sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

Feliz 2017

Vai um ano, chega outro. Divisões infinitesimais do tempo que guardamos como bons ou maus, acolhemos como protegidos por lendários seres ou regidos por estrelas zodiacais, quando o mais importante de todo o tempo é o dia que nasce.

A alegria do renascer a cada dia para uma nova chance de viver é o que conta no tempo. O dia, em sua infinitude, traz todos os matizes de viver: o espanto, a surpresa, a alegria, a tristeza, a vida e a morte, tudo sem o que nunca viveríamos, mas vegetaríamos.

Devemos agradecer e participar de cada dia com intensidade e repetir pelo tempo o renascimento em cada amanhecer.

2017 bate à porta com centenas de dias felizes e saudáveis para se comemorar
Até o ano que vem 

Tributo aos campeões

A repercussão do anúncio dos EUA sobre a ação global da Odebrecht provocou um temporal político na América Latina. Bem maior do que tivemos notícia pelos jornais e TV. Foi um intenso movimento no Twitter, que começou com gente perguntando quem eram os corruptos do governo de cada país, passou por desmentidos de presidentes e ex-presidentes, nomes suspeitos, acusações. Alguns importantes projetos, como assegurar a navegabilidade do Rio Magdalena, na Colômbia, estão ameaçados. Começaram a duvidar até do estudo de impacto ambiental da Odebrecht.

Ao ver aquele furacão durante a semana, não podia perder de vista que tudo aquilo havia sido causado por uma empresa brasileira. Ironicamente, o programa do BNDES para estimular as empresas campeãs nos deu apenas um título mundial: o do maior escândalo de corrupção.

Nenhum texto alternativo automático disponível.

Em termos de política externa, penso eu, seria ideal que o Brasil fizesse o comunicado, informando, como fizeram os americanos, quanto se usou em corrupção e o lucro obtido em cada lugar. Em termos ideais, porque, dados as circunstâncias brasileiras, o ritmo do STF, a delicada posição do governo na Lava Jato, não temos as mesmas condições dos norte-americanos. Verdade é que o próprio relatório divulgado lá destacou as investigações feitas no Brasil, pois trabalhou com dados, essencialmente, obtidos aqui.

Todos estão conscientes da abertura brasileira para compartilhar as informações. Em termos ainda ideais, seria preciso um outro passo: uma legislação disciplinando o comportamento das empresas no exterior.

Quando todo esse movimento rumo ao exterior começou, confesso que tentei formular uma lei que punisse o suborno de autoridades. Alguns assessores da Câmara ajudaram. Mas as possibilidades de êxito eram muito remotas. Não só pela força das empreiteiras. Havia um argumento muito forte: era uma iniciativa ingênua que acabaria reduzindo a competitividade de nossas empresas.

Com as voltas que o mundo deu, uma legislação que discipline as empresas brasileiras pode ser precisamente um instrumento para que não percam a competitividade depois do furacão Odebrecht.

O relatório americano não menciona o papel que o BNDES teve em cada um dos projetos da Odebrecht. Quando tudo isso vier à luz, talvez se desvende que o dinheiro da propina eram recursos públicos.

Uma legislação mais precisa pode evitar que instituições sejam levadas para uma engrenagem criminosa internacional. Mas talvez não seja a falta dela o ponto essencial.

Havia toda uma política, da qual o BNDES era um instrumento, destinada simultaneamente a abrir caminhos para a Odebrecht e fortalecer a imagem de Lula. Os métodos escolhidos para isso resultaram num desastre, pois fecharam os caminhos da Odebrecht e atingiram profundamente a imagem de Lula na América Latina.

A escolha equivocada jogou-os num enredo e crime e castigo. Mas a Odebrecht era considerada a maior empreiteira brasileira atuando no exterior, Lula é o ex-presidente do Brasil. Por mais que tenha nascido e se desenvolvido aqui a investigação que revelou o gigantesco esquema, o Brasil tem um delicado problema externo a superar.

O passo que sugiro é criar legislação que possa atenuar a desconfiança em torno de empresas brasileiras no exterior.

Enquanto o esquema era revelado somente dentro do Brasil, alguns lugares do mundo não se interessaram por ele. Mas agora que pelo menos nove países se deram conta da interface Odebrecht-Lula com os seus próprios políticos e administradores, a América Latina tornou-se uma única aldeia escandalizada.

Outra resposta brasileira que poderia inspirar outros países envolvidos no escândalo seria romper o vínculo entre empreiteiras e governo. Para isso é preciso aprovar um projeto, que já está no Congresso, obrigando a mediação de empresas seguradoras, responsáveis por fiscalizar as obras.

Governo e Congresso estão pisando em ovos com a Operação Lava Jato. Em vez de definirem as alternativas que se abrem com seu desdobramento, preferem discutir como contê-la. No entanto, não acho insensato pressioná-los a se dar conta do que está acontecendo em torno de nós, depois que o relatório americano foi divulgado. Muitos são investigados na Lava Jato. Investigadas ou não, as pessoas podem fazer as coisas certas quando se colocam problemas nacionais. Isso, todavia, não vai absolvê-las nem condená-las.

A dimensão da Lava Jato nos obriga a ir um pouco além do quem recebeu quanto para quê, quando eles serão julgados. O escândalo anexou uma dimensão internacional ao drama e atingiu a imagem do Brasil, por causa do comportamento de seu Lula e das empresas que gravitavam em torno do BNDES.

Pode-se escolher a tática de fingir que não foi conosco, submergir à espera de um melhor momento. Isso costuma falhar. Um título mundial de corrupção não se esquece rapidamente. É preciso correr atrás da credibilidade perdida. O julgamento dos artífices do gigantesco esquema de corrupção será, certamente, uma grande resposta.

E, antes dela, também ajudaria a transparência sobre a delação da Odebrecht. Não é confortável ler algo que aconteceu no Brasil, foi apurado aqui, narrado em inglês com os políticos sendo chamados de brazilian officials e numerados.

O brazilian official número 1, por exemplo, deveria dar uma parada para pensar no rastro de raiva que deixou essa aliança entre corruptos latino-americanos. A prática de roubar o próprio povo transcendeu as fronteiras nacionais. Um fato histórico.

Os líderes comunistas do passado criaram internacionais para marcar posições políticas diferentes. A decadência chegou ao ponto de se criar a partir do Brasil uma internacional da corrupção. Nela, América Latina e África foram unidas pelos seus defeitos, e não pelas qualidades.

Há todo um caminho a reconstruir.

Controle de nações

Por trás da revelação feita pelo Departamento de Justiça dos Estados Unidos, com base em investigações da Operação Lava Jato, de que a Odebrecht pagou mais de US$ 1 bilhão (cerca de R$ 3,4 bilhões) em propinas em 12 países desde 2001, está muito mais do que um esquema internacional de corrupção.

Tal prática é uma ameaça concreta à estabilidade democrática dos países. Pelo que foi levantado até agora pela força-tarefa da Lava Jato, a empresa teria bancado o pagamento de marqueteiros das campanhas de candidatos vitoriosos a presidente da República em alguns dos países onde tinha interesses comerciais, via caixa 2 ou dinheiro de propina.

Desse modo, passou a empresa a ter – ou a planejar ter – o controle sobre governos, programas de governos, cronogramas de obras.

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Com base em delações negociadas entre executivos e ex-executivos da Odebrecht aqui no Brasil, existe a informação de que medidas provisórias que interessavam à Odebrecht foram compradas por alguns milhões, pagos a burocratas, funcionários do governo e dirigentes partidários, possibilitando um retorno bilionário ao caixa da companhia. Se no Brasil houve a compra de MPs e leis, quem pode dizer que o mesmo não aconteceu nos outros países onde o conglomerado empresarial tinha interesses?

Há algum tempo estudiosos da geopolítica do mundo acreditam que a guerra convencional chegará ao fim. Prevalecerá os interesses de grandes grupos econômicos, que tudo farão para manter a hegemonia sobre outros e, principalmente, sobre as nações, simples joguete em suas mãos.

Criada em 1899, a americana United Fruit Company ficou muito conhecida no mundo, principalmente na América Latina. Financiou golpes de Estado e guerras civis nos quais a atuação do governo local ameaçava seus interesses. No lugar de quem ela derrubava, sempre era posto um fantoche. O Prêmio Nobel de Literatura Gabriel Garcia Márquez dedicou um bom espaço de sua obra Cem Anos de Solidão à United Fruit, identificando-a com massacre de trabalhadores, a negação de direitos sociais, sindicais e humanos, o clientelismo político e o suborno.

Do mesmo modo, também Nobel de Literatura, o escritor chileno Pablo Neruda escreveu um poema chamado La United Fruit Co, publicado em Canto General. Depois de dizer que a empresa se instalou também na costa central de sua terra, ele afirma que a companhia batizou de novo as terras chilenas, agora de “República de Bananas”. “E sobre os mortos dormidos, sobre os heróis inquietos que conquistaram a grandeza, a liberdade e as bandeiras, estabeleceu sua ópera bufa”. Em seguida, Neruda enumera os nomes dos fantoches que a United Fruit levou ao poder países afora.

Boa parte dos movimentos de esquerda na América Latina se fortaleceu na luta contra a empresa americana, principalmente na primeira metade do século 20 e depois da Segunda Guerra.

Há semelhanças entre a atuação da Odebrecht e a da United Fruit na luta pelo poder, com a diferença de que agora não há o emprego da violência. A americana financiava golpes contra governos estáveis e democráticos. A Odebrecht passou a financiar governos instáveis com os quais mantinha negócios, quase todos eles de centro-esquerda.

O que diriam Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Lenin e outros se soubessem que em um futuro não muito distante parte daqueles que se inspirou em seus ideais revolucionários acabaria por se desmoralizar pelo dinheiro do Brasil?

A respeito de toda essa questão que envolve o domínio de nações pelo interesse de empresas, diz o ex-deputado petista Paulo Delgado (MG): “Ironia da história o passado se parecer com o presente. A nossa esquerda, que em parte se formou na luta contra a United Fruit Company, se desmoraliza pedindo dinheiro à United Odebrecht Company”.

Imagem do Dia

Claire Droppert

O tempo

#Clock #Time #Watch #Timepiece #Timekeeper #AlarmClock #Reloj #Tiempo #TickTock #Retro #Vintage #Old #Anticque #Shabby: A vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa.
Quando se vê, já são seis horas!
Quando de vê, já é sexta-feira!
Quando se vê, já é natal…
Quando se vê, já terminou o ano…
Quando se vê perdemos o amor da nossa vida.
Quando se vê passaram 50 anos!
Agora é tarde demais para ser reprovado…
Se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio.
Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas…
Seguraria o amor que está a minha frente e diria que eu o amo…
E tem mais: não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo.
Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz.
A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará.
Mário Quintana

Quando todos os gatos são pardos

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Quando a noite é bastante escura, todos os contornos desaparecem 
Jostein Gaarder

Como me queixar de 2016?

2016 não foi, de modo algum, um ano simpático. Foi daqueles que torcemos para que acabe logo. Nem vou elencar aqui tudo que ele nos trouxe de ruim, as más notícias quase que diárias, as perdas irreparáveis. Seria como oferecer a vocês os jornais de ontem, anteontem e trasanteontem...

São tantos os bons jornalistas a analisar e comentar os inacreditáveis e infindáveis nós em que nos meteram, como vou me meter na seara deles? Eu não saberia falar com igual propriedade. “A parte que ignoramos é muito maior que tudo quanto sabemos”, aprendi no colégio, quando os mestres ainda nos estimulavam a ler os grandes filósofos.

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Mas tenho um sentimento em relação a 2016: ele não foi de todo negativo. Teve lados altamente positivos para o Brasil: o impeachment da representante do PT no Palácio do Planalto; a força moral da Lava-Jato; e o desmantelo da impressionante cadeia de corruptos responsável pela vergonhosa e lastimável situação em que o Brasil se encontra.

Entretanto, o PT despachado, ver poderosos bem instalados em Curitiba, a corrupção com sua cabeça cortada, não acham que é caso para agradecer, um pouquinho ao menos, o ano que se vai? Não sou das ingênuas que acreditam que a corrupção foi para sempre dizimada. Longe disso. Sempre haverá corruptos. O que é necessário é que sempre haja fiscalização e punição para os corrompidos e para os corruptores!

Mas que a corrupção levou um baita tranco, levou. Durante algum tempo seus acólitos vão se manter afastados desse ofício desgraçado. Quando tentarem voltar, não serão os mesmos e nós estaremos mais atentos e mais fortes.

Não é caso para agradecer aos Céus? Eu acho que é.

E tem mais: as pessoas que eu amo estão bem de saúde. Crianças queridas continuam chegando e encantando nossas vidas. Ainda estou por aqui. Alive and kicking, como dizem nossos amigos anglo-saxões. Probleminhas todos temos, mas nada que nos leve a desesperar. Viver é assim mesmo.

Por tudo isso, como posso me queixar de 2016, assim, sem mais aquela?

Agradeço pois o ano que passou e recepciono, com Fé e Esperança, o ano que vem.

Seja muito bem vindo 2017!

Finlândia, laboratório mundial da renda básica universal

A automatização da força de trabalho cresce a toda velocidade no século XXI. E a primeira consequência é dramática: perda de empregos tradicionais que, agora, a um custo laboral zero, são desempenhados por máquinas como lava-carros ou garçons que anotam os pedidos no restaurante. A Finlândia decidiu começar a se preparar para o futuro, experimentando com novas redes de proteção. O país nórdico será em 2017 o laboratório mundial do que foi batizado como renda básica universal. Ou seja, receber uma quantidade de dinheiro por mês sem motivo algum. Quer a pessoa esteja empregada ou não. Em um programa-piloto que durará dois anos, 2.000 cidadãos receberão a partir de janeiro 560 euros (1.920 reais) por mês somente para existir.

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“Para revolucionar algo tão grande, tão tradicional e tão fundamental como as remunerações é preciso experimentar primeiro”, afirma Roope Mokka, cofundador do Demos Helsinque, o primeiro think tank independente dos países nórdicos. Em um país calvinista no qual em toda esquina se respira a cultura da responsabilidade, esta remuneração adicional é vista por especialistas, políticos e cidadãos não como um presente, mas como uma oportunidade para fortalecer a economia e estimular a população a iniciar negócios, explica este jovem finlandês durante uma mesa redonda no Slush. Trata-se de um evento que congrega todo ano centenas de start-ups, empresas e investidores mundiais, e que se tornou um acontecimento crucial para a economia finlandesa, atualmente ainda lutando para sair de uma profunda recessão.

Mas mesmo com um horizonte difícil — a Comissão Europeia estima um crescimento de 0,9% no PIB do país no ano que vem —, o Governo conservador finlandês é pioneiro mundial em adotar a renda básica. Uma seleção de 2.000 cidadãos receberá a partir de janeiro, e durante dois anos, 560 euros por mês. “As análises mais confiáveis demorarão pelo menos seis anos para chegar”, prevê o especialista. Em um experimento em Oakland (EUA) serão mil famílias que ganharão o equivalente a 1.720 reais mensais, e em Utrecht, nos Países Baixos, a fórmula também será testada em 2017. Entretanto, a Finlândia é dos poucos países na União Europeia que não possuem um salário mínimo válido para todas as profissões, caso também das nações escandinavas. Seu PIB per capita, porém, é dos mais altos do bloco, mesmo em tempos duros: 38.200 euros (131.200 reais) em 2015 (ano em que o déficit alcançou 2,8% do PIB) enquanto o da Espanha é de 23.200 euros (79.650 reais), segundo o site datosmacro.

Para que a ideia da renda básica, que pode parecer utópica para muitos, se transforme em realidade é preciso haver financiamento. O especialista observa que a primeira coisa que as empresas e os Governos deveriam fazer é garantir que “os trabalhos tenham elevada remuneração”, além de pôr em prática uma reforma no sistema tributário que sobretaxe ainda mais as altas rendas. “A propriedade ociosa, bens, deficiência energética, edifícios... há muitas coisas sobre as quais podem ser aplicados mais impostos”, enumera Mokka de forma improvisada, embora tenha um grande conhecimento do que fala.

Do contrário, e como acontece, por exemplo, na Espanha — onde o Governo de Mariano Rajoy (PP) acaba de elevar o salário mínimo para 707,6 euros (2.430 reais), a metade do pago na França, segundo a Eurostat —, continuar trabalhando e receber este complemento salarial “não compensaria” e fomentaria a desocupação, um argumento que não convence Mokka. Acredita, no entanto, que aí se situa uma das chaves para o bom funcionamento da renda básica universal: “É preciso começar a assumir que nem todo mundo pode ter um trabalho porque estamos competindo contra as máquinas, e elas sempre ganharão”. O diretor da Tekes, a agência pública que investe em inovação neste país de pouco mais de cinco milhões de pessoas, Jukka Häyrynen, sustenta que a segurança no trabalho é algo que está sendo perdido em nível mundial, o que ele vê com certo positivismo: “Isto é um ingrediente para empreender”, afirma.

Um estudo que a Universidade Oxford elaborou em janeiro de 2016, mostra que 57% da força de trabalho humana nos países da OCDE está sob o risco de desaparecer por causa da automatização e dos avanços tecnológicos. “Temos a necessidade de integrar todas as pessoas desocupadas na nossa sociedade e, em lugar de subsídios pelo desemprego, a renda básica soa como uma boa ideia”, defende Juhana Aunesluoma, diretor de pesquisa de Estudos Europeus na Universidade de Helsinque, em uma sala do Ministério de Relações Exteriores. Algo que não convenceu a Suíça em junho, quando rejeitou essa iniciativa em um referendo.

Mas os Governos — especialmente os do sul da Europa — estão até certo ponto “obcecados”, diz Mokka, em chegar ao pleno emprego em detrimento da busca de alternativas para que o dinheiro entre nos lares (e no sistema) e para que os desempregados pela automatização do trabalho se mantenham ocupados e reinvistam seu tempo.

Paisagem brasileira

Abstrato
Casario, Durval Ferreira

Esperanças roubadas

Em 27 de dezembro foi publicada em O Globo a seguinte matéria do jornalista Antonio Werneck: “Carga milionária de remédio para câncer some a caminho de SP. Uma carga milionária de um medicamento usado no tratamento de leucemia crônica e no combate a tumores de estroma gastrointestinal desapareceu misteriosamente quando era levada de caminhão do Instituto Vital Brasil, em Niterói, para a Secretaria Estadual de Saúde de São Paulo. Avaliado em cerca de R$ 5 milhões...”

Não foi a primeira vez.

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Pesquisando jornais do Rio e de São Paulo, há relatos do roubo de drogas de alto custo que são revendidas por preços inferiores a farmácias e clínicas criminosas na capital e no interior desses estados. Desde 2007 foram noticiados assaltos nos hospitais Emílio Ribas, Brigadeiro, Servidor Público e Samaritano, todos em São Paulo. Os ladrões levaram os medicamentos específicos para oncologia, AIDS e reumatologia, que custam de 6 a 10 mil reais a dose. Apesar de armados, não usam de violência, mas certeiras informações ou crachás.

Há pouco mais de um mês, em um prédio de consultórios no Rio, foram roubados agentes biológicos caríssimos utilizados em reumatologia e que precisam ser conservados em baixa temperatura para manter sua eficácia. Hoje a clínica tem segurança armada na porta.

Será que existe um COCO - Centro Oncológico do Crime Organizado? Não creio.

Gente estabelecida compra, comercializa e administra esses medicamentos. Esses bandidos usando jaleco devem ter notas fiscais de remédios adquiridos legalmente, que usam para burlar a fiscalização.

No entanto, o crime mais grave é que essas drogas armazenadas de forma inadequada deixam de agir como deveriam, causam efeitos maléficos e podem matar os pacientes.

A Agência de Vigilância Sanitária, após o escândalo das “pílulas de farinha”, em 1999, aprovou uma resolução para a criação do sistema nacional de rastreabilidade de medicamentos, o que permitiria o controle do caminho de medicamentos da fábrica até o paciente.

O aumento do custo foi estimado em 0,05%, mas melhoraria enormemente a segurança no uso dos medicamentos, em todas suas fases: fabricação, transporte, distribuição, armazenamento, prazo de validade, prescrição, administração e avaliação de efeitos colaterais por lotes específicos, além de ajudar no combate tanto da falsificação, quanto do roubo. Porém a pressão da poderosa indústria farmacêutica e a complacência de nossos congressistas adiou essa normatização em 2013 e 2015. O golpe fatal foi desferido em 27 de setembro de 2016, quando sepultou qualquer prazo para adoção dessa saneadora medida.

O mercado brasileiro de medicamentos, que tem uma “informalidade” (amoralidade) de 30%, fato inconcebível nas sedes mundiais da lucrativa indústria farmacêutica, segue feliz.

Por quê? Uhum! Estranho!

A segurança dos pacientes exige a rastreabilidade dos medicamentos, fundamental também no combate à receptação de esperanças roubadas.

Resoluções de Ano Novo: as impossíveis e as obrigatórias

Hoje, como em todo 30 de dezembro, é dia de alinhar as resoluções de Ano Novo, daquelas impossíveis que abandonamos na primeira semana de janeiro, para reavivá-las no próximo dezembro. Por exemplo:

Parar de fumar. Beber menos. Evitar gorduras nas refeições. Fazer exercícios e corridas todos os dias. Tomar banho frio. Cuidar da saúde e fazer exames médicos. Ser carinhoso com filhos e netos. Ajudar os necessitados. Não pisar no acelerador. Ler um livro por semana. Assistir menos televisão. Matricular-se no curso de inglês. Cumprimentar e sorrir para os colegas de trabalho.
No entanto, por conta do ano bicudo que já termina, surgem novas e obrigatórias resoluções, que todos devemos seguir. São elas:
Acompanhar todos os dias a performance dos políticos. Marcar no caderninho os nomes dos envolvidos com a corrupção, para nas próximas eleições não votar neles. Pesquisar quais os deputados e senadores cujo padrão de vida aumentou depois de eleitos. Saber quantos políticos compraram apartamentos de luxo, sítios ou fazendas no exercício de seus mandatos. Anotar as viagens ao exterior de parlamentares e suas famílias. Acessar informações sobre gastos com cartões corporativos de crédito pelos funcionários do governo.

Mas tem mais. Participar de movimentos de protesto contra leis e iniciativas favoráveis às elites. Protestar contra a presença de políticos corruptos em restaurantes, aeroportos e mesmo na rua. Negar cumprimento aos políticos relacionados em listas da Odebrecht e outras empreiteiras. Aplaudir as ações da Polícia Federal, Ministério Público e Poder Judiciário, pessoalmente ou através de mensagens eletrônicas. Organizar grupos de amigos, familiares ou companheiros de trabalho para manifestações públicas de repúdio à corrupção. Acompanhar o comportamento da mídia na cobertura de escândalos e crimes praticados por políticos, exigindo de seus responsáveis a divulgação de notícias honestas e verdadeiras. Cobrar promessas não cumpridas de governantes e parlamentares.

Como também: ser tolerante para quem incorreu em erros, mas ser implacável com os erros. Transmitir experiências e lembranças para filhos e netos. Meditar e arrepender-se de omissões quando sua iniciativa poderia ter contribuído para a melhoria da vida em sociedade.

Por último, lembrar em quem votou nas últimas eleições e não repetir o voto, se o eleito ou seu partido descumpriram suas promessas.

Suicídio de funcionária exausta levou à renúncia do presidente de gigante japonesa

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O presidente da principal agência de publicidade do Japão anunciou sua renúncia ao cargo após o suicídio de uma funcionária que se dizia física e mentalmente exausta por causa do excesso de trabalho.

Tadashi Ishii liderava a Dentsu, uma gigante nipônica de publicidade, e assumiu a responsabilidade pela morte da jovem. Ele afirmou que vai tornar a renúncia efetiva na próxima reunião da diretoria da empresa, em janeiro.

Matsuri Takahashi tinha 24 anos e trabalhava na companhia havia sete meses quando pulou da janela de um prédio onde morava - que era da própria Dentsu - na noite de Natal de 2015.

O caso veio à tona nesta semana, depois da decisão do Ministério do Trabalho japonês de processar a empresa pela morte dela.

O governo chegou a fazer uma investigação e uma varredura na Dentsu para obter informações sobre as práticas de trabalho. Foi determinado que a empresa descumpriu as leis trabalhistas e, portanto, tem responsabilidade legal pela morte da jovem.

Na última quarta-feira, a empresa admitiu que cerca de 100 trabalhadores ainda faziam cerca de 80 horas extras por mês.

As mortes por excesso de trabalho são um problema tão grande no Japão que já existe até um termo para descrevê-las: "karoshi".

Antes de se matar, Takahashi deixou um bilhete para a mãe, no qual escreveu: "você é a melhor mãe do mundo, mas por que tudo tem que ser tão difícil?".

Semanas antes da morte, ela escreveu uma mensagem nas redes sociais em que dizia: "quero morrer". Em outra, alertava: "estou física e mentalmente destroçada".

Contratada em abril do ano passado, a jovem chegava a fazer cerca de 105 horas extras por mês.

Além disso, a família acusou a empresa de obrigá-la a registrar menos horas do que de fato trabalhava. Em muitos casos, o registro mostra que ela trabalhou 69,9 horas por mês, perto do máximo de 70 horas permitidas, mas a cifra era bem maior.

Takahashi havia acabado de se formar na prestigiosa Universidade de Tóquio e expunha as condições duras de trabalho na sua conta no Twitter, onde detalhava jornadas de até 20 horas diárias.

A carga horária disparou em outubro de 2015, quando ela só chegava em casa por volta de 5h, depois de ter trabalhado dia e noite. Além disso, ela não teve nenhum dia de folga em sete meses.

Ao anunciar sua demissão, o presidente da Dentsu afirmou que jamais deveriam ser permitidas essas quantidades excessivas de trabalho.

"Lamento profundamente não ter prevenido a morte da nossa jovem funcionária por excesso de trabalho e ofereço minhas sinceras desculpas", disse Ishii.

quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

Paixão

Chega, 2016, vaza!

 No próximo domingo, se tudo der certinho e o mundo não acabar antes, vamos entrar em 2017. Melhor dizendo, vamos, finalmente, nos livrar do interminável 2016, esse que não acaba nunca, e que segue mau até o fim, tirando de circulação gente que amamos, e deixando lépidas e saudáveis pessoas nefastas, cujas ausências preencheriam grandes lacunas.

De um ponto de vista estritamente pessoal, nem posso me queixar. O ano foi bom comigo. Trabalhei, encontrei amigos, viajei, me diverti com os gatos. Mamãe ganhou uma quantidade de campeonatos de natação pelo país e pelo mundo, minha neta mais velha está sendo aceita por diversas universidades americanas e tem boas ofertas de bolsas de estudo, os pequeninos estão cada vez mais engraçados e criativos. De ponta a ponta a família está bem e com saúde, com os altos e baixos que conhecemos, um aperto financeiro aqui, uma crise ali, vida normal.


Mas é difícil ser feliz quando o mundo está caindo, quando o ódio é uma presença sólida no horizonte, quando há tanta gente em volta que perdeu o emprego, que teve que fechar a loja, que desistiu de um negócio, que não sabe quando o estado paga.

Felicidade até existe da porta para dentro, mas ninguém consegue ser feliz de verdade se o mundo não estiver feliz, ou se não existir, pelo menos, a vaga noção de que o mundo pode talvez um dia quem sabe ser feliz; que o mundo está indo numa boa direção, caminhando em busca da paz e de um ideal de contentamento — tudo o que não tivemos neste ano, e que, a julgar pelo que se viu até aqui, não teremos tão cedo, se é que um dia tivemos.

“Il y aura toujours un chien perdu quelque part qui m’empêchera d’être heureuse”, diz uma personagem de Jean Anouilh ao desistir de um amor rico e voltar para a família pobre: haverá sempre em algum lugar um cão perdido que me impedirá de ser feliz. Alguns anos depois, Edith Piaf incorporou a frase a uma de suas canções, “Et pourtant”, acrescentando um “pauvre” ao “chien perdu”, coitado dele.

Pobres dos cães perdidos, pobres de nós.

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Quando estive em Moscou no final dos anos 1990, fiquei muito impressionada com as pessoas que, nas ruas, tentavam manter um último fiapo de dignidade, vendendo três toalhinhas de crochê aqui, cinco colherzinhas de café ali, um bibelô, um quadrinho, as derradeiras quinquilharias que tinham em casa.

Eram gente de idade, professores, engenheiros, militares reformados, sobreviventes do antigo regime que não conseguiram surfar a onda da abertura econômica e ficaram às margens do novo tempo — exatamente as pessoas que Svetlana Alexijevich ouviu em “O fim do homem soviético”, um dos grandes livros que li este ano.

Consegui conversar com dois ou três, numa colcha de línguas quebradas que dividíamos. Palavras, a rigor, nem eram necessárias. Bastava olhar para eles, e para a sua pobre mercadoria, para perceber o que tinha acontecido.

Eles não me saíram da cabeça desde então, mas a sua lembrança tem estado cada vez mais presente. Leio as notícias desse monstruoso calote que o governo está dando nos funcionários, e penso naqueles velhinhos amargurados e sem perspectivas.

Estamos caminhando para isso; não sei se o fato de não termos inverno chega a ser um consolo, ainda por cima diante desse verão abrasador.

Que mundo.

E que ódio.
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Por outro lado, algum progresso sempre fazemos. Em que pese Lula e o PT estarem trabalhando com a originalíssima tese de que sem corrupção não há desenvolvimento, e que todos os males do Brasil advêm da Lava-Jato, a operação e as suas ramificações são das poucas coisas que funcionam no país e que ainda elevam a nossa deficitária autoestima.

Não é em qualquer lugar do mundo que o maior empreiteiro vai em cana; não é em qualquer lugar do mundo que um ex-governador e sua mulher passam o Natal atrás das grades. Nunca pensei que, no tempo da minha vida, eu pudesse ver gente rica e poderosa ir presa no Brasil, ainda por cima por corrupção.

Ainda assim, acho que não basta ver todos esses figurões na cadeia. É edificante saber que a impunidade está diminuindo, mas sem a devolução de cada centavo roubado aos cofres públicos as punições acabam deixando muito a desejar.
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Millôr dizia que um homem público que se cerca de homens mais inteligentes do que ele é mais inteligente do que eles. Temer, por esse parâmetro, é burro, muito burro. É óbvio que não foi ele quem fez a lista de compras do avião da presidência, mas foi ele quem escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que escolheu a pessoa que fez a lista — uma sequência de gente sem noção, que não entende a impopularidade do governo e o momento pelo qual o país está passando.

Gastar de forma obscena é tradição antiga nos palácios de Brasília, mas não está na hora de tomar Romanée-Conti, está na hora de cortar custos e de prestar satisfações à população, que não aguenta mais apertar o cinto enquanto os nababos se refestelam à sua custa.
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Feliz Ano Novo, amigos. Que 2017 tenha alguma consideração conosco e nos traga, se não for pedir muito, um pouco de paz.

Cora Rónai

A Bitwar - A guerra dos mundos

Poucas pessoas se dão conta de que, neste exato momento, a maior batalha travada pela humanidade é a do digital contra o analógico. Quem acha que isto é só um sistema de tevê está muito enganado. É um sistema de governo. Eu diria que um governo analógico todos nós já conhecemos: é aquele em que você elege uma plataforma pronta, que imediatamente se torna a vontade da maioria – as minorias que se danem – e as instituições são chamadas para defender a tralha toda. Se você não gostar do governante, espere até poder eleger outra coisa em seu lugar, quando o pesadelo acabar.

Shintaro-Kago-illustrations-10:
Já o governo digital pleno ainda não existe. Mas ele é ou será, em tese, um compromisso e não uma plataforma. Você pode eleger o cidadão pelo seu smartphone, inscrever-se em chats de discussão dos grandes temas de interesse nacionais e o governo seria um mero administrador plebiscitário da vontade do seu eleitor, conferida numa serie de referendos que seriam conclamados continuamente. Não gostou? Troca de modelo, imediatamente.

Vou mais longe ainda. Faz tempo que o ideal publicitário do cara bem sucedido, com uma casa com gramado verde, piscina e um cachorro grande ladeado por uma mulher bonita e “do lar”, foi substituído por um ser – de sexo indefinido – munido de um bodysuit que lhe permita explorar qualquer ponto do planeta – Marte, inclusive – e um gadget digital que lhe permita uma interação imediata com o resto da humanidade. Romantismo meu? Longe disso. Percebam as implicações envolvidas nessas duas visões do sucesso: A acumulação já era, a opulência, o desperdício e o corporativismo sendo substituídos pela versão mais moderna do seu smartphone, com acesso ilimitado a qualquer tecnologia ou campo de conhecimento. É um novo gênero, o do “homo viajantis”.

Qual jornalista da velha guarda vai sobreviver messiânico à sua própria área de comentários? Qual ética vai sobreviver à janelinha? É bobagem lutar contra isso, meus caros. A vontade do consumo vai se impor e pronto. E até nisso a esquerda foi pernóstica e idiota, fazendo uso desse “progressismo” para o seu projeto de poder marreta. Eles até poderiam ter avançado muito nessa agenda planetária, nesse desejo de consumo, se não tivessem utilizado a coisa como mais uma de suas bandeiras porcas para consumar a roubalheira toda.

Poucos se dão conta de que não saber o que um Trump representa na ordem mundial das coisas pode ser um sintoma dessa digitalização em andamento. Ninguém precisa saber o que Trump representa: nem ele mesmo. Basta que ele tenha a última versão do seu aparelhinho no bolso – e Trump tem grana para comprar o mimo e tempo para aprender a usá-lo – para tornar-se o verdadeiro pesadelo de George Orwell. Nada mais dicotômico para a humanidade que um sistema de controle sem controle algum. Nem dos seus próprios controladores. Um sistema de comando sem comandantes aparentes. Alguém aqui duvida que esse é o caminho? Que esse caminho é inexorável? E que seu filho já faz parte dele? Boas Festas a todos.

Paisagem brasileira

CHEIRO DE MATO NA ROÇA:

Clima quente e nuvens negras

No lusco-fusco do apagar do ano, tórrido início de verão, os espíritos clamam por ar fresco, aquietar a mente e relaxar o corpo. O mais provável é que o tempo apenas passe, fechando um período, abrindo outro e renovando o calendário. Em tese, a semana entre o Natal e o Ano Novo serve para procrastinar um tantinho a vida. Mas, por estas veredas, nem no mormaço destes dias há sossego: a crise transformou-se no normal e cotidianamente exala sua sensação térmica de 50 graus!

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E assim, mais uma vez, a Polícia Federal foi às ruas, espalhou seu pavor entre partidos, operadores, políticos e governos; aumentou a desconfiança de que 2017 não será diferente de 2016, similar a 2015. O clima de incerteza permanecerá e a única coisa certa é que, no Ano Novo, as nuvens negras remanescerão sobre o sistema político, sobre o governo e, por decorrência, sobre a economia do País que não terá o necessário suporte que suplica à política em frangalhos.

O círculo vicioso ou virtuoso – depende a quem envolve – se estabeleceu: a Lava Jato descobre novos elementos de corrupção que regaram o financiamento de campanhas, mormente da chapa vencedora “Dilma & Temer”. Essas descobertas amargam ainda mais o fel da opinião pública que, crítica e revoltada, influencia o trabalho de juízes. Pressionados, magistrados dão vazão à Lava Jato e seus congêneres. Reféns de seus malfeitos e da lógica deste ciclo, os políticos mal disfarçam o desconforto.

Com ar blasé, Michel Temer esforça-se para se desvencilhar de Dilma – parceira só para o que convém –; busca ganhar tempo: retomar a iniciativa, preencher, assim, o espaço da crise ocupando a audiência com necessária e incompreendida agenda reformista. Aspira um pouco de ar e nova dinâmica econômica que empurre o tempo até que o clima arrefeça e novos juízes possam julgar sua causa. Mas, com essas nuvens, não há conciliação: elas pairam sobre o Brasil, estão lá, ao seu redor; trovejam e relampeiam na Lava Jato, no TSE... No horizonte de 2017.

Soneto

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o Mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões

O passado que vem aí

Aquilo de que mais gosto no Natal é dos presépios. O meu pai construía presépios. Começou por construir presépios pequenos, junto à árvore de Natal, semelhantes àqueles que eu via quando visitava os meus amigos. Depressa se entusiasmou, e sendo um homem de grandes arrebatamentos e muita criatividade, os presépios foram prosperando, à medida que eu próprio crescia, de tal forma que a partir de certa altura já não cabiam mais na sala, e o meu pai passou a erguê-los no jardim. Essa segunda geração de presépios tinha personagens em tamanho real, dentro de estábulos quase autênticos. Eram tão realistas e sofisticados que nem eu nem a minha irmã estávamos autorizados a entrar nos estábulos para brincar com o Menino Jesus. Juntava-se gente no passeio, espreitando os presépios por cima do muro. Eu, contudo, sempre preferi os da primeira geração. Nesses, eu acrescentava às figuras tradicionais, em porcelana — pastorinhos, boi, burro, Reis Magos e os seus camelos, Maria, José e Menino Jesus —, os meus índios e caubóis em plástico.


O último dos presépios da primeira geração ruiu numa noite de Natal, teria eu oito ou nove anos, devido, provavelmente, ao peso dos inumeráveis personagens que caminhavam ao longo das verdes colinas de musgo, assentes sobre complexas estruturas em arame e cartão. Havia mesmo um rio, no qual circulavam barcaças e jangadas, com um complicado sistema para elevar e fazer circular a água. Por essa altura, aos apaches, moicanos e caubóis, haviam-se juntado várias bonecas da minha irmã, e até uma manada de elefantes em pau preto. Todos aqueles seres se dirigiam felizes a saudar o Menino Jesus, quando ocorreu o desastre. Fui o único a acordar com o ruído e, portanto, o primeiro a entrar na sala. Consegui salvar o Menino Jesus, que se afogava, sem glória, numa poça de água e lama. Infelizmente, a Virgem Maria perdeu a cabeça. No fim, lá conseguimos recompor o presépio. Contudo, nunca encontramos a cabeça da Virgem, de forma que, nesse ano, tivemos de substituir a mãe de Jesus por um dos pastorinhos, ao qual acrescentamos uma peruca loira, feita de algodão. O pastorinho, assim travestido, assumiu o seu papel e não fez má figura, muito pelo contrário.

Penso naquele presépio como um modelo do mundo em que cresci e no qual acredito — mundo esse que parece, também ele, em vias de desabar. Um mundo de fronteiras difusas, sejam elas raciais, étnicas ou de gênero. Um mundo sincrético, mestiço, integrador. Um mundo que ambiciona (ou ambicionava) ser o Brasil no que o Brasil tem de melhor: a extraordinária capacidade de assimilar e nacionalizar o outro.

Eis senão que o passado se ergueu de entre os escombros, com a soma de tudo aquilo que julgávamos já ter ultrapassado: o ranço do nacionalismo mais primário, o bolor do racismo, da xenofobia, do machismo e da intolerância religiosa. É um movimento que já estava em marcha há vários anos; mas em 2016, com a vitória de Donald Trump, podemos dizer que se afirmou de forma explícita, em toda a sua excêntrica e brutal obscenidade.

Em dezembro, gosto de colecionar as previsões de astrólogos, cientistas, analistas políticos, para o ano seguinte. Doze meses mais tarde confronto essas previsões com o que realmente aconteceu. A conclusão é que quase ninguém acerta. Nem a magia, nem a ciência. O futuro continua inescrutável, o que me parece ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Não sabemos nunca o que está para além da curva do tempo. O futuro pode trazer-nos tudo — inclusive o passado.

A julgar pelo que aconteceu em 2016, devemos estar preparados para todo esse passado terrível que aí vem. Essas são as previsões da maioria dos astrólogos e analistas políticos. Dado o prazer evidente que o futuro tem em contrariar as previsões, pode ser, contudo, que 2017 nos surpreenda pela positiva. Para quem, como eu, não acredita nem em astrólogos, nem em analistas políticos, existe a matemática. A regressão à média é um conceito matemático segundo o qual em qualquer série de eventos aleatórios existe enorme probabilidade de um acontecimento extraordinário ser seguido, por puro acaso, por outro mais trivial. Ou seja, no evento que agora nos interessa, a um ano extraordinariamente mau e agitado é provável que se sigam meses relativamente tranquilos. Vamos ver.

Volto a pensar no dia em que a Virgem perdeu a cabeça. Foi um desastre terrível — no minúsculo universo em que ocorreu, é claro. Mas na manhã seguinte tínhamos um novo presépio, ainda mais bonito do que o anterior. Talvez a moral da história seja esta: por vezes, para que o mundo avance, é preciso que a Virgem perca a cabeça.

José Eduardo Agualusa

Lembrança de Debbie Reynolds

Debbie cantando e dançando "Dream of you" em "Cantando na Chuva" (1952)
 com Gene Kelly e,Donald O'Connor 

O polvo gigantesco da Odebrecht e a falência da política brasileira

No momento em que emerge do oceano da corrupção o polvo gigantesco da Odebrecht com seus tentáculos nacionais e internacionais, verifica-se a não existência de reação praticamente alguma da classe política brasileira. As revelações vêm se sucedendo e diante delas, efetivamente, como reagiu o universo político do país? A resposta que devia ser de indignação e reprovação sintetizou-se numa tentativa de promover a anistia aos envolvidos no sistema de caixa 2. Impossível aceitar tal realidade sem considerá-la um passo enorme de recuo diante da verdade.

A reação da opinião pública através da imprensa impediu a manobra, mas somente a iniciativa dela desqualifica seus autores. Afinal de contas se os que receberam dinheiro da Odebrecht e de outras empreiteiras afirmam ter agido dentro da lei, qual a razão de buscar uma anistia para um fato que não existiu? É porque os autores sabem muito bem que as doações que declararam à Justiça Eleitoral não condizem com o volume dos recursos recebidos. Tanto assim que a Odebrecht dispôs-se a indenizar em 6 bilhões e 900 milhões de reais países como o Brasil , a Suíça e os EUA. Isso de um lado.

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De outro lado, veja-se a vergonhosa situação dos serviços públicos essenciais brasileiros, a partir do exemplo do Rio de Janeiro onde faltou energia elétrica para funcionamento de unidades de terapia intensiva. Doentes esperam longos meses para serem atendidos por uma rede pública que está desaparecendo por falta de atividade. Quando deveria ser exatamente o contrário, porque, sem receber salários, os funcionários públicos e a legião de desempregados perdem a capacidade de pagar mensalidades dos planos de saúde que com sacrifício conseguiram contratar. O reflexo imediato é a maior procura pelo sistema público. Mas o que fazer, se ele praticamente não funciona?
As cenas se repetem todos os dias e a população, perplexa, aguarda resposta. Mas de quem? Do governador Luiz Fernando Pezão é impossível, o que fica demonstrado pela sua própria atuação. A esperança desloca-se para o plano federal que não pode assistir em silêncio a consumação de uma tragédia.

O polvo devorou recursos e a dignidade política nacional. O governo Michel Temer, pelo menos, tem que se sentir na obrigação de agir. Isso porque, agora está em jogo o destino de milhões de seres humanos.

O ano em que o Brasil se apequenou

O Brasil começou o ano de 2016 em uma profunda crise política e econômica e vai sair dele ainda mais frágil. A tão esperada recuperação da economia deve ficar para 2018, e o combate à corrupção parece não ter pressa, enquanto os poderes preferem trabalhar em causa própria.

Os ajustes para recuperar a economia brasileira poderiam ter sido feitos já no início do ano, mas o Congresso estava mais interessado em derrubar a presidente. Os primeiros oito meses foram tomados pelo processo de impeachment, até o afastamento definitivo de Dilma Rousseff, em 31 de agosto.

Duas semanas mais tarde viu-se a queda do articulador do impeachment e ex-presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo Cunha, hoje preso em uma penitenciária do Paraná.

Só então a recuperação econômica voltou à pauta. E o preço pago por essa demora foi o avanço do desemprego e uma projeção pífia de crescimento de 0,8% para 2017 – depois de dois anos consecutivos de retração superior a 3% no PIB.

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Quem apostava que o afastamento de Dilma Rousseff resolveria a crise política e econômica no Brasil pôde rapidamente perceber que o problema é complexo e sistêmico, e que aqueles que assumiram o poder após a má gestão da petista são parte do problema.

Isso ficou evidente na forma como a classe política lidou com o pacote de combate à corrupção, principal bandeira dos protestos que levaram mais de um milhão de pessoas às ruas no início do ano. Em um grande acordo entre os maiores partidos do país, PT, PMDB, PSDB e PP boicotaram sistematicamente o projeto e, na calada da noite, enquanto o Brasil lamentava o desastre com o avião da Chapecoense, desvirtuaram a proposta, deixando claro que sua prioridade são os próprios aliados. Uma atitude que não é exatamente inesperada, visto que pelo menos uma centena de políticos são investigados por corrupção.

O pacote anticorrupção foi também pivô na guerra que se estabeleceu entre os poderes Judiciário e Legislativo. Uma disputa que mais uma vez colocou egos e interesses corporativos acima do espírito republicano. O ano testemunhou juízes deixando o Direito de lado para dar vazão ao ativismo, e a mesa diretora do Senado chegou ao ponto de afrontar uma ordem do Supremo Tribunal Federal.

No fim dessa guerra, concluiu-se que Renan Calheiros é ficha suja demais para assumir a Presidência da República, mas pode permanecer na presidência do Senado. Uma crise moral, portanto.

O combate sério à corrupção político-empresarial ficou a cargo da Operação Lava Jato, que, apesar das críticas e possíveis falhas, foi a única até agora capaz de punir políticos e grandes empresários, devolver dinheiro aos cofres públicos e desmantelar um esquema gigantesco que se estabeleceu há décadas no centro do sistema político.

O sucesso da Lava Jato, aliás, ameaça a lua de mel do atual presidente Michel Temer com o Legislativo, ao deixá-lo dividido entre políticos investigados por corrupção e a opinião pública. Até agora, as vitórias sucessivas no Congresso ante a uma aprovação popular de apenas 10% mostram que lado está mais satisfeito com o presidente.

A relação afinada com o Legislativo possibilitou a Temer, nos poucos meses em que assumiu a Presidência, encaminhar reformas de impacto duradouro, como a reforma da Previdência e a PEC do teto dos gastos, de maneira acelerada e controversa.

Ninguém questiona que o Brasil precisa de uma reforma do sistema previdenciário. O que se questiona é como um presidente – que goza de sua própria aposentadoria desde os 55 anos de idade – imagina que um trabalhador braçal terá saúde ou emprego para contribuir durante 49 anos, se quiser ter aposentadoria integral.

Da mesma forma, ninguém questiona que o Brasil precisa equilibrar as contas e aumentar a eficiência da máquina pública. O que não se compreende é por que, em vez de cortar privilégios e superssalários, taxar grandes fortunas e capital improdutivo, o governo resolve congelar justamente os investimentos em áreas-chave para o desenvolvimento, como saúde e educação.

Os acontecimentos do ano foram acompanhados de perto por uma população extremamente polarizada, com discursos acirrados, amplificados pelas redes sociais. E é natural que, em um país tão desigual, a solução para uma parte da população seja vista como um problema para outra.

Só que enquanto boa parte dos brasileiros investe sua energia em debates inócuos e insultos nas redes sociais, políticos corruptos de todas as vertentes e ideologias se aliam em pactos suprapartidários para salvar a própria pele.

Assim, se 2016 mostrou a agonia de um sistema político à beira do colapso, que 2017 possa indicar o caminho de volta ao diálogo. Porque a democracia é isso mesmo que aí está: um constante debate entre pessoas com ideias diferentes, muitas vezes opostas, mas que trabalham juntas para construir um país.

Imagem do Dia

Forte São João Batista (Portugal) 

Deslizando no sorvete

Charge do dia 29/12/2016     

              I 

Presidente Michel Temer,
Do alto do seu vigor,
Doido para dar arrocho 
No pobre trabalhador,
Foi tomado de repente 
Por uma onda de calor.

             II
Um dia, suando de bica,
Com uma camisa amarela ,
Paquerando uma moça rica,
Que era uma coisa daquela,
Disse: "Eu fico na beira,
Mas não passo na pinguela!".

           III
Com o suvaco suado
Do desodorante novo,
Segurando um microfone,
Andou falando pro povo:
- Em nome da economia,
Comam a casca e guardem o ovo!

           IV
Mas, em face do calor
Dentro do seu palacete,
Pediu à sua secretária 
E ao chefe de gabinete
Que comprassem de um amigo
Muitas bolas de sorvete.

            V
Cem mil bolas de São Paulo,
Cento e cinquenta do Rio!
Esfriem o calor do homem,
Que é velho mas tá no cio,
E o barro com sorvete 
Sai muito mas sai macio!

Próspero ano novo?

É tradição, nesta época do ano, desejarmos uns aos outros que tenhamos um próspero ano novo – é o que eu gostaria de fazer também agora, usando este espaço que ocupo desde fins de 2013. Mas, infelizmente, sob pena de parecer cínico, acredito que não podemos ignorar que o Brasil atravessa um momento crítico, uma situação de grave instabilidade econômica e política, mas, mais que tudo, uma profunda crise moral, sem precedentes na história do país. E o fator que provoca maior desânimo é não vermos, em um futuro próximo, qualquer possibilidade de reversão de expectativas. 2016 entra para os compêndios como o ano que, desrespeitando o calendário, invade 2017 como um caminhão sem freios.

Após dois anos de recessão, o mercado financeiro aposta que o Produto Interno Bruto (PIB) crescerá cerca de 0,5% no ano que vem, um percentual pífio, se considerarmos que a economia encolheu 3,8% em 2015 e 3,5% este ano. O resultado é uma taxa de desemprego em torno de 12% – o que significa mais ou menos 12 milhões de pessoas –, que se amplia para 27,7% se levarmos em conta apenas a faixa etária situada entre 14 e 24 anos. Além disso, segundo levantamento da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os salários do trabalhador brasileiro sofreram a maior desvalorização em termos reais – ou seja, descontada a inflação - entre os países que formam o G-20. A queda deve alcançar 6,2% do valor nominal este ano.

Se a economia vai mal, não está melhor a política. O presidente não eleito, Michel Temer, termina o ano com uma popularidade baixíssima. Pesquisa da Datafolha, realizada ainda antes da divulgação dos depoimentos de executivos da Odebrecht envolvendo Temer em denúncias de corrupção, apontavam que 51% dos ouvidos consideram o governo ruim ou péssimo e 34% apenas regular. Na mesma pesquisa, 41% afirmavam que o desempenho da economia irá piorar e 27% acreditavam que nada vai mudar. Chegou-se até mesmo a cogitar que, sem apoio popular, Temer poderia renunciar para provocar novas eleições – coisa que não aconteceu.


Resta saber como se comportará o presidente não eleito no ano que vem. O cenário que se descortina aponta para três hipóteses: Temer empurrará o seu mandato até o fim, aprofundando as reformas autoritárias que vem conduzindo; ou, em um gesto de grandeza ou desespero, renunciará; ou ainda o Tribunal Superior Eleitoral decidirá pela cassação da chapa Dilma-Temer. Caso Temer venha a renunciar, abrem-se pelo menos duas possibilidades: eleição indireta pelo Congresso ou votação de uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que permita um mandato-tampão de alguma liderança que promova eleições diretas. No caso de cassação da chapa pelo TSE, há um entendimento desse tribunal, baseado na minirreforma eleitoral de setembro de 2015, que poderia haver a convocação de eleições diretas em 20 a 40 dias após o afastamento, até seis meses antes do término do mandato. Essa interpretação, no entanto, teria de ser referendada pelo Supremo Tribunal Federal (STF).

O problema é a crise moral que atinge todos os poderes, indiscriminadamente. No STF, há uma clara divisão entre os ministros, que deixaram de lado a ritualística do cargo e resolveram expor publicamente, e de maneira bastante agressiva, suas diferenças, baseadas em interesses pessoais, muitas vezes escusos. Em acordo de delação premiada, executivos da Odebrecht prometem arrolar dezenas de políticos dos mais diversos partidos, o que atinge o Legislativo – que já tem nove senadores e 45 deputados envolvidos na Operação Lava Jato – e o Executivo, incluindo Temer e alguns de seus ministros, como o da Casa Civil, Eliseu Padilha.

Restaria a nós, que ansiamos por um país melhor, mais justo e mais democrático, torcer para o encaminhamento de uma solução que contentasse a todos, mas principalmente a camada mais pobre da população, que sofre de maneira direta com a incompetência, a roubalheira e os desmandos. Mas mesmo esse desejo desaparece no firmamento. Os nomes que se apresentam no cenário político estão todos, uns mais outros menos, comprometidos com escândalos de corrupção: no ninho tucano, Fernando Henrique Cardoso, José Serra, Geraldo Alckmin e Aécio Neves; Marina Silva, que aparece como candidata preferida em pesquisa Datafolha divulgada no começo de dezembro, comanda um partido, a Rede, que mostrou um desempenho medíocre nas eleições municipais; e o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

A questão é que o PT, outrora guardião da moralidade, chafurda hoje na mesma lama que um dia denunciou e condenou. Vários de seus altos dirigentes encontram-se presos ou envolvidos em processos ligados à Operação Lava Jato, como o próprio Lula. E, para demonstrar de forma cabal que os petistas não são mais os mesmos, basta observar que todos os vereadores do partido, sem exceção, votaram, no último dia de trabalhos da Câmara Municipal de São Paulo, por um aumento de 26% em seus próprios salários, que passaram de R$ 15 mil para quase R$ 19 mil reais por mês...

Déficit militar para a Previdência é 32 vezes maior que aposentado do INSS

Preservados da proposta da reforma da Previdência apresentada pelo Governo Temer, os integrantes das Forças Armadas fazem parte do regime previdenciário mais deficitário em valores per capita. Os militares respondem por quase metade do rombo da Previdência dos servidores públicos da União – que chegou a 72,5 bilhões de reais no ano passado –, embora representem apenas um terço dos servidores.

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Segundo cálculos do ex-secretário da previdência e consultor do Orçamento da Câmara dos Deputados Leonardo Rolim, o regime da previdência dos militares beneficiou 296.000 pessoas – entre reformados, na reserva e pensionistas - no ano passado e apresentou um déficit de 32,5 bilhões de reais. Ou seja, cada um dos beneficiados gerou um rombo anual de 109.000 reais aos cofres públicos. O valor é 32 vezes maior que o déficit gerado por um aposentado no regime geral (Instituto Nacional do Seguro Social -INSS). No ano passado, o rombo gerado no regime geral foi de 89 bilhões de reais em um universo de 26 milhões de beneficiários, o que significa dizer que cada aposentado do INSS gerou um déficit de 3.414 reais. A contribuição dos militares também é abaixo da dos civis: 7,5% do salário bruto contra 11% dos aposentados pelo INSS.

O Governo justificou a decisão de não incluir os militares na reforma da Previdência em função das condições especiais da carreira das Forças Armadas, que incluem desde possíveis riscos de vida ao preparo físico exigido. “Nada justifica deixar os militares de fora da reforma. Ele é o regime mais deficitário em valores proporcionais. Além disso, o contingente de militares no Brasil é exagerado”, explica Rolim.

A exclusão dos militares é também considerada por Sonia Fleury, professora da FGV, como uma das distorções da reforma apresentada. “Ela mostra claramente que os setores que têm mais capacidade de pressão conseguem empurrar para frente essa mudança, enquanto pessoas extremamente vulneráveis passam a ter obrigação de passar mais cinco anos sem receber o benefício”, afirma Fleury.

A PEC proposta pelo Governo fixa uma idade mínima de aposentadoria de 65 anos tanto para homens quanto para mulheres (atualmente mulheres podem se aposentar aos 60 e os homens aos 65). Enquadram-se nessa nova categoria mulheres que tenham até 45 anos e homens com até 50 anos. A regra também prevê que será preciso um mínimo de 25 anos de tempo de contribuição - atualmente o tempo mínimo de contribuição é de 15 anos. O Governo Temer argumenta que, tal como está, a Previdência é insustentável. De acordo com projeções do Ministério da Fazenda, mantidas a legislação em vigor, as despesas do sistema geral, o INSS, passariam de 8% do PIB em 2016 para 17,5% do PIB em 2060. As mudanças na Previdência são precedidas da aprovação do teto de gastos, os pilares do programa do Governo para tentar conter o déficit nas contas públicas sem aumento imediato de impostos ou uma reforma tributária.

Segundo o ministro da Defesa Raul Jungmann, um projeto de lei complementar com mudanças nas regras previdenciárias para os militares já está em discussão e deve ser enviado à Casa Civil entre janeiro e fevereiro de 2017. Ainda de acordo com o ministro, todas as regras poderiam ser negociadas, inclusive um aumento da contribuição e do tempo de serviço.

“Não queremos nenhum privilégio, apenas que se reconheça as especificidades. Tudo está na mesa. Não há nada excluído da agenda”, afirmou Jungmann em coletiva de imprensa em Brasília neste mês. O ministro negou também que a participação dos militares no déficit da Previdência seja de 32,5 bilhões de reais e disse que há uma “confusão contábil” neste cálculo.

Segundo o ministro da Defesa, o INSS arca somente com as pensões pagas a dependentes dos militares. Para o ministro, o déficit real é de 13,85 bilhões de reais. Segundo ele, serão pagos 16,55 bilhões aos pensionistas das três Forças, mas haverá 2,69 bilhões arrecadados com as contribuições da categoria no ano de 2016.Já os salários dos inativos e reservistas, de acordo com Jungmann, são pagos pelo próprio Ministério da Defesa. Isso ocorre porque os militares estão enquadrados em um sistema de proteção social custeado pelo Tesouro Nacional. Dele, saíram os recursos para o pagamento de militares ativos e inativos que, neste ano, somaram 20,23 bilhões de reias e 18,59 bilhões de reais, respectivamente. Os valores já estavam consignados por lei ao orçamento do ministério, segundo o ministro.

quarta-feira, 28 de dezembro de 2016


Sempre atrasado

Só há um dia em que a crônica coincide com o evento. É na Quarta-Feira de Cinzas, aquele tremendo dia que finaliza o carnaval, ressuscitando-lhe a origem religiosa, pois a primeira quarta-feira da quaresma é o dia em que imitávamos os velhos costumes fúnebres judaicos, levando cinzas na testa e rasgando fantasias carnavalescas.

Cinzas, comedimento, disciplina, abandono da carne (carne levare), símbolo de sensualidade pecaminosa e fugaz, demarcavam o ano de um velho antigamente. Só os idosos lembram-se disso. Do carnaval europeu havia só a época ritualizada — entre o advento e a quaresma —, pois, no nosso, o clima era de verão, e essa festa orgiástica tornava-se obrigatória pelo imenso poder da Igreja Católica com suas quase diárias festas religiosas, que fabricavam calendários e o próprio tempo. Esse tempo invisível que só existe quando é aprisionado por festas. Esses traumas de saudade.

Escrevo hoje — num domingo natalino — a crônica a ser desembrulhada na quarta. Ela nasce do meu desejo de que todos tenham passado um Natal feliz. Uma trégua necessária de um ano tão áspero. Um ano quase sem Papai Noel, quanto este 2016.
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Quando foi que eu deixei de acreditar em Papai Noel? Tinha meus 12 anos quando Fernando e Romero, os gêmeos que seguiram ao meu nascimento, antecipando Ricardo, Renato e Ana Maria, descobriram no misterioso e intocável gaurda-roupa do pai pacotes vestidos de papéis natalinos. A roupa que denuncia regalos. Os papéis especiais que fazem os presentes. Pois basta embrulhar para que o mais comum vire o mais precioso ou o mais escuso. O embrulho acusa intensidade, desejo, intenção, solidariedade — amor. Essa palavra reprimida ou excessivamente usada neste nosso mundo pós-moderno.

— Papai Noel não existe! Papai Noel é papai — anunciaram a descoberta transformadora.

Ricardo e Renato, que eram ainda crianças, duvidaram. Nós, maldosamente, insistimos, porque não há nada melhor do que o primeiro momento de uma desmistificação. Até que uma outra apareça.

A escova de cabelo de mamãe virou palmatória e resolveu o assunto. Mas ficou em mim um resto de Papai Noel negado pelo meu lado descrente, o qual afirma ser a negação uma paradoxal e potente crença.
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Meu pai chamava-se Renato e, além de um filho, ele também nomeou meu filho mais novo de Renato. Foi ao cartório sozinho e registrou o seu natalício, passando o próprio nome ao novo netinho.

A mãe estava na maternidade, mas onde estava o pai?

O pai estava tentando entender a organização social dos índios apinayé em pleno sertão goiano, uma tarefa equivalente a encontrar Papai Noel. No dia 27 de fevereiro de 1967, Celeste, supergrávida de Renato, deixou a aldeia com Rodrigo e Maria Celeste, fingindo que as rebarbas dos meus projetos profissionais eram banais. Essa amorosa atitude ajudou-me a pagar o preço por uma antropologia que me levou a muitos lugares maravilhosos, mas impediu que visse o Natal do último ser humano que trouxe a esse fabuloso e complicado mundo.

Renato nasceu no dia 11 de março, mas eu só fiquei sabendo numa carta recebida no dia 29. Só fui ver meu filho quando, atrasado, cheguei ao Rio numa quarta-feira, 12 de abril, depois de mais de 24 horas comendo poeira vermelha dentro de vários ônibus. Atrasado, sempre atrasado nas ideias, no modo de ser, numa autonomia inaceitável neste Brasil onde ter uma turma pode ser tudo ou nada.
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Antes de saber quem realmente era Papai Noel, eu atinava com a ambiguidade de sua figura. Como acreditar em presentes se na nossa rua tinha gente que, como eu, ganhava bicicleta, e outros que nada recebiam?

A resposta não veio de nenhum usual suspeito teórico, mas do coração sofrido do compositor popular Assis Valente que, em 1933, compôs “Boas Festas”, em flagrante contraste com a plenitude alegre de “We wish you a merry Christmas” (que um arranjo de 1935 trocou o we por um individualista I) e o famoso “White Christimas”, de Irving Berlin, escrito em 1942, em plena Segunda Grande Guerra. Música carregada de nostalgia, mas sem o paradoxal realismo poético do nosso “Boas Festas”, que simplesmente pede a Papai Noel uma felicidade que ele não pode dar.

Talvez porque, como se descobre com atraso, ela seja um dos presentes mais desejados de um mundo injusto e difícil: “Eu pensei que todo mundo/ Fosse filho de Papai Noel/ E assim felicidade/ Eu pensei que fosse uma brincadeira de papel/ Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ Ou então felicidade, é brinquedo que não tem...”

Roberto DaMatta

Deu a louca no Tio Sam?

Há uma semana, uma bomba de hidrogênio desabou sobre nossas cabeças, já suficientemente perturbadas por informações desastrosas, como a quebradeira generalizada de empresas brasileiras, os 12 milhões de trabalhadores desempregados e a calamidade financeira decretada por três unidades da Federação. O acordo de leniência da Odebrecht e da Braskem, anunciado pela força-tarefa da Lava Jato em Curitiba e pelo Ministério Público Federal em Brasília na quarta-feira passada, indica o que aconteceu nestes trágicos trópicos durante os últimos 15 anos e ao alcance dos narizes absolutamente insensíveis dos ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff.

A afirmação recebeu o aval internacional do Departamento de Justiça (DoJ) da maior potência nuclear, militar, econômica e política do planeta, após a devassa do pagamento de US$ 1 bilhão (R$ 3,4 bilhões) em propinas pela empreiteira e sua subsidiária petroquímica. No Brasil (com dois ex-ministros de Estado, três parlamentares e dois membros do Poder Executivo hoje, cuja identidade não foi revelada) e em mais 11 países. Além da quantidade do suborno pago por privilégio em contratações e superfaturamento de obras e serviços, a revelação inova no Direito Penal, ao revelar que a vítima, a petroleira estatal, é também autora do furto bilionário, de vez que é sócia da signatária dos acordos na empresa que pagou “o maior suborno da História”.

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É de observar que a investigação empreendida pelos americanos e pela Suíça, parceira na devassa e signatária da leniência, trata apenas da atuação do tal Departamento de Operações Estruturadas, justamente apelidado de Departamento da Propina, da maior empreiteira do Brasil. Como todo brasileiro bem informado soube pelo noticiário cotidiano, suas concorrentes OAS, Andrade Gutierrez, Engevix, Carioca Engenharia e outras são acusadas de participação num “cartel” que esvaziou os cofres públicos do País durante os desgovernos Lula e Dilma, do PT.

Lula apareceu no noticiário na semana passada para comunicar à Nação espoliada que as acusações a que responde à Polícia Federal e na Justiça dão uma ideia do “grau de loucura que (sic) chegou a Lava Jato na sua perseguição contra o ex-presidente”.

Então, deu a louca no Tio Sam, foi? Não faltarão, é claro, sandices do gênero para os advogados do ex incluírem na sua estratégia suicida de defesa a hipótese de que agora ficou provado que os EUA lideram a conspiração para retirá-lo da próxima disputa presidencial hoje ou em 2018, confirmando pesquisa do Datafolha que o considera favorito no primeiro turno da disputa pela Presidência, só perdendo no segundo para Marina Silva, que foi ministra dele.

Isso não resiste à lógica rasteira. O citado responde a três juízes federais – Marcelo Leite e Vallisney de Souza Oliveira, em Brasília, e Sérgio Moro, em Curitiba, na primeira instância – por crimes de corrupção passiva, lavagem de dinheiro, organização criminosa, ocultação de patrimônio e outros, na companhia de parentes: a esposa, dois filhos e o sobrinho da primeira mulher. As denúncias foram feitas pela força-tarefa da Lava Jato, chefiada pelo procurador Deltan Dallagnol, e também pelo Ministério Público Federal em Brasília, sob o comando do procurador-geral da República, Rodrigo Janot, que mandou para Teori Zavascki, relator no Supremo Tribunal Federal (STF), o dito “processo-mãe” do petrolão, que talvez melhor fosse definido como malvada madrasta.

Lula, como Dilma, também reclama das delações premiadas, que, segundo ele, “tiraram da cadeia pessoas que receberam milhões de reais em desvios da Petrobrás”. Entre eles, figuram o ex-diretor de Abastecimento da Petrobrás Paulo Roberto Costa, que chamava de “Paulinho”, e o ex-senador Delcídio do Amaral, ex-líder do governo Dilma no Senado. Sem falar em Marcelo Odebrecht, que ainda está na cadeia.

É fato que a colaboração de apenados pelo Código Penal nas investigações da Polícia Federal e do MPF foi autorizada em lei assinada por Fernando Henrique e seu ministro da Justiça Renan Calheiros, alcunhado de “Justiça” nas planilhas que constam da proposta de delação premiada de 77 executivos e ex-executivos da Odebrecht. A depender da homologação de Zavascki e de novos depoimentos deles, a Nação saberá até que ponto Lula, acusado pela força-tarefa de chefiar o “quadrilhão”, efetivamente se comprometeu pessoal, partidária e familiarmente naquele assalto generalizado.

Até lá, é possível ter uma ideia do alcance internacional dessa prática danosa e também da necessidade de acompanhar os ianques na exemplar transparência que eles demonstraram no cotejo entre o que já sabem e, infelizmente, o brasileiro, que pagou a conta pesada, ignora, mercê disso. Dilma Rousseff e seu ministro da Justiça José Eduardo Martins Cardozo assinaram um documento legal que atualiza a prática da colaboração negociada de réus, antes de ela afirmar que os despreza. Mas cruzar este deserto entre o acesso aos fatos pelos agentes americanos e o sigilo, que mantém a cidadania aqui impedida de enxergar toda a verdade, ainda depende de um aperfeiçoamento legal que possa restituir a isonomia ao conhecimento do delito real. Pois esta ainda está para atravessar o Rio Grande.

Outra revelação relevante dos americanos na devassa da grande corrupção tupiniquim constatou que a cooperação dos investigados não foi feita de boa vontade, mas por interesse em se livrar de parte das penas que teriam de cumprir para merecer a leniência. Conforme os investigadores, a Braskem só aceitou colaborar sem ressalvas após tomar conhecimento de que sua delinquência tinha deixado rastros. Sabemos, assim, que o arrependimento de praxe não revela boa-fé, mas esperteza. Tanto melhor! Convém dormir na mira, como fazem os atiradores de tocaia. Leniência não pode virar indulgência perpétua.