sexta-feira, 26 de julho de 2024

Precisa-se de justiça


Precisamos de um senso de justiça, mas precisamos também de senso comum, de imaginação, de uma capacidade profunda de imaginar o outro, às vezes de nos colocarmos na pele do outro. Precisamos da capacidade racional de nos comprometer e, às vezes, de fazer sacrifícios e concessões.
Amós Oz

Viva Kamala Harris!

Uma das vantagens de viver num país pequeno ao qual ninguém liga nenhuma é podermos ser irresponsáveis.

Quando falamos das eleições americanas, por exemplo, temos a certeza de que a nossa influência sobre os eleitores americanos é absolutamente zero.

Logo, podemos dizer os disparates que quisermos, que daí não vem mal ao mundo: somos só portuguesinhos de peito cheio a fingir que ainda mandam no mundo, quais periquitos vaidosos, a perorar sobre a nova água-de-colónia do patrão.


Digo isto antes de oferecer as minhas perorações sobre Kamala Harris porque nada é mais divertido do que ler os comentadores portugueses a escrever como se fosse a prosa deles a impedir a Casa Branca de colapsar. Não há nada mais hilariante do que uma nulidade a levar-se a sério.

Pelo que vi, gosto muito de Kamala Harris. Os americanos de quem eu não gosto não gostam dela pelas razões que me levam a gostar dela.

Para já, ri-se muito. É o riso de quem gosta de se rir. Ri-se sinceramente e, sobretudo, rise quando não se deveria rir, o que é um sinal de liberdade.

Beija o marido na boca, mesmo que estejam milhões de pessoas a ver. Isto é o mesmo que se rir. Mostra que não tem duas caras. Não é condescendente: não pensa que é preciso ter cuidado com o povo.

Quando fala em público, pensa em voz alta. Tenta dizer coisas profundas e, quando falha, volta à carga na próxima ocasião. A espontaneidade tornou-se tão rara que já ninguém a reconhece.

Gosta de música boa – de Mingus, por exemplo – e não tenta contrabalançar o bom gosto dela com exemplos popularuchos. Kamala Harris pode ou não ser brat (e a música de Charli XCX pode não ser grande coisa), mas, pelo menos, não faz de conta que adora as cantilenas robóticas de Taylor Swift.

Kamala Harris é uma burguesa de bom gosto. A mãe era oncologista e investigadora, o pai é historiador e professor universitário.

Parece ser uma pessoa feliz.

Se os americanos não gostam dela, o problema não é de Kamala Harris.

É deles.

Mercado é o quarto poder na anarcodemocracia digital

O apagão ocorrido no universo da internet na semana passada veio confirmar que a ideia de que o mundo digital é uma espécie de paraíso da democracia plena não passa de um mito. Um erro cometido por uma única megacorporação de informática chamada CrowdStrike bastou derrubar sistemas privados e governamentais em vários países. A pisada na bola dessa empresa (com nome digno daquelas operações secretas dos filmes de espionagem) ocorreu durante um upgrade em um serviço que prestava à Microsoft.


Dito de outra forma, centenas de milhares de cidadãos mundo afora tiveram suspensos por muitas horas os seus direitos de ir e vir, de se comunicarem, de acessarem saúde, educação, trabalho e consumo. Se tal pandemônio pode ocorrer por falha involuntária de apenas uma empresa, será que alguma organização ou indivíduo não conseguiria fazer o mesmo deliberadamente?

Nesse ponto é preciso chamar a atenção para o aspecto crucial, de natureza política, que normalmente passa despercebido na atuação desse tipo de corporação tecnológica com alcance global. Elas têm se tornado verdadeiras donas da democracia, da verdade e até mesmo das diferentes expressões do direito. Apesar do seu colossal alcance público, são empresas privadas, que têm dono, mas controlam as redes sociais, aplicativos, internet, sistemas operacionais de computadores e celulares. enquanto prestadores de serviços, acessam inclusive o sistema financeiro, as agências de inteligência, segurança pública e o setor de defesa. Tudo agora turbinado por inteligência artificial e machine learning.

As autoridades reguladoras e legislativas têm demonstrado dificuldade em acompanhar a velocidade de desenvolvimento das tecnologias que transcendem fronteiras. Se, por um lado, os erros (e as vontades) desses novos atores globais podem afetar até o funcionamento das democracias, por outro lado, falta capacidade ao sistema de “freios e contrapesos democráticos” de enfrentar esses excessos adequadamente.

Podemos dizer que a caduquice dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário (ou de qualquer governança multilateral) nesse tema abre espaço para que o próprio mercado assuma uma posição de Quarto Poder Moderador na arena global dos negócios digitais.

Foi justamente o que aconteceu esta semana em reação ao apagão provocado pela CrowdStrike. Imediatamente, ainda na manhã seguinte ao apagão, na abertura do pré-market da Bolsa de Nova York, os mercados já haviam derrubado o preço das ações da empresa em quase 20%, e continuam em baixa esta semana, enquanto as ações da sua concorrente SentinelOne subiam 10%.

Enquanto isso, passado uma semana desse incidente com escala planetária, o Congresso americano não havia feito mais do que convidar a CrowdStrike para “prestar informações” sobre o apagão.

Nada contra as companhias digitais. Pelo contrário, elas representam um avanço tecnológico com potencial de transformar para melhor a sociedade, os governos e os negócios em uma escala formidável. No entanto, isso não dispensa o Estado e a sociedade civil das suas atribuições como garantidores dos interesses individuais e coletivos, bem como dos princípios democráticos.

Antevendo o passado em que estamos vivendo.

Em março de 2022 reli o "Turning Back the Clock", de Umberto Eco (Vintage Books, 2008). O livro é uma coleção de artigos e ensaios em que ele analisa o que chamou, no sub-título, de "hot wars and media populism".

Um desses artigos, de julho de 2003, publicado no L'Espresso, prendeu minha atenção. Neste, Eco comenta uma tentativa de Berlusconi, de "retirar a legitimidade do sistema judiciário italiano". Berlusconi era então primeiro-ministro, pela segunda vez (2001-06). Em tom de desafio, ele disse que "já que foi eleito pelo povo" ele não aceitaria "ser julgado por alguém que alcançou aquele posto no judiciário graças apenas à sua qualificação profissional".

Ora – prossegue Eco –, "se levarmos a sério esse raciocínio, eu não posso concordar em ter uma operação de apendicite feita por um cirurgião, ou mandar meus filhos para a escola – e poderia até mesmo resistir a uma ordem de prisão por um policial; porque essas pessoas são autorizadas a executar suas funções devido às suas qualificações profissionais e não por eleição popular."


Quase duas décadas depois, em janeiro desse 2022, li nos jornais brasileiros que o então presidente "desobedeceu a uma determinação do presidente do Supremo Tribunal Eleitoral e não compareceu à sede da Polícia Federal para prestar depoimento no inquérito que apurava um vazamento de investigação sobre ataque de hacker a urnas eletrônicas". Isso apesar da sua "atuação direta, voluntária e consciente" na quebra daquele sigilo, conforme termos da investigação. Ele se colocava acima da lei porque o povo (e Deus, segundo ele) foi quem o colocou no comando.

Chamou-me a atenção, neste ponto, o conceito de "povo", ou de "eleição popular". Berlusconi, falecido em 2023, era dono da maior rede de empresas de comunicação da massa na Itália. E nos seus dias de primeiro-ministro a internet apenas engatinhava. Hoje, plataformas de redes sociais atingem mais pessoas – e mais diretamente, através do celular – do que as telas gigantescas das TVs.

Para Eco, "como uma entidade única, natural, congregando as mesmas vontades, sentimentos ou valores morais, o povo não existe". Segundo ele, o que existe são grupos de cidadãos, com suas crenças, princípios e mesmo idéias diferentes. Assim torna-se mais correto dizer que um presidente (ou qualquer outro representante) foi eleito pela maioria dos votos dos "cidadãos", do que dizer simplesmente que ele foi eleito "pelo povo".

Dentro desse enfoque, se "povo" não existe, os populistas (hoje, como de praxe) sempre tentam (e geralmente conseguem...) criar – segundo Eco – "uma imagem virtual de vontade popular".

A palavra virtual, embora usada naquele texto de 2003, ganha dimensão nova nos dias de hoje. A televisão torna-se obsoleta diante das redes sociais. Afora ideologia, envolvimento e compromissos comerciais, as emissoras de televisão, em países democráticos, são sujeitas a certas formas de controle, normas legais a serem observadas. Já uma plataforma digital se torna uma ferramenta poderosa – quase não controlada, de custo baratíssimo, quase nulo – para a implementação e manutenção do populismo.

Outro fator, as técnicas de venda, me chama a atenção. Uma delas, muito usada, é "ser vítima de perseguição". Funcionou, naquele ano, como um escudo para o então presidente do Brasil, razão pela qual ele decidiu não atender ao chamado de um juiz federal.

Trago aqui um outro ponto que não estava no contexto da Itália, pelos idos de 2003: o uso da fé, o uso das religiões – quanto mais dogmática, melhor – para manter no cabresto esse tal "povo virtual" citado por Umberto Eco. Esse povo, alimentado pelo que vem das redes sociais, obedece ao que vem dos seus dirigentes, de forma cega, pré-medieval até, ignorando erros desses mesmos dirigentes – sejam eles falhas acidentais ou crimes premeditados.

Eco acerta de novo lá no título do livro: o populismo, avançando hoje a passos largos, é uma força gigantesca que vem contribuindo para atrasar o relógio da história.