quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Pensamento do Dia


O mundo irreal de Doria e Guedes

Exatamente uma semana depois de a PM de Wilson Witzel ter sujado a festa do Flamengo, o governador João Doria disse no domingo que “São Paulo tem uma polícia preparada, equipada e bem informada.” Naquela hora, os corpos de nove jovens estavam no necrotério, pisoteados depois de uma entrada truculenta de sua PM num pancadão de Paraisópolis. Nas bancas e na rede, nesse mesmo domingo, estava também a entrevista do ministro Paulo Guedes à repórter Ana Clara Costa, na qual ele explicava o “timing” de suas reformas:

“Você dá pretexto para os outros fazerem bagunça. (...) Chamar pra rua manifestação ordeira e pacífica, como a que fazem quase todo fim de semana, problema nenhum. Agora, chamar para a rua para fazer igual no Chile e quebrar tudo foi uma insanidade, irresponsabilidade.”

Há algumas semanas, o general Augusto Heleno, chefe do Gabinete de Segurança Institucional, acompanhando uma ameaça vinda de um filho do presidente, havia cantado a pedra do perigo chileno como justificativa para um surto ditatorial: “Acho que, se houver uma coisa no padrão do Chile, é lógico que tem de fazer alguma coisa para conter.”


É irresponsabilidade (ou desejo) trazer o espantalho chileno para a situação brasileira, e a tragédia de Paraisópolis, bem como a pancadaria da festa do Flamengo, mostra que nos dois casos a insanidade saiu da PM. Não é de hoje que isso acontece.

Em outubro do ano passado, durante a gestão do governador Márcio França, a PM entrou num pancadão de Guarulhos, e três pessoas morreram em situação semelhante à de Paraisópolis. Doutor Doria poderia examinar a investigação do episódio de Guarulhos. Com uma polícia “preparada, equipada e bem informada”, deu em nada.

Um morador de Paraisópolis contou que a PM “chegou jogando bombas de efeito moral”. Pode ser que não tenha sido assim, mas na noite de 13 de junho de 2013, a PM paulista bloqueou uma passeata que protestava contra o reajuste dos ônibus na esquina da Rua da Consolação com a Maria Antônia. Quem estava lá viu que uns 20 policiais vieram do nada, jogando bombas de efeito moral. Aquela passeata era ordeira, convocada pelo Movimento Passe Livre e povoada por gente de tênis baratos e camisetas.

Começavam as jornadas de 2013. Anos depois, as manifestações transmutaram-se, e a presidente Dilma Rousseff foi deposta. (Vale lembrar que o governador tucano Geraldo Alckmin e o prefeito petista Fernando Haddad, do PT, que haviam reajustado as tarifas, estavam num evento em Paris, onde cantaram “Trem das onze” durante um jantar.)

Guedes teme que apareça gente “quebrando tudo”, mas, até agora, quem apareceu quebrando os outros foram policiais, em São Paulo e no Rio. Esse comportamento persiste pela garantia da impunidade.

Nas divagações chilenas de Guedes e do general Heleno insinuam-se paralelos de incitação política. Já que é assim, pode-se temer também que a incitação política venha de outro lado. Em 1968, ela vinha de um maluco chamado Aladino Félix. Antes que terroristas de esquerda começassem a assaltar bancos e a matar gente (naquele ano), ele roubava dinamite e armas. Assaltou pelo menos um banco, explodiu uma bomba na Bolsa e outra num oleoduto. Como era doido, não se pode acreditar na sua palavra quando dizia que estava ligado a um general da reserva que, por sua vez, teria conexões com o governo. Uma coisa é certa: no seu grupo estavam 14 soldados e sargentos da Força Pública de São Paulo, mais tarde transformada numa Polícia Militar.

Naqueles dias o governador de São Paulo, Abreu Sodré, denunciava uma conspiração nos “subúrbios do poder”.

Cassinos para o desenvolvimento amazônico

Uma coisa é abrir um cassino em Brasília, que não faz sentido. Outra é na Amazônia, em uma área que precisa se desenvolver, como foi feito em Atlantic City ou Las Vegas (EUA)
Luiz Eduardo Ramos, ministro-chefe da Secretaria de Governo

A grande batalha, agora, é entre autoritarismo e democracia

A linguística se tornou estreita para analisar as convulsões políticas que sacodem o mundo. Os velhos termos “esquerda” e “direita” não nos servem mais. Agora, o debate é entre autoritarismo e democracia. Essa é a grande batalha. Aqui no Brasil e em todo o planeta. Tanto não servem mais os velhos clichês da esquerda e da direita que criamos os termos “extrema esquerda” e “extrema direita”. Dizer que Bolsonaro, Putin ou Trump, por exemplo, são de direita significaria, na prática, fazer-lhes um elogio.


O mundo se dilacera hoje mais entre autoritarismo e democracia. Entre aqueles que lutam para cercear as liberdades individuais e coletivas e a democracia cada vez mais desprezada e ameaçada por nostalgias ditatoriais.

É de esquerda ou de direita o presidente Jair Bolsonaro, que em seus 28 anos como deputado federal quase sempre votou com o Partido dos Trabalhadores, o PT? É nacionalista ou ecumênico? E Lula é de esquerda? Era quando, em seu segundo mandato, quis impor o que chamou de "controle social" dos meios de comunicação com uma cartilha em que uma comissão de fora da mídia deveria atribuir pontos de boa ou má conduta aos jornalistas? É agora que, livre da prisão, busca de novo na sombra conexões com a direita e o centro enquanto o PT sangra?

Bolsonaro é de direita quando ataca o jornal Folha de S.Paulo, ao qual ameaça com sanções? Por que a direita tem que ser contra a liberdade de expressão? Não, Bolsonaro não é de direita ― se fosse, isso não seria um pecado. Ele é um autoritário com nostalgias de velhas ditaduras, paixão pela violência e a tortura e contrário a tudo o que cheire a direitos humanos e liberdades individuais.

Os termos direita e esquerda sempre foram ambíguos, até mesmo na religião. Na Bíblia se diz que Deus colocará "à sua direita" os justos e "à esquerda", os condenados. Deus é de direita ou de esquerda? Na linguagem popular, quando tudo dá errado dizemos que "levantamos com o pé esquerdo".

Não, os velhos rótulos do passado não nos servem mais. Hoje, a grande batalha mundial se dá entre o autoritarismo e o respeito à liberdade de expressão e à cultura. Entre o canibalismo político que se nutre de corrupções e privilégios vergonhosos, seja na direita ou na esquerda, e os valores da democracia cada vez mais ameaçada pelas velhas nostalgias nazifascistas.

O mundo hoje está dividido entre a fidelidade aos valores da liberdade, de todas as liberdades que nos permitam viver sem as correntes do autoritarismo que nos sufoca, e os valores que fizeram a humanidade viver em paz. A guerra e suas ditaduras são o autoritarismo em estado puro. É o ápice da tirania incensada no altar das falsas liberdades.

Que os termos direita e esquerda não nos servem mais para definir políticas concretas está cada vez mais evidente no mundo. Hoje, uma onda de autoritarismo, de negação dos direitos fundamentais, de obsessão contra as liberdades humanas que distinguem o ser racional, atravessa o planeta. Os analistas internacionais quebram a cabeça para tentar entender esse novo fenômeno que percorre o planeta e convulsiona até a velha e moderna Europa, sede dos esplendores do Renascimento.

Talvez seja preciso voltar a Freud, que analisou como poucos a necessidade que o ser humano, frágil e com medo de suas pulsões de morte, tem de segurança e de ordem. O pai da psicanálise nos explicou que a insegurança do ser humano e seus medos ancestrais fazem com que em tempos de turbulência e perda de identidade, como os que estamos vivendo, recorramos à figura paterna e autoritária, que nos oferece segurança.

Todas as grandes neuroses pessoais ou coletivas, as depressões em massa que sacodem todos os continentes, os medos da liberdade e dos diferentes derivam dessa insegurança inata do Homo sapiens, que se debate entre a nostalgia da liberdade perdida no paraíso e o medo da solidão radical, algo que projetamos diante de todos os diferentes, vistos como inimigos.

Mais que entre direita e esquerda, que já pouco significam, o mundo hoje se divide entre os anseios de liberdade, que são a essência da vida pessoal e coletiva, e os medos do autoritarismo castrador que nos corta as asas e nos impede de respirar o ar da liberdade.

Hoje o mundo está cada vez mais dividido de norte a sul e de leste a oeste entre os que, garroteados pelo medo, tentam erguer muros que nos separem, e os que, em nome da liberdade, que é o cerne da existência, preferem eliminar fronteiras.

Parece que estamos diante das velhas guerras ideológicas entre liberdade e escravidão, entre os que preferem viver em liberdade, embora ameaçados, do que em uma escravidão que nos oferece a miragem da segurança. Quem vencerá a batalha entre o autoritarismo que se impõe como um novo dogma e a democracia, que é o espelho dos anseios mais profundos do ser humano criado para cuidar do mundo e não para prostituí-lo?
Juan Arias

Paraisópolis, a crônica de uma tragédia anunciada

Em meados de novembro último, o sargento da Polícia Militar de São Paulo, Ronaldo Ruas, 52 anos, foi morto por traficantes na favela de Paraisópolis. No dia em que ele morreu, a Polícia Militar distribuiu o seguinte comunicado: “Centenas de agentes do Policiamento de Choque, do Policiamento de Trânsito, do Comando de Aviação e dos Batalhões da Zona Oeste intensificarão o policiamento para combater o tráfico de drogas no local e prender criminosos, sem previsão de término”.

Dado o aviso, no dia seguinte houve uma megaoperação policial na favela. E o clima de tensão só fez aumentar com o patrulhamento ostensivo e a revista constante de pessoas a pretexto de qualquer coisa. Os moradores mais antigos sabiam que algo estava por vir.

Uma espécie de ensaio do que aconteceu no último domingo teve registro no dia 19 quando um grupo de policiais militares cercou as entradas e saídas de algumas vielas. Há vídeos que mostram cenas do cerco e o resultado da violência aplicada sob medida.

Em um dos vídeos, pessoas em fila indiana e com as mãos para o alto são liberadas em uma das vielas. Ao passarem por um policial armado com uma vara de madeira ou de aço, quase todas levam uma pancada, até mesmo um homem que andava com muletas.

No vídeo, ouvem-se xingamentos e palavrões gritados por policiais. O que portava a vara parecia cumprir uma tarefa burocrática. Batia em algumas pessoas com mais força e em outras com menos. Em alguns casos, limitava-se a encostar a vara. Sorria.

O sargento Ruas fazia parte da Força Tática do 16º Batalhão da Polícia Militar. Foi esse grupo o responsável pela chacina que no domingo passado resultou na morte de 9 jovens entre 14 e 23 anos de idade e no ferimento de 12 que se divertiam num baile funk.

A prefeitura de São Paulo confirma que o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (SAMU) recebeu uma ligação sobre o que acabara de acontecer em Paraisópolis. Uma pessoa dizia que havia dezenas de feridos e mortos e pedia socorro.

Um bombeiro cancelou o pedido sob a alegação de que a Polícia Militar já providenciara o atendimento. O Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana acusou a polícia de “alterar a cena do crime” ao remover dali os corpos dos mortos.

O Ministério Público de São Paulo anunciou que tratará as mortes como homicídios. O governador João Doria voltou a elogiar a Polícia Militar, “a melhor e mais bem treinada do país”, e disse que ainda é cedo para que se tire conclusões a respeito do que ocorreu.

A caça às feiticeiras

O problema é dificílimo. Todo o mundo está de acordo em que o governo precisa identificar e punir os inimigos públicos que estavam leiloando o Brasil a essa espécie de socialismo degenerado que se convencionou chamar "comunismo internacional". Mas todo o mundo também exige que a eliminação dos focos de insurreição se faça sem se cair no erro extremo da caçada cega às feiticeiras, sem se atacar essa cidadela que é o próprio coração da democracia: a liberdade de pensamento e de palavra.

Quando se escutam os aplausos entusiásticos com que nos saúdam a imprensa e os governos de Salazar e Franco, a gente fica de orelha em pé: que é que nós estamos fazendo ou prometendo de ruim, para eles se alegrarem tanto? Será que esperam que a marcha da Revolução nos arraste a uma ditadura semelhante à deles, sem nos sabermos livrar do falso dilema – ou fascismo ou comunismo – deixando de parte a terceira posição, que é a única verdadeira, a simples democracia?

Tenho medo. O doente está grave e a operação é melindrosa. Tanto o pode salvar como acabar de matar. 


E não pode ser adiada, nem torneada, nem desconversada, essa operação indispensável. É imperioso demarcar logo o limite exato, separando o que é crime e o que é direito de homem livre. Quem se provou culpado de conspiração, entendimento com o estrangeiro, desvio de dinheiros públicos para fins subversivos, preparação de luta armada, insuflamento do povo contra as instituições constitucionais, que pague o seu crime. Jornalista que incitava operários e soldados a greves políticas, à insubmissão e ao motim, esse jornalista incidiu em crime, e merece punição, é claro. Mas o jornalista que, usando da liberdade de imprensa, declarava suas convicções políticas, fossem quais fossem – como se pode prender e condenar esse homem, sem lhe cercear a mesma e sagrada liberdade de pensamento e de palavra?

Funcionário que utilizou criminosamente o dinheiro dos contribuintes para subvencionar organizações ilegais ou promover a insurreição cometeu crime e deve ser demitido, julgado, condenado, e com severidade. Porém, se esse funcionário tem apenas "ideias subversivas", como o punir? Ou antes, com que direito o punir? 

Na hora em que se declara, seja qual for o pretexto e o momento, que ter ideias é crime, então nessa hora está tudo muito mal. Quando se exige que um cidadão, para usar dos seus direitos civis, assine um daqueles "atestados de ideologia" de malfadada memória, é sinal de que há um desequilíbrio grave na balança democrática. 

Sob a alçada da justiça revolucionária só pode ser posto o fato atual, o fato concreto, o crime perpetrado. (E há uma legião enorme de candidatos à cadeia, dentro dessa faixa.) Mas ter qualquer ideia dentro da própria cabeça, seja que ideia for, isso só é crime em terras como a Rússia, a China, Cuba, ou na Espanha e no Paraguai.

Ser comunista ou acreditar que o comunismo é a solução para os problemas do mundo pode ser um erro, um engano trágico, mas não é um crime. Democraticamente não o é. Só começa a ser crime quando o cidadão abandona a simples ideologia e entra no terreno da organização revolucionária, da conspiração e da revolta.

Parece tão óbvio tudo isso. Mas tão difícil de realizar com honestidade e justiça. A grandeza da democracia coincide precisamente com a sua maior fraqueza. Na liberdade, que é o seu fundamento e a razão de sua existência, está também o seu maior risco, estão em potencialidade todos os perigos. Mas acontece que, dessa grandeza e dessa debilidade, desse risco, participa a própria natureza humana. O reconhecimento do livre arbítrio, que é a base de todos os códigos religiosos, nasce da ânsia imanente de liberdade da natureza do homem. Deus Nosso Senhor – qualquer que seja o nome sob que o invoquem – consagra essa liberdade essencial: do espírito como fundamento de toda a sua justiça. Deus, em todas as religiões civilizadas, revela a verdade, mas não a impõe, deixando ao homem o direito de errar, numa demonstração de que a democracia é instituição divina, já que se baseia no inalienável livre arbítrio por Deus reconhecido.

Quando leio nos jornais que a casa de fulano de tal foi "visitada pela polícia" que, em suas buscas, apreendeu grande cópia de "literatura comunista", tremo. Apesar de toda a minha gratidão pelo milagre que foi esta revolução, de toda a minha confiança nos homens que a chefiam, tremo. Polícia que censura livros, revolução democrática que tem medo do pensamento e faz autos de fé, assustam. Será que os agentes apreendedores são capazes de fazer a indispensável distinção entre a boçal literatura de propaganda da insurreição, fartamente distribuída pelas agências internacionais do comunismo, e a literatura propriamente dita, os livros onde o pensamento humano se entrega ao seu mais nobre exercício, que é a especulação e a discussão dos problemas eternos – sociais, morais, religiosos? Que qualificação intelectual terão os agentes de polícia que dão as buscas para fazer essa distinção sutil, mas vital?

A caça às feiticeiras é um esporte sanguinário e embriagante. Precisa muita força de alma para lhe resistir, quem tem o dever de caçar simples criminosos. 

E não é ocioso lembrar que, afinal de contas, quem acabou com as bruxas e com a bruxaria não foram as fogueiras dos fanáticos; foi, ao contrário, a razão livre, o pensamento livre, o raciocínio livre dos homens, homens livres.

Brasil genocida


Nome do problema é analfabetismo governamental

Pisa, programa internacional de avaliação de estudantes, expõe a raiz do atraso nacional. Quatro em cada dez alunos brasileiros na faixa dos 15 anos não entendem o que leem, não sabem fazer contas básicas e não compreendem conceitos elementares de ciência. 

Não se chega a um desastre desse tamanho por acaso. O teste mostra que o Brasil se acostumou com o vexame.

O país caiu no abismo educacional e não esboça a intenção de sair dele. Os indicadores estão estagnados há uma década. Repetindo: faz dez anos que a educação do Brasil está exposta na vitrine do Pisa de ponta-cabeça. E fica por isso mesmo. Num ranking de 79 países, o teste fechado em 2018 coloca os alunos brasileiros nas 20 piores posições em leitura, em matemática e em ciências.


Ignorar não é um bom remédio contra a patologia da ignorância. Então, é preciso enxergar o que está por trás do problema. Quem olha por cima dos indicadores enxerga a verdadeira causa da encrenca: o analfabetismo governamental. É como se os gestores públicos lessem os dados e não compreendessem o significado. Não é que as pessoas não conseguem ver a solução. Elas não enxergam o problema.

Seria necessário implantar na área educacional políticas públicas capazes de sobreviver aos governos. Falta uma iniciativa de Estado, que possa ter continuidade ao longo do tempo. Mas isso não está sobre a mesa. O ministro Abram Weintraub, atual gestor da pasta da Educação, deu uma entrevista. Preocupou-se em enfatizar dois pontos: 1) O Pisa de 2018, não trata do governo Bolsonaro, que começou em 2019. 2) A culpa é 100% do PT e de sua "doutrinação esquerdófila". Faltou dizer para onde as teorias direitófilas do ministro levarão a educação. A experiência mostra que, nesse ramo, a ideologia é o caminho mais longo entre um projeto e a sua realização.

Autoritarismo na veia

O momento político que atravessamos hoje é grave, gravíssimo, nossa democracia está em risco. Tudo que o presidente quer é um pretexto para a adoção de medidas autoritárias
Gustavo Bebianno, ex-ministro de Jair Bolsonaro e ex-líder do PSL destacando “grau de loucura e irresponsabilidade capitaneado pelo próprio presidente”

Excludente de ilicitude

Dennys Guilherme dos Santos, Marcos Paulo Oliveira dos Santos, Denys Henrique Quirino dos Santos, Eduardo da Silva, Mateus dos Santos Costa, Gustavo Cruz Xavier, Gabriel Rogério de Moraes, Bruno Gabriel dos Santos, Luara Victória de Oliveira. Idades entre 14 e 23 anos. Nove vítimas da violência policial, do fim de semana, na chacina do baile funk na favela de Paraisópolis, em São Paulo, onde vivem 100 mil pessoas – pobres.

Morreram, diz-se, pisoteados enquanto a multidão fugia de um cerco policial ao Baile da 17, tradicional reunião de jovens da comunidade e vizinhanças. Os bailes funk são a opção de lazer disponível aos jovens pobres Brasil afora.

Os mortos de Paraisópolis são novas vítimas do excludente de ilicitude que vigora no Brasil desde muito e que agora, cinicamente, foi batizado e quer virar lei. Nada mais é do que autorização legal para que agentes públicos maltratem e matem sem responder por isso, sem qualquer punição.

Há quem apoie.


Nenhuma surpresa no país onde o absurdo é cotidiano e a vida é roleta russa para a maioria da população – os mais pobres, aí incluídos os moradores de Paraisópolis/SP. Para milhares de brasileiros, a volta para casa inteiro e vivo, todo dia, merece agradecimento ao divino: Hoje escapei. Glória a Deus!

Irmão siamês do abuso de autoridade, o excludente de ilicitude, ainda na informalidade, também permitiu que quatro ambientalistas, de Auter do Chão, no Pará, fossem presos porque apontados pela polícia civil como suspeitos de queimar a floresta, onde justamente atuam para protege-la. “Para garantir da ordem pública”, alegou o juiz ao autorizar a prisão, que só foi revertida porque a grita foi grande dentro e fora do país.

Por três dias, enquanto o juiz sondava a repercussão, os brigadistas voluntários da ONG Brigada de Auter estiveram em cana com tudo que isso implica – a cabeça raspada é o sinal visível do arbítrio e da humilhação.

Por que o magistrado, que já atuou como advogado da madeireira de sua família, não poderia acatar suspeição da polícia se outros de seus colegas já permitiram e divulgaram escuta telefônica à Presidenta da República?

Resposta: Excludente da ilicitude. Aquele drible gigante na lei só mereceu do Tribunal guardião da Constituição uma repreensão. O juiz virou ministro, defensor do excludente de ilicitude para, finalmente oficializar, a prática corriqueira dos abusos de autoridades.

Quem tolera e defende as ilegalidades oficiais alega que, sem os tais dribles na lei vigente e nos direitos humanos, não haveria – e não haverá – combate à corrupção e ao tráfico de drogas, principalmente.

Nessa toada, a Associação dos delegados da PF vai à Justiça pedir a suspensão da Lei do Abuso de Autoridade, aprovada pelo Congresso em agosto. A justificativa é que tal lei é retaliação da classe política contra a Operação Lava Jato.


Ou seja, no atual momento escuro do país, legalidade é apontada como empecilho – estorvo para que autoridades servidoras das áreas de Justiça e segurança pública possam desempenhar suas funções. Querem, portanto, um salvo conduto para “tocar o terror”, como avisavam agentes da PM paulista dias antes do ataque ao baile funk em Paraisópolis.

Os apoiadores das flexibilizações para condutas de policiais e membros dos organismos fiscais e de justiça esquecem que quando autorizamos ilicitudes, praticadas contra adversários, desafetos, opositores, pobres, negros, índios e etc., também abrimos espaço para que elas, desembestadas, alcancem a todos nós.

Justiça não pode ser vingança. Polícia, em qualquer circunstância, tem que cumprir regras legais de conduta. A ninguém, por nenhum motivo, deve ser permitido não ser alcançado por lei ou tê-la flexibilizada.

As famílias dos mortos em Paraisópolis e as outras muitas vítimas da violência policial no Brasil exigem mais do que condolências. O que aconteceu lá foi chacina. Perpetrado por mocinhos ou bandidos, assassinato é crime. Exige punição. Dentro da lei.
Tânia Fusco

É errado usar ditaduras antimulher como exemplo para o Brasil

O deputado federal e presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara, Eduardo Bolsonaro, deveria ter mais cautela antes de escrever no Twitter que o “Brasil vive um bom momento de resgate de sua credibilidade. Resta a nós aproveitar essas portas que se abrem e fazer o dever de casa, que são as reformas e uma política internacional que nos aproxime de países exemplo de sucesso como os EAU na segurança, qualidade de vida e etc.”

Na verdade, os Emirados Árabes Unidos são uma ditadura, onde mulheres são alvo de uma espécie de apartheid. Esta nação no Golfo Pérsico não pode, em hipótese alguma, ser usada como exemplo de desenvolvimento para nenhum país, como fez equivocadamente o filho de Jair Bolsonaro.


No ranking de democracia da Economist Intelligence Unit, aparece na 147ª colocação, atrás de Cuba (142ª), Venezuela (134ª), corretamente criticadas como ditaduras pelo deputado. Como comparação, o Brasil está em 50ª lugar. Já no ranking da Freedom House, os Emirados Árabes atingem apenas 17 pontos em uma escala de 0 a 100 (máximo de democracia). Supera a ditadura cubana (14 pontos), mas está atrás da venezuelana (19 pontos) e da iraniana (18 pontos) – o Brasil tem 75 pontos.

Portanto, o regime de Abu Dhabi deveria evoluir para tentar se aproximar da democracia brasileira. O deputado deveria explicar ao xeque Mohammad bin Zayed o que é uma eleição e como o pai dele chegou ao poder com dezenas de milhões de votos, algo impensável em uma nação sem nenhuma tradição democrática como esta do Golfo Pérsico.

Relatório da Anistia Internacional indica que “o espaço para a sociedade civil segue praticamente inexistente nos Emirados Árabes Unidos, com os mais conhecidos defensores dos direitos humanos atrás das grades”. Até mesmo a jovem Latifa, filha do líder de Dubai, é mantida em cárcere privado. De acordo com a Anistia Internacional, o artigo 28 da Lei Federal dos Emirados Árabes prevê abertamente desigualdade entre homens e mulheres, dizendo que os “maridos possuem direitos sobre as suas mulheres” e “deve tomar conta da casa”. A entidade de defesa de direitos humanos acrescenta haver condições impostas a mulheres casadas para poderem trabalhar ou sair de casa. “O artigo 53 do código penal autoriza o marido a disciplinar sua mulher”, diz.

A Human Rights Watch afirma que mulheres precisam pedir autorização a seus guardiães homens para poderem se casar. Este se responsabiliza por fazer o contrato de casamento. “Homens podem se divorciar unilateralmente de suas esposas, enquanto as mulheres precisam aplicar na Justiça para conseguirem o divórcio. A mulher pode perder o direito ao seu sustento se, por exemplo, ela se recusar a ter relações sexuais com seus maridos. Mulheres são obrigadas a obedecerem seus maridos”, diz a entidade de defesa dos direitos humanos.

Homossexuais também são perseguidos, segundo a Human Rigths Watch. Em Abu Dhabi, “sexo não natural com outra pessoa"pode ser punido com 14 anos de prisão. Sodomia consensual (sexo anal) pode levar a 10 anos de prisão em Dubai.