quinta-feira, 21 de fevereiro de 2019

A hora do capitão

Levava um tempão antigamente até que conversas confidenciais envolvendo um presidente e seus principais ministros aparecessem transcritas em algum arquivo. Agora é quase em “real time”. Como sempre, são elucidativas.

A audionovela envolvendo o presidente Jair Bolsonaro e o exonerado ministro da Secretaria-Geral Gustavo Bebianno – um de seus colaboradores mais próximos – confirma um vencedor ainda em clima de campanha eleitoral, totalmente preso ao círculo mais próximo familiar e subordinando temas centrais às rusgas pessoais. Ou seja, Bolsonaro está muito distante ainda de “institucionalizar” seu papel, talvez nunca o consiga.

Ao dar entrevistas comentando a audionovela que ajudou a divulgar (o episódio confirma que não existe lealdade em política), Bebianno forneceu uma importante radiografia do papel dos militares em todas as fases do processo que levou Bolsonaro ao Palácio. Sabe-se publicamente agora que os militares forneceram os planos estratégicos de governo. E os quadros para executá-los. Sem eles, o presidente provavelmente não tem condições de sobreviver no cargo, tal como a situação se coloca agora.

Cabe recordar que a entrada de algumas principais cabeças entre os militares (então fardados ou não) na campanha de Bolsonaro ocorreu de forma relativamente tardia. Deu-se em grande parte por uma leitura angustiada com a possibilidade de o País resvalar para uma situação incontrolável. Esse temor se agravou entre lideranças militares durante a semianarquia da greve dos caminhoneiros. E foi exacerbado pela bagunça institucional no domingo em que Lula saía e ficava na cadeia de hora em hora por causa de uma canetada de um desembargador.


Os líderes militares acolheram Bolsonaro também como instrumento eficaz na “guerra cultural” – os militares usavam a expressão “frear a esquerdização do País” – e como personagem político de apelo à estabilidade e à ordem. Não cabe na cabeça deles um Bolsonaro como agente de caos político, seja pela influência do clã familiar, seja pela dificuldade em impor um sentido e disciplina ao próprio partido pelo qual se elegeu, seja por estapafúrdia ideologia – e às vésperas de seu grande desafio do momento, a reforma da Previdência.

Essa mesma reforma, com o projeto apresentado ontem, vai testar, talvez precocemente (pela confusão política inicial), a “grande estratégia” de juntar a uma onda disruptiva e abrangente (a que levou Bolsonaro à Presidência) os méritos e o preparo de um grupo treinado para administrar e coordenar – coisa que os oficiais-generais aprenderam nas escolas de Estado-Maior. Esse lado eles, os militares, entendem bem. O que os deixa inseguros, pois não têm treino nisso nem experiência direta, é a política.

Bolsonaro pretende agora ser o articulador político dele mesmo. O teste é severo, e muito mais abrangente do que conseguir os 308 votos mínimos necessários na Câmara dos Deputados para aprovar a reforma da Previdência (sem a qual a economia não destrava) e fazer andar o pacote anticrime de Moro (importante medida de sucesso do governo). Requer um jogo de cintura que as hostes esbravejantes em redes sociais confundem com tibieza. E a inevitável colaboração de profissionais (como a do ex-ministro de Dilma agora na função de líder do governo no Senado) que a mesma turma da lacração carimba de “política desprezível”.

Bebianno diz que chamava Bolsonaro sempre de “capitão”. É um título de forte apelo positivo. O capitão do avião, do navio, do time. A figura da autoridade, comando e respeito. Na acepção puramente militar do termo, capitão ainda é um oficial júnior que, por mais brilhante que seja, não tem o sentido de direção e a visão abrangentes dos oficiais superiores.

Concessões de Bolsonaro

O governo Bolsonaro parece ter dado uma boa afrouxada na sua anunciada política de moralidade e de combate intransigente à corrupção. Há sinais nesse sentido bastante claros. O primeiro e mais eloquente deles foi a decisão de fatiar o pacote anticrime, retirando do corpo principal da proposta a tipificação do crime de caixa 2. Mais grave foi o ministro da Justiça admitir que fez a concessão atendendo demanda de parlamentares. Um dos ícones anticorrupção do governo, Sergio Moro acrescentou que “crime de caixa 2 não é corrupção”.

Caixa 2 é pior do que corrupção, porque o dinheiro desviado dos cofres públicos não vai para o bolso de quem o roubou, mas sim para financiar ilegalmente partidos políticos e campanhas eleitorais, manipulando a vontade do eleitor. Se corrupção é crime, caixa 2 deveria ser considerado crime hediondo. Por outro lado, o governo que se elegeu prometendo mudar a forma de fazer política, não se submetendo a partidos e políticos, na primeira proposta enviada ao Congresso cedeu à vontade dos parlamentares.

Alguém poderia dizer que é assim que se governa e que Bolsonaro caiu na real. Verdade, governar é saber ceder. O problema é que, para aprovar leis contra milicianos e traficantes, o governo abriu mão da lei que alcançaria corruptos. Não dá para saber se os eleitores do presidente Jair Bolsonaro perceberam, mas parte substancial do compromisso assumido com eles durante a eleição foi abandonada. E este não foi o único episódio na linha de concessão à corrupção do governo.

O caso que culminou na demissão de Gustavo Bebianno do Ministério é outro exemplo de como Bolsonaro age erraticamente nessa questão. Numa das conversas com Bebianno tornadas públicas pela revista “Veja”, onde se refere ao laranjal do seu partido, o presidente sugere que o ministro estava jogando o caso no seu colo. Não reclamou do crime, mas sim de que poderia sair respingado. Bebianno explicou que cada diretório do PSL cuidava das suas próprias contas. Disse que no caso de Pernambuco, onde uma candidata do partido ganhou R$ 400 mil para a campanha e obteve apenas 274 votos, o responsável era o deputado Luciano Bivar (PSL-PE).

O ministro demitido muito provavelmente tem razão. Bivar licenciou-se da presidência nacional do partido entregando-a provisoriamente a Bebianno para concorrer a uma vaga na Câmara por Pernambuco, seu estado. Lá, quem dá as cartas no PSL é Bivar. E o que fez Bolsonaro? Brigou com Bivar? Detonou o deputado com o auxílio do seu filho nas redes sociais como fez com Bebianno? Nada disso. Antes mesmo de a poeira baixar, chamou o deputado pernambucano para almoçar com ele no Palácio do Planalto. Ao chegar para o almoço, terça-feira, Bivar disse aos jornalistas que a questão era “tão pequena que nem merecia seu comentário”.

Outro envolvido no laranjal, o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, não teve sequer seu nome citado pelo governo ou seu porta-voz. Ele foi acusado por uma mulher usada como laranja em Minas Gerais de ser o principal beneficiário dos desvios do fundo partidário destinado ao PSL no estado. A ex-candidata Cleuzenir Barbosa disse ao jornal “Folha de S. Paulo” que Álvaro Antônio, presidente estadual do PSL, usou dois assessores para tentar convencê-la a transferir dinheiro da campanha para uma gráfica com a qual não tinha feito nenhum serviço.

E o que aconteceu? Nada. O ministro do Turismo, que não tem desavenças com filhos do presidente, segue ministro. Ao que parece, o governo vai aguardar as investigações da Polícia Federal e do Ministério Público para só então tomar uma decisão sobre o seu futuro. Nesse ponto, o novo governo é a cara de quase todos os que o antecederam.

Simbolismo

O presidente fez bem ao atravessar a Praça dos Três Poderes e levar pessoalmente a proposta de reforma da Previdência aos presidentes da Câmara e do Senado. Foi um gesto que dá a dimensão da importância do projeto entregue por Jair Bolsonaro a Rodrigo Maia e Davi Alcolumbre. O movimento também pretendia servir para reduzir um pouco a temperatura da crise gerada pela demissão de Bebianno e a divulgação dos áudios das conversas entre ele e Bolsonaro. Nesse caso, não se pode dizer que o objetivo foi alcançado.
Ascânio Seleme

Brasil do laranjal


O que faz do Brasil um dos países mais desiguais?

Preocupada com o crescimento da pobreza, exclusão social e desemprego no mundo, a Assembleia Geral das Nações Unidas elegeu 20 de fevereiro como o Dia Mundial da Justiça Social, uma data para promover esforços para diminuir as desigualdades.

"Favorecemos a justiça social quando eliminamos as barreiras que as pessoas enfrentam por motivos de gênero ou relacionados à idade, raça, origem étnica, religião, cultura ou deficiência", explicou, em 2009, Ban Ki-moon, então secretário-geral da ONU.

Aos dez anos da criação da data, o Brasil não tem o que comemorar, já que a concentração de renda no país é uma das mais desiguais do mundo.


"Nossos ricos são mais ricos que os de outros lugares, inclusive em comparação com países desenvolvidos", afirma Rafael Georges, coordenador de campanhas da Oxfam Brasil, organização internacional que atua no combate às desigualdades e injustiças.

Segundo dados da Oxfam, o Brasil é um dos dez países mais desiguais do mundo. Em relação à renda, por exemplo, os 5% mais ricos do país recebem por mês o mesmo que os demais 95% da população juntos.

"Tivemos avanços nas últimas décadas no Brasil, mas continuamos com uma massa de população empobrecida, e não houve uma mobilidade social de fato", explica Georges.

Segundo a Oxfam, se a tendência das desigualdades registrada nos últimos 20 anos se mantiver no Brasil, a igualdade salarial entre homens e mulheres só será alcançada em 2047. Os negros, por sua vez, levarão 70 anos para ter os mesmos salários que os brancos. Esses números exemplificam como as desigualdades brasileiras têm raízes profundas na história do país.

"O longo período de escravidão no Brasil, cuja superação aparente dependeu mais da importação massiva de mão de obra europeia do que da inclusão do negro na sociedade, marca todos os fatores que fazem o país ser um dos mais desiguais", afirma Gilson Schwartz, professor de economia da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (USP), lembrando que o Brasil foi o último país ocidental a abolir a escravidão, em 1888.

Para Schwartz, desde o fim da escravidão, o Brasil avançou pouco no social, principalmente no combate ao racismo. "Cidades como São Paulo e Rio de Janeiro consagraram o design imobiliário em que o apartamento tem sempre um 'quarto de empregada'. Ou seja, a senzala foi modernizada", afirma o professor.

"Há muitos grupos marginalizados no Brasil, mas é importante dar centralidade às negras: a maior parte delas vive nas periferias, tem trabalhos de baixa remuneração e muitas vezes de grande esforço físico, com dupla jornada, sem possibilidade de se moverem socialmente", diz Georges, lembrando que ainda são as mulheres as principais cuidadoras e responsáveis pelo bem-estar da família.

"Nessa lógica, se as brasileiras – principalmente as negras, aqui incluídas as pardas e indígenas – elevarem seu padrão de vida, o Brasil inteiro melhora", afirma.

Dados do Instituto Internacional de Pesquisa em Pecuária mostram que, no mundo, mulheres gastam até 90% de sua renda com a família, enquanto os homens não gastam mais que 40%.

Apesar disso, no Brasil, as mulheres ganham em média 25% menos que os homens e gastam mais tempo cuidando da família, segundo números do IBGE. Enquanto os homens dedicam 10,5 horas semanais a cuidados de familiares ou afazeres domésticos, as mulheres dedicam 18,1 horas. Se consideradas apenas as mulheres negras, esse dado salta para 18,6 horas.

A lacuna entre ricos e pobres é outra questão alarmante. Apenas cinco bilionários brasileiros possuem, juntos, o mesmo patrimônio que a metade da população mais pobre do país. Um trabalhador que recebe um salário mínimo precisa trabalhar 19 anos para ganhar o mesmo que um desses bilionários recebem em apenas um mês.

Alguns fatores ajudam a explicar a concentração de renda, mas o principal, para Georges, é o sistema tributário brasileiro, que favorece tanto os mais ricos como seus herdeiros.

"A baixíssima tributação de heranças no país, junto com a baixa tributação de rendas altas, favorece a concentração e a manutenção dessa concentração por gerações", afirma o coordenador da Oxfam, explicando que esse tipo de renda concentrada e passada de pai para filho é um movimento que ocorre não somente no Brasil, mas em outros países que tributam pouco os ricos.

Georges destaca ainda a concentração de terras. "O Brasil necessita de uma reforma agrária, pois esta poderia quebrar com estruturas de poder econômico no país."

Dados do relatório Terra, Poder e Desigualdade na América Latina, da Oxfam, mostram que 45% de toda a área rural do país está nas mãos de menos de 1% da população. Apesar disso, mesmo sem acesso a recursos e a créditos no campo – que mais uma vez ficam nas mãos desse 1% – os pequenos produtores são responsáveis por produzir mais de 70% dos alimentos de todo o país.
Deutsche Welle

Estado gargântua

Entre civilizados, a selvageria deixa de ser selvageria desde que pague um tributo ao Estado
Humberto de Campos, "Os párias"

Qual governo valerá?

Pareceu um governo de verdade, não apenas pelo conteúdo da reforma da previdência, coerente e ampla, mas também pelo modo como a equipe econômica a apresentou, competente e amistosa com a imprensa.

Diferente, para melhor, mas muito diferente do governo que aparece nos áudios da conversa entre Jair Bolsonaro e Gustavo Bebianno, conhecidos um dia antes da apresentação da reforma previdenciária. Na conversa, exibe-se um presidente que divide a imprensa entre amigos e inimigos, se ocupa de assuntos sem nenhuma importância e ainda assim o faz de maneira frequentemente agressiva e rancorosa. O então ministro até tenta segurar as pontas, mas jamais parece uma alta autoridade encarregada das complexas relações com o Congresso.

Já ontem, Bolsonaro agiu como presidente. Foi ao Congresso levar a proposta de reforma, admitiu que estava errado quando, como deputado, votara contra várias propostas de teor parecido e ainda delegou a divulgação a um time competente, o mesmo que preparou os projetos, o time de Paulo Guedes,

Já se sabia que há vários governos em formação, mas os últimos dias proporcionaram uma demonstração prática desse processo. Várias demonstrações, aliás.


Combate à corrupção, por exemplo. Os projetos levados ao Congresso pelo ministro Sérgio Moro também têm a cara de um governo de qualidade. Pode-se até discordar – e há objeções dos dois lados, um achando muito rigoroso, outro menos – mas não se pode negar que se trata de uma peça jurídica consistente.

Também foi competente o modo de preparação e apresentação. Moro, assim como Guedes, conversou com lideranças políticas, negociou, ouviu setores sociais.

Por outro lado, aparecem o ministro do Turismo, Marcelo Álvaro Antônio, e o deputado Luciano Bivar, presidente do PSL, partido de Bolsonaro, envolvidos em denúncias de plantar laranjais nas eleições. Foi indicado líder do governo o senador Fernando Bezerra Coelho, legítimo representante da velha política, participante de administrações à direita e à esquerda (incluindo dois anos como ministro de Dilma) e alvo de inquéritos na Lava Jato. E sem contar que o senador Flavio Bolsonaro está longe de ter explicado suas finanças e a atuação de seu assessor Fabrício Queiroz.

Qual governo prevalecerá? Qual presidente? Reparem que ainda ontem, depois da solenidade em que entregou a reforma na Câmara dos Deputados, Bolsonaro voltou ao seu local preferido, as redes sociais, para tuitar em defesa de Carlos Bolsonaro – o principal executor da lamentável operação de fritura de Bebianno, o mais agressivo nos ataques à imprensa, o mais disruptivo e que vinha sendo alvo de críticas generalizadas no ambiente político de Brasília.

Querem outra divisão? O presidente chamando a Globo de inimiga e o porta-voz, Rego Barros, dizendo que o governo tem o maior respeito por toda a imprensa e não vê inimigos ali.

Tudo considerado, a condição essencial para que disso tudo aí surja um governo de verdade é a aprovação da reforma da previdência e da legislação de combate à corrupção. Ou seja, a prevalência da dupla Guedes/Moro.

Dizem que isso causa ciúme nos outros governos, mas se essa bronca der em sabotagem, vai tudo por água abaixo.

Tem mais: a aprovação da reforma da previdência já não é suficiente para desfechar uma onda de novos investimentos. A queda da reforma – ou a votação de uma proposta desidratada – derrubará a confiança e, pois, a economia. A aprovação preserva a confiança na capacidade da administração de colocar ordem nas contas públicas. Mas para o retorno dos investimentos, especialmente dos estrangeiros, continua faltando um grande programa de privatizações e concessões, e mais as medidas microeconômicas para destravar os negócios.

Para a manutenção de apoio social, vale a aprovação do pacote anticorrupção.

Podem conviver os vários governos?

Difícil. Aquele dos áudios e correlatos mina a confiança e assusta os políticos, deputados e senadores, que se sentem ameaçados no exato momento em que são chamados a aprovar as reformas, algumas contra interesses pessoais de muitos deles.

Precisa-se de uma dupla Guedes/Moro para a articulação política. E mais do bom senso, pois é, mais essa, do lado militar.

Disparando em sombras nas próprias trincheiras

Jair Messias Bolsonaro foi eleito pela maioria dos votos válidos da eleição de outubro para evitar que políticos suspeitos, processados, acusados e condenados pela Operação Lava Jato interrompessem o bem-sucedido combate à corrupção, realizado por uma nova geração de policiais, procuradores e juízes federais probos e competentes. Estava ainda em sua agenda prioritária interromper a queda brutal da economia brasileira, empreendida pela gestão ruinosa e corrupta do Partido dos Trabalhadores (PT), seus aliados, especialmente o Movimento Democrático Brasileiro, (MDB) e, por incrível que pareça, adversários, caso do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), que garantiam a manutenção do esquema a troco de propina.

A nomeação de Paulo Guedes, que levou uma equipe de economistas liberais para o Ministério da Fazenda, tem até agora correspondido, ao menos em termos de perspectivas, às esperanças de uma cidadania violentamente empobrecida pelo arrombamento dos cofres do erário. E mantida em cárcere privado pelas organizações do crime organizado. Não à toa a Bolsa de Valores tem traduzido a confirmação das esperanças em pregões repetidas vezes em alta. E a transferência dos líderes do Primeiro Comando da Capital (PCC) de presídios paulistas para federais de segurança máxima nutre a esperança generalizada de que a violência seja, de fato, combatida pelo Ministério da Justiça sob o ex-juiz Sergio Moro. Embora ambas as promessas dependam de aprovação de mandatários do Poder Legislativo, o comportamento estúpido e pueril da esquerda soit-disant “resistente”, tornada refém de um criminoso condenado e encarcerado, não dificultará muito seu cumprimento.

Mas restam dois obstáculos. Um é o comportamento corporativista da cúpula do Judiciário. Outro, a mistura de arrogância, ignorância e falta de compreensão do núcleo do Planalto, incluído o presidente, incapaz de entender que deve governar para todos, e não apenas para a feroz militância que vocifera em redes sociais.


A “resistência”, que se nega a ser oposição ao não reconhecer a possibilidade de alternância do poder no Estado de Direito, sabota a atual gestão, como se o cidadão a quem pede voto não dependesse do sucesso do governo para sair do buraco em que os mandachuvas dela o atiraram, sob pena de afundar na miséria. Do lado oposto, em vez de se concentrar em prioridades de difícil execução, como as já citadas, o presidente e sua grei atuam como se continuassem em campanha, disparando em sombras que veem nas próprias trincheiras. O caso Bebianno é exemplar: guindado do anonimato a posto central da negociação política do governo, foi jogado no esgoto do opróbrio por mexericos do âmbito filial.

O caso seria apenas sórdido e grotesco se não tivesse dado oportunidade para pôr fim, de uma vez, a um golpe imundo de políticos que os atuais locatários do poder chamam de “velhos”. Os Fundos Partidário e de Financiamento de Campanha partem do pressuposto de que, se empresas não podem mais doar para eleger ninguém, a solução é bater a carteira do eleitor com a autorização legal para disputar pleitos em que quase R$ 1 trilhão é subtraído dos cofres públicos.

Trata-se, é claro, de corrupção “legalizada”. Mas não fica nisso: foi descoberto que a legenda usada pelo capitão para se eleger distribuiu fortunas a candidatos, especialmente mulheres, incapazes de ser sufragados por uma mera centena de eleitores. No caso, além do furto direto, mas aparentemente impessoal, há o indireto. Investigação bem feita, e o ministro da Justiça, Sergio Moro, determinou uma, poderá descobrir uma apropriação de “ajuda” ao patrimônio dos dirigentes do Partido Social Liberal (PSL). O presidente à época era Bebianno. E o atual, Luciano Bivar, quando era cartola do Sport do Recife, contou ter pago pela convocação de seus craques para a seleção nacional. Nada de novo no front!

Mas também nada que não pudesse ser resolvido com a demissão do dirigente, publicada no Diário Oficial, assim que o assunto se tornou público. Sem necessidade da humilhação, que faz parte do jogo do poder nos corredores palacianos, pelos quais desfilava o pecuarista Bumlai nos tempos de Lula do PT e hoje circulam Carlos Bolsonaro, o 02, e seu agente, Leonardo Rodrigues de Jesus, o Léo Índio. Este, conforme reportagem do Estado, foi 58 vezes ao Planalto em 45 dias, nos quais Jair Bolsonaro despachou por 16. Frequentador assíduo do gabinete ocupado por Bebianno, o tal primo dos filhos do presidente, embora sem função oficial, participou do encontro para tratar do socorro a Brumadinho e de reuniões fechadas na Secretaria de Comunicação (Secom) a respeito da reforma da Previdência. Por sinal, Bebianno foi tido como peça importante das negociações com o Congresso. Mera lorota! Ninguém com gabinete próximo ao do presidente é insubstituível.

Outro Nantes Bolsonaro protagonizou caso capaz de motivar uma tarefa difícil da “nova política” para sanear dejetos da “velha”. Relatório do Conselho de Controle da Atividades Financeiras (Coaf) detectou movimentação atípica nas contas dos deputados estaduais fluminenses, entre estes o petista André Ceciliano, presidente da Assembleia do Estado do Rio de Janeiro (Alerj) com apoio do governador Wilson Witzel, e o agora senador Flávio Bolsonaro. A notícia levantou o véu de uma das práticas mais calhordas da “velha política”: o achaque por vereadores, deputados estaduais e federais, senadores e prefeitos a servidores humildes que eles nomeiam para que lhes devolvam a parte do leão de seus vencimentos, de cerca de R$ 10 mil mensais. O assunto foi abordado pelo parlamentar mais lúcido do Brasil contemporâneo, a deputada estadual paulista Janaina Paschoal, do PSL.

Se liderar a extinção dos fundos trilionários de partidos e desse “rachuncho”, Bolsonaro entrará para a História no panteão dos heróis do povo.

Pensamento do Dia


Tudo que seu televisor sabe sobre você

Michael Veale tinha dúvidas. Era início de janeiro e todo mundo a sua volta parecia falar da mesma coisa, o novo sucesso da Netflix: um capítulo de Black Mirror, uma de suas séries emblemáticas, totalmente interativo. O espectador controlava o protagonista, um atribulado programador de jogos, e tomava decisões por ele: que cereais comer pela manhã, tomar LSD ou não, falar sobre sua mãe com o psicólogo. O argumento do capítulo mudava a cada opção. “É um novo tipo de narrativa que revolucionará o futuro”, tuitou entusiasmado Alex de la Iglesia no dia da estreia.

Mas Michael Veale, um britânico de 26 anos que pesquisa leis de proteção de dados na University College de Londres, tinha dúvidas. “Muita gente garantia que a experiência era uma atividade para extrair dados dos usuários”, conta em uma visita a Madri. “Me interessava saber não só o que a Netflix fazia com todos esses dados, mas com que base legal.” Foi o que perguntou à casa, aproveitando que agora esses pedidos de informação estão amparados pelo Regulamento Geral de Proteção de Dados que entrou em vigor na Europa em maio passado. “Já que temos direito de investigar e compreender atividades como esta, queria mostrar que o Regulamento pode ser usado para perguntar sobre questões cotidianas”, continua. Esta semana, a Netflix lhe deu a resposta. Efetivamente, havia anotado cada decisão tomada por cada espectador. O capítulo de Black Mirror era, para muitos, um triunfo de criatividade televisiva; para outros, um triunfo de mineração de dados.


Também é um exemplo de até que ponto é absurdo separar uma coisa da outra. Em uma época marcada pelo estudo em massa do comportamento de todo consumidor em qualquer setor, a televisão se tornou uma arma potente. Os grandes do negócio se tornaram o que são hoje fundamentalmente por sua forma de explorar os dados que cada espectador vai deixando em uma tela conectada à Internet. Cada segundo de vacilo antes de escolher um título, cada pausa na reprodução do programa, cada cena rebobinada. Todos os dados contribuem para conhecer o espectador, e cada espectador colabora para conhecer o mercado inteiro. Quanto mais banal for o dado, melhor. Mais valioso será cruzá-lo com outros milhões de variáveis.

A Netflix é o serviço mais conhecido por sua forma de estudar seus quase 150 milhões de assinantes no mundo todo. Mas sem dúvida não é a única. Quando a Amazon se dispôs a lançar seu negócio de televisão por assinatura (hoje Amazon Prime Video), em 2012, ofereceu uma série de capítulos piloto para que o público votasse em qual queria ver transformado em série. Ao mesmo tempo, determinaram que capítulo era mais visto segundo quais pessoas, que momentos eram mais rebobinados e quais tinham mais pausas. Com isso tomaram suas decisões. Aquelas séries não funcionariam.

Era um estilo muito diferente do da Netflix. “Eles compreendem as limitações de analisar dados, e sabem como superá-las com base em especialistas humanos”, explica Sebastian Wernicke, diretor de análise de dados da consultoria alemã One Logic, que estudou o papel do big data na criação televisiva. “A Netflix não decide apenas com dados em mãos, mas usa os dados para melhorar as decisões que toma.” Na casa se conta que sempre que se produziram House of Cards em 2013 era porque sabiam que seu público gostava de thrillers políticos e dos filmes de David Fincher. Mas chamaram Fincher. Os dados informam a parte criativa e os criativos dão forma aos dados.

Por isso ainda subsiste a brincadeira recorrente do setor de culpar o algoritmo da Netflix por todas as coincidências entre as séries da casa: os protagonistas tímidos de cabelo escuro apaixonados por uma mulher mais esperta que eles (Sex Education, Elite, End of the F***in World, 13 Reasons Why) ou a quantidade de séries cuja temporada é interrompida na metade por um capítulo em um lugar remoto, como uma viagem de carro ou um funeral. Devem gostar muito do algoritmo. Não receberam nem pausas nem rebobinadas e por isso há tantas.

“Não sei ao certo quantos dados mais poderiam ser reunidos, mas se os encontrassem, refinariam a estratégia”, opina Wernicke. Talvez com experimentos como o de Black Mirror? Aqui Veale pondera: “Os dados coletados nesse caso deveriam nos preocupar? Certamente não. Mas o fato de que tenham tirado mais informação do que a permitida pelos clientes ao assinar, sem pedir permissão? Sim, esse dado é preocupante.”

País sem projeto

Sempre considerei esse país um enigma a ser decifrado. E estou cada vez mais convencido de que é impossível decifrar o Brasil.

(...) Minha perplexidade é um pouco a perplexidade do poeta espanhol Antonio Machado, que em um de seus versos mais conhecidos disse: “Caminante, no hay camino. Se hace camino al andar”. Esse é o Brasil. Um país sem projeto, porque o projeto dele é andar
João Silvério Trevisan

A torina cruel das tragédias que acontecem

Antes de me referir às recentes tragédias, sobretudo à da política que vivenciamos não é de hoje, apenas um registro necessário. Amigos/leitores insistem em enviar-me “notícias” oriundas das redes sociais. Não desejo ser grosseiro com nenhum deles, mas não as leio. Desconsidero-as. Recente comissão parlamentar britânica, que defende, em nome do cidadão, reforço na regulamentação aplicada às redes sociais, considera o Facebook um “gângster digital no mundo online”. Sua atuação vai da notícia falsa à espionagem de usuários. O mal que elas fazem ao regime democrático é cada vez mais destruidor.

Mal se iniciou o ano, e as tragédias se sucedem como se obedecessem a uma rotina cruel. As de Brumadinho e do Ninho do Urubu, além das vítimas das chuvas, já estão ficando para trás. E o pior, leitor, é que quase todas poderiam ser evitadas. Por que não são? Acompanho-as desde que me entendo por gente. As profissões de jornalista e advogado me deixaram mais próximo delas. Elas doem muito. Ceifam vidas que mal se iniciaram. Não fazem escolhas e provocam traumas terríveis. Sem distinção, a emoção vai tomando conta dos brasileiros. Como ocorreu na morte do jornalista Ricardo Boechat.


A propósito, encontrei-me outro dia com um amigo de longa data, jornalista da velha guarda como eu. Não nos víamos havia muito tempo. Mesmo assim, me disse, meio marotamente: “E o Ricardo Boechat, você viu? Acordava com ele todo dia”, referindo-se ao seu “imperdível” (para muitos) programa na BandNews: “Ele se foi, mas tanta gente que deveria ir ficou aí, zombando de nós – os babaquaras! Como funciona isso? Diga-me você, que entende bem as regras de Deus...”

Deixei o amigo e pensei comigo: mas que há um traço em comum entre todas as tragédias, isso há. Os responsáveis por elas, tanto na área privada quanto na pública, não se sentem culpados. A frase “eu não tive culpa”, que todos, não raras vezes em sincero desabafo, desde que pilhados em alguma infração, deixam logo escapar, revela tremenda confusão sobre o verdadeiro significado de culpa. Consideram-se, às vezes, eternas vítimas da fatalidade que os persegue.

Confundem sempre culpa com intenção, que é o que caracteriza o dolo nas suas diversas modalidades. (Na verdade, na maioria dos crimes culposos, não se deseja fazer mal a ninguém). Escapa-lhes (escapa ao cidadão comum) o significado do substantivo. Não lhes passa pela cabeça que o culpado pode não ter tido intenção, mas foi imprudente, negligente e imperito. Não aceitam que imprudência, negligência e imperícia, que embasam a culpa, andam de mãos dadas.

A matéria, embora jurídica, pode ser compreendida pelo leigo. E, por isso, leitor, pergunto-lhe: quantas vezes ao dia somos imprudentes, negligentes e imperitos? Convivemos ou não com tal risco?

Pense nisso e tire suas próprias conclusões.

Jair Bolsonaro leva ao balcão emendas e cargos

Às voltas com a necessidade de estabilizar o seu governo, Jair Bolsonaro decidiu trocar a autocombustão pelo pragmatismo político. Pressionado a dar um rumo à sua articulação política —eufemismo para a distribuição de benesses a deputados e senadores—, o presidente sinalizou a intenção de reativar o balcão. Fez isso em duas reuniões realizadas nesta quarta-feira, após a visita que fez ao Congresso para entregar a proposta de reforma da Previdência.


No primeiro encontro, Bolsonaro dividiu a mesa de almoço do palácio residencial do Alvorada com três expoentes do DEM: o ministro Onyx Lorenzoni (Casa Civil) e os presidentes da Câmara, Rodrigo Maia, e do Senado, Davi Alcolumbre. Participou do repasto também um coadjuvante: o deputado Major Vitor Hugo (PSL-GO), líder de Bolsonaro na Câmara. Decidiu-se acelerar a formação de algo que se pareça com um bloco governista no Congresso.

Serão levadas ao balcão três mercadorias: cargos em órgãos públicos federais situados nos Estados, algo como R$ 3 milhões em emendas orçamentárias para cada parlamentar que se disponha a votar com o governo e a perspectiva de associação da imagem dos governistas com obras inacabadas que o governo planeja reativar em diferentes regiões do país.

Num segundo encontro, Bolsonaro recebeu a bancada do seu PSL, machucada pelo escândalo das candidaturas fantasmas e pela queda de Gustavo Bebianno do posto de ministro-chefe da Secretaria-Geral da Presidência. O anfitrião anunciou em primeira mão aos correligionários o que acertara na hora de almoço com a caciquia do DEM: vêm aí os cargos, as emendas e as obras. Onyx já havia acenado com a distribuição desse combo de fisiologismo. Mas foi a primeira vez que Bolsonaro avalizou a novidade.

A rendição do capitão ao toma-lá-dá-cá chega num período que um dos ministros militares do Planalto batizou de "fevereiro negro". Na véspera, a Câmara aproveitara a autocrise que Bolsonaro armou com o ex-amigo Bebianno para dar uma pancada no governo. Por um placar elástico —367 votos a 57—, os deputados eletrocutaram o decreto do Planalto que elevara o número de servidores com autoridade para impor o sigilo a dados sujeitos à liberação com base na Lei de Acesso à Informação.

O mesmo Rodrigo Maia que recostou os cotovelos na mesa do Alvorada fizera vista grossa para a articulação que resultara na primeira derrota legislativa de Bolsonaro. O capitão captou a mensagem: ou joga o jogo ou não terá os 308 votos de que precisa para aprovar a reforma da Previdência na Câmara. Foi para o beleléu a fantasia segundo a qual Bolsonaro obteria a governabilidade no Congresso acertando-se com grupos temáticos como as bancadas da Agricultura, da Saúde e da Bala.

Voltam ao proscênio, entre outros, os líderes de partidos que compõem o velho centrão. Comandam o espetáculo os profissionais do DEM, à frente Rodrigo Maia. O cerco a Bolsonaro foi acertado num jantar ocorrido no início da semana, na residência funcional do presidente da Câmara. Além de Maia, Alcolumbre e Onyx, participou o prefeito de Salvador, ACM Neto, presidente nacional do DEM.