o presidente faz — já fez — seu jogo. Contra a inflação, maquia a inflação — e contrata inflação mais duradoura.

Não há limites.

O orçamento secreto — expressão da sociedade entre o lirismo parlamentar e o Planalto — anaboliza a musculatura do sistema. O sistema — Supremo incluído, que não cumpre a missão constitucional de barrar a emenda do relator — trabalhando pelo anti-establishment. Agora é tarde. O anti-establishment virou sócio de Arthur Lira e Ciro Nogueira. O presidente, um autocrata, costurou capilaridade para si, Brasil adentro. Daí que seja estupefaciente a subestimação de suas chances em outubro. Escrevi a respeito em março. O governo sempre pode muito. Um sem limites, então.


E foi a um sem limites que o Parlamento ofereceu exceção à lei eleitoral. Licença para gastar, ao aterramento das regras fiscais. Bolsonaro vai crescer. Não sei até onde; não sei se suficientemente para vencer. Sei que crescerá. Nenhum incumbente, com a máquina que controla, promove tamanha derrama sem colher popularidade.

Não há limites.

O país tem um ministro da Economia cuja relevância — plantada por ele mesmo — estaria no que “não deixa fazerem”. É condição inaferível. A não ser que relatasse à sociedade o que não terá deixado passar. E que se note, para que não nos esqueçamos de que Paulo Guedes não exerce papel de controle externo. Está bem lá dentro. De modo que: não deixaria passar iniciativas espúrias de seus próprios pares, do presidente pelo qual opera. Quem serve — por tanto tempo — a uma gente capaz de propor encaminhamentos ainda piores do que os que prosperaram?

O que será mais torpe do que crédito consignado sobre o Auxílio Brasil?

O que Guedes impediu? Desde onde observo, tudo quanto veio passou; mas com artifício tipicamente bolsonarista: fica menos bárbara uma solução que se deixa para tomar à véspera, tanto mais se em benefício dos pobres. O ministro aprendeu a jogar com a forja chantagista do sentido de urgência. Arrumou R$ 60 bilhões — e a tunga crescerá — instrumentalizando a miséria; fatura em que consta a desoneração da gasolina para os ricos.

Não há limites.

Se você ainda duvida, olhe para a celebração de superávit em 2022. “O primeiro ano no azul desde 2013” — comemora-se. Um governo sem limites; que festeja resultado fiscal positivo ao mesmo tempo que empreende programa de gastos sem precedentes.

Não está para brincadeira uma turma que enche a boca para falar de superávit meses depois de haver formalizado o fim do teto de gastos. Guedes nem ruboriza. Fala, agora, em teto retrátil. Ele me lê. Está atrasado, porém. O teto era conversível quando da PEC dos Precatórios. Naquela época, toda vazada, ainda havia alguma cobertura a flexibilizar. Faz tempo. Foi o início do processo que resultaria — com a PEC Kamikaze — no destelhamento absoluto.

O ministro tem razão: não furarão mais o teto.

Não bastará a cara de pau. A turma aposta na desmemória. E aí talvez cole o embuste de comemorar contas no azul depois de rolados — pedalados — R$ 50 bilhões em precatórios. Aqui, não. Até eu faria gordura assim. Empurrando dívidas para frente. Bancando-me do produto da inflação que se quer combater. Antecipando tudo quanto pudesse em receitas. Lembro os lucros abusivos da Petrobras, consequência da política de paridade de preços. Um estupro! Mas eu quero. Me dá aqui. Superávit.

Não veio a brincar uma galera que se jacta de fabricar superávit enquanto promove gambiarras constitucionais para gastos ilimitados cuja fatura — informa o próprio governo — impedirá resultados fiscais positivos nos próximos anos. A turma que celebra exercício azul em 2022 é a mesma cuja porteira escancarada pela reeleição determina déficits em 2023 e 2024 — para começo de conversa. É o menor de nossos problemas.

A conta aumentará. O dinheiro abunda e escoa hoje. As receitas são extraordinárias. As contas vêm para ficar. Há muitas notas penduradas ao porvir. Mais virão. As receitas, obra das circunstâncias, logo se vão. Gastamos hoje. Nos endividamos hoje. A fatura permanecerá. Ecoará. Estamos nos encalacrando para financiar a campanha de Bolsonaro. Somos doadores compulsórios. Pagamos o Vale Alvorada para o mito.

Superávit na onda da PEC dos Precatórios e do imposto inflacionário, enquanto produz efeitos a PEC Kamikaze. Não há limites. Mas a plateia aplaudiu. É esquecida. Lembro o limite de Guedes: se mexessem no teto de gastos. Limite retrátil?

Salvem os ricos

Antes de adquirirem seus privilégios de consumo, os ricos e as classes médias dos países desenvolvidos enriqueceram a sociedade onde viviam. Enriqueceram, desempobrecendo o país. Puderam ser ricos depois de distribuírem renda e os serviços básicos à população. Para isso, investiram em educação, ciência, tecnologia, inovação, competitividade para aumentar a produtividade e a renda per capita. No Brasil, desde seu início, a elite preferiu adquirir privilégios concentrando renda, sem esperar aumento na produtividade e na renda social. Escolheu o caminho de concentrar a pouca renda de muitos para dar renda elevada a poucos: a riqueza com pobreza.

Graças a essa concentração, apesar da baixa renda per capita do país, nossa minoria rica sempre teve padrões de consumo e de serviços superiores às elites dos países desenvolvidos. Dispõem de moradias luxuosas, em áreas urbanizadas com recursos negados aos pobres, que vivem sem água, nem tratamento de esgoto. Os filhos estudam em escolas especiais, a custos que vão até 30 vezes mais do que os gastos do setor público com as crianças pobres. A riqueza brasileira foi construída sobre a pobreza, da mesma forma que até 1888 era sobre a escravidão, substituída pela apartação.


Para manter a opção de formar riqueza concentrando renda, o Brasil precisou manter sua sociedade dividida: de um lado os ricos, quase sempre brancos, de outro, os pobres separados por muros, catracas, crachás, contas bancárias. Sobretudo em escolas separadas, para perpetuar o vicioso círculo da pobreza que passa de pai para filho. Essa opção não dura para sempre. A desigualdade já obriga os ricos brasileiros a morarem fora do Brasil — verdadeiro ou no exterior.

A minoria privilegiada brasileira está tão viciada em seus padrões de vida que não adianta pedir-lhe sacrifícios para melhorar a vida dos mais pobres. Ao contrário, cada vez que fica difícil manter a desigualdade, no lugar de distribuir, opta por concentrar mais. Para se proteger, prefere a prisão de ouro dos condomínios fechados, no lugar de pagar mais impostos para colocar saneamento nos bairros; escolhe gastar fortunas em escolas privadas dos filhos, em vez de apoiar a implantação de um sistema público gratuito para todos; aceita ficar horas presos no trânsito, a financiar e usar transporte público de qualidade. Adora andar de metrô na Europa, mas aqui investe na infraestrutura viária para seguir nos carros privados com vidro fumê.

É preciso ajudar os ricos para que não se afoguem no excesso de riqueza. Ajudá-los a salvar seus filhos isolados do Brasil em condomínios fechados, escolas especiais, shoppings comerciais, mentes egoístas e imediatistas; dependendo de seguranças ou obrigando-os a emigrar para o exterior, perdendo o país deles. A maneira de salvar os ricos é elevar as condições educacionais de todas as crianças e com isso aumentar a produtividade para gerar renda social elevada e distribuí-la, conforme o talento e o esforço de cada pessoa.

Ajudar os ricos é convencê-los de que, com menos privilégios exclusivos, poderiam viver melhor em um país educado e com boa distribuição de renda: uma riqueza sem pobreza no lugar da atual riqueza graças à pobreza. Não precisarão viver confinados, nem emigrar. Ajudar os ricos é convencê-los de que escola de qualidade apenas para seus filhos não enriquece o país, porque cada cérebro sacrificado é um capital perdido para todos os brasileiros. A salvação dos ricos exige elevar a renda social graças ao aumento da produtividade na economia e distribuí-la com justiça. O caminho é educação de base para todos.

O vício da elite, ao longo dos 500 anos de escravidão, desenvolvimentismo, império, república, democracia e ditadura impedem entender que a distribuição de renda e o investimento em educação, saúde, transporte público elevariam a qualidade de vida dos próprios ricos. A elite não será convertida, moral ou politicamente, a perder privilégios que há séculos a viciou e cegou. Prefere o suicídio, naufragando nas ruínas sociais de um país mergulhado na pobreza e na injustiça, para manter a insustentável riqueza que deslumbra no presente, mas asfixia o presente. É preciso ajudar os ricos a serem egoístas-inteligentes, buscarem sustentabilidade para a riqueza, fazendo-os perceberem que serão mais ricos na proporção que a pobreza diminui.

E aquela do Max Nunes?

Por falar nos centenários de 2022 que passaram em branco por falta de espaço, tivemos, em 17 de abril, o de Max Nunes. Sim, o misto de médico e gênio do humor, criador da dupla Primo Rico e Primo Pobre (do programa “Balança Mas Não Cai”, de rádio e TV) e de vários personagens de Jô Soares. Tive a honra de organizar dois livros com as frases de Max: “Uma Pulga na Camisola” (1996) e “O Pescoço da Girafa” (97). Eis algumas.

“O dinheiro corrompe. Mas só quem não o tem.” “Duplicata é essa coisa que sempre vence. Nunca empata.” “Antes, a união fazia a força. Hoje, a União cobra os impostos e quem faz a força é você”. “Anda tudo tão caro que até quem desdenha não quer mais comprar.” “Mesmo com salário de fome, os professores do 1º grau não deixam de ir à escola. Mas é por causa da merenda.”


“Houve um tempo em que os animais falavam. Alguns continuam.” “Se Abel tivesse sido assassinado no Brasil, até hoje ninguém saberia que o criminoso foi Caim.” “Todo erro deve ser esquecido. Por isso, quando o povo erra a polícia passa a borracha.”

“O difícil de confundir alhos com bugalhos é que ninguém sabe o que são bugalhos.” “Há certas coisas na vida que a gente não pode deixar passar. Principalmente se for goleiro.” “A polícia descobriu 100 quilos de cocaína no aeroporto. A droga tinha sido colocada no nariz do avião.” “Manchete de jornal: ‘Incêndio na fábrica de sorvete! Em poucos minutos, o fogo lambeu tudo!’”

“No Brasil também existe pena de morte. Mas só para a vítima.” “Opinião é uma coisa que a gente dá e, às vezes, apanha.” “Com quantas mentiras se faz um desmentido?” “No dia em que o porte de armas for proibido para os militares, aí, sim, haverá paz.” “Na minha rua mora um general/ Cara de mau/ Como convém a todo general./ Ninguém sabe em que batalhas/ Ganhou a série de medalhas/ Que ostenta no peito varonil./ Também, pra que saber?/ Viva o Brasil!”.

Com foco no curto prazo, Brasil vende o futuro

O governo de Jair Bolsonaro opera em 2022 com o foco em medidas de curto prazo para melhorar a popularidade do presidente, não importando o efeito sobre a credibilidade das instituições fiscais do país. Iniciativas com horizonte de poucos meses terão impacto duradouro. Há reduções de impostos baseadas no pressuposto de que o aumento corrente de receitas será permanente, afetando a situação fiscal futura de Estados e municípios. Elevações de gastos previstas para vigorar apenas no segundo semestre devem se perenizar. Há ainda adiamento de despesas - caso dos precatórios - que poderão gerar uma bola de neve de dívidas nos próximos anos.

Algumas dessas medidas foram tomadas por meio de Propostas de Emenda à Constituição (PEC), banalizando um instrumento que deveria ser usado de modo criterioso. Para completar, iniciativas de estímulo à demanda ocorrem num ambiente em que o Banco Central (BC) se esforça para derrubar uma inflação que roda na casa dos dois dígitos há quase um ano. Com isso, os juros terão de ficar mais altos por mais tempo.


Um dos resultados dessa estratégia populista é turvar o cenário à frente. Em julho, o Indicador de Incerteza na Economia (IIE) da Fundação Getulio Vargas (IIE) subiu pelo terceiro mês seguido, atingindo 120,8 pontos, um nível historicamente elevado - números acima de 110 pontos são considerados altos.

Para o economista Livio Ribeiro, sócio da BRCG Consultoria, está em construção um quadro futuro recheado de dúvidas - nas receitas, nas despesas e nas regras fiscais gerais. Ele ressalta o aumento do custo médio do endividamento do governo. Nos 12 meses até junho, o custo médio da dívida pública federal ficou em 10,9% ao ano, bem acima dos 7,18% de junho de 2021.

“O perfil das receitas é perigoso”, adverte Ribeiro, também pesquisador associado do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV Ibre). Há uma piora das perspectivas para os preços de commodities que ajudaram a engordar os cofres públicos, como petróleo e minério de ferro, dada a perda de fôlego da economia global.

O cardápio de medidas populistas patrocinadas pelo governo Bolsonaro é extenso. Os efeitos de algumas decisões serão sentidos muito além do segundo semestre, podendo atingir a situação estrutural das contas públicas. Um dos exemplos emblemáticos é o limite imposto aos Estados para cobrança do ICMS sobre itens como energia elétrica e combustíveis, para derrubar a inflação no curto prazo. Ribeiro diz que as mudanças no ICMS abrem um buraco potencial nas receitas de Estados e municípios de cerca de R$ 70 bilhões por ano.

“Está aberta uma crise federativa”, resume ele, lembrando que a lei aprovada pelo Congresso sobre o assunto é uma interferência federal num tributo estadual. A alta recente da arrecadação se deveu especialmente à inflação elevada e à alta dos preços de commodities, combinação que não deve se repetir em 2023. Num cenário de desaceleração global mais intensa, como a esperada daqui para frente, as perspectivas para as cotações de produtos primários não são das melhores, por exemplo. Nas contas de Ribeiro, uma queda de 10% dos preços em reais de petróleo e de minérios reduziria a arrecadação anual de União, Estados e municípios em R$ 42 bilhões.

Como haviam alertado especialistas em contas públicas, o limite imposto ao ICMS foi judicializado pelos Estados. São Paulo, Maranhão, Piauí e Alagoas conseguiram liminares no Supremo Tribunal Federal (STF) para compensarem a perda de receita com a redução do ICMS sobre esses itens, suspendendo o pagamento das prestações da dívida com a União.

A principal aposta do governo para reeleger Bolsonaro é a chamada PEC Kamikaze. A um custo de R$ 41,5 bilhões, que ficará fora do testo de gastos, a proposta elevou o valor do Auxílio Brasil de R$ 400 para R$ 600, instituiu um auxílio aos caminhoneiros e uma ajuda aos taxistas e dobrou o vale gás. De cunho obviamente eleitoreiro, as medidas valem até o fim do ano, mas pelo menos o Auxílio Brasil de R$ 600 deve ser perenizado - tanto Bolsonaro quanto o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva já afirmaram que o valor será mantido em 2023.

O programa deve custar R$ 141,8 bilhões no ano que vem, considerando a manutenção do valor em R$ 600 e a incorporação de quem tem direito ao benefício e estava na fila, diz Ribeiro. É um montante R$ 52,7 bilhões maior que os R$ 89,1 bilhões do Auxílio Brasil original, com valor de R$ 400.

Ribeiro ressalta ainda um ponto que tem ficado em segundo plano: os esqueletos fiscais que serão deixados para os próximos anos. É o caso dos precatórios da União, cujo pagamento anual foi limitado por uma PEC aprovada no fim do ano passado. Com isso, a quitação de uma parcela significativa das sentenças judiciais é adiada para os anos seguintes.

O foco do governo está em iniciativas para tentar melhorar a popularidade de Bolsonaro, sem preocupação com o custo ou com as suas consequências. “Com tanta mudança de regra, perde-se a capacidade de antecipar”, afirma Ribeiro. “Esse é o grande problema. Como se planejar desse jeito?” Medidas tomadas de improviso aumentam a incerteza e dificultam a capacidade de planejamento na economia, o que prejudica em especial o investimento. Os estímulos de curto prazo poderão fazer a economia crescer algo entre 1,5% e 2% neste ano, mas para 2023 a desaceleração deve ser forte - Ribeiro projeta 1,5% em 2022 e 0,1% no ano que vem.

“Estamos vendendo o futuro”, diz ele, preocupado com o fato de os “anabolizantes de curto prazo” nublarem um debate importante: “Ao contrário do que o governo prega, não vemos fatores de dinamização estrutural da economia: estamos presos em uma armadilha de baixo crescimento”, afirma Ribeiro. Ele nota que o país não conta mais com o bônus demográfico, uma vez que a população em idade de trabalhar passou a crescer a um ritmo inferior ao da população total. Isso significa que se encerrou a fase mais favorável da estrutura etária do país ao crescimento. “Além disso, a acumulação de capital fixo é insuficiente, não somos bons em capital humano, ainda que se tenha melhorado um pouco, e temos baixa produtividade”, enumera Ribeiro, emendando uma pergunta incômoda e hoje sem resposta: “O que fará a economia brasileira crescer de forma sustentável?”