Só há um dia em que a crônica coincide com o evento. É na Quarta-Feira de Cinzas, aquele tremendo dia que finaliza o carnaval, ressuscitando-lhe a origem religiosa, pois a primeira quarta-feira da quaresma é o dia em que imitávamos os velhos costumes fúnebres judaicos, levando cinzas na testa e rasgando fantasias carnavalescas.
Cinzas, comedimento, disciplina, abandono da carne (carne levare), símbolo de sensualidade pecaminosa e fugaz, demarcavam o ano de um velho antigamente. Só os idosos lembram-se disso. Do carnaval europeu havia só a época ritualizada — entre o advento e a quaresma —, pois, no nosso, o clima era de verão, e essa festa orgiástica tornava-se obrigatória pelo imenso poder da Igreja Católica com suas quase diárias festas religiosas, que fabricavam calendários e o próprio tempo. Esse tempo invisível que só existe quando é aprisionado por festas. Esses traumas de saudade.
Escrevo hoje — num domingo natalino — a crônica a ser desembrulhada na quarta. Ela nasce do meu desejo de que todos tenham passado um Natal feliz. Uma trégua necessária de um ano tão áspero. Um ano quase sem Papai Noel, quanto este 2016.
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— Papai Noel não existe! Papai Noel é papai — anunciaram a descoberta transformadora.
Ricardo e Renato, que eram ainda crianças, duvidaram. Nós, maldosamente, insistimos, porque não há nada melhor do que o primeiro momento de uma desmistificação. Até que uma outra apareça.
A escova de cabelo de mamãe virou palmatória e resolveu o assunto. Mas ficou em mim um resto de Papai Noel negado pelo meu lado descrente, o qual afirma ser a negação uma paradoxal e potente crença.
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Meu pai chamava-se Renato e, além de um filho, ele também nomeou meu filho mais novo de Renato. Foi ao cartório sozinho e registrou o seu natalício, passando o próprio nome ao novo netinho.
A mãe estava na maternidade, mas onde estava o pai?
O pai estava tentando entender a organização social dos índios apinayé em pleno sertão goiano, uma tarefa equivalente a encontrar Papai Noel. No dia 27 de fevereiro de 1967, Celeste, supergrávida de Renato, deixou a aldeia com Rodrigo e Maria Celeste, fingindo que as rebarbas dos meus projetos profissionais eram banais. Essa amorosa atitude ajudou-me a pagar o preço por uma antropologia que me levou a muitos lugares maravilhosos, mas impediu que visse o Natal do último ser humano que trouxe a esse fabuloso e complicado mundo.
Renato nasceu no dia 11 de março, mas eu só fiquei sabendo numa carta recebida no dia 29. Só fui ver meu filho quando, atrasado, cheguei ao Rio numa quarta-feira, 12 de abril, depois de mais de 24 horas comendo poeira vermelha dentro de vários ônibus. Atrasado, sempre atrasado nas ideias, no modo de ser, numa autonomia inaceitável neste Brasil onde ter uma turma pode ser tudo ou nada.
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Antes de saber quem realmente era Papai Noel, eu atinava com a ambiguidade de sua figura. Como acreditar em presentes se na nossa rua tinha gente que, como eu, ganhava bicicleta, e outros que nada recebiam?
A resposta não veio de nenhum usual suspeito teórico, mas do coração sofrido do compositor popular Assis Valente que, em 1933, compôs “Boas Festas”, em flagrante contraste com a plenitude alegre de “We wish you a merry Christmas” (que um arranjo de 1935 trocou o we por um individualista I) e o famoso “White Christimas”, de Irving Berlin, escrito em 1942, em plena Segunda Grande Guerra. Música carregada de nostalgia, mas sem o paradoxal realismo poético do nosso “Boas Festas”, que simplesmente pede a Papai Noel uma felicidade que ele não pode dar.
Talvez porque, como se descobre com atraso, ela seja um dos presentes mais desejados de um mundo injusto e difícil: “Eu pensei que todo mundo/ Fosse filho de Papai Noel/ E assim felicidade/ Eu pensei que fosse uma brincadeira de papel/ Já faz tempo que eu pedi/ Mas o meu Papai Noel não vem/ Com certeza já morreu/ Ou então felicidade, é brinquedo que não tem...”
Roberto DaMatta
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