quarta-feira, 23 de abril de 2025

Pensamento do Dia

 


O último texto

Li com emoção estas páginas nascidas do pensamento e do afeto de Angelo Scola, querido irmão no episcopado e pessoa que desempenhou serviços delicados na Igreja, como ter sido reitor da Pontifícia Universidade Lateranense, depois patriarca de Veneza e arcebispo de Milão. Antes de tudo, quero expressar a ele toda a minha gratidão por esta reflexão que une experiência pessoal e sensibilidade cultural como poucas vezes tive a oportunidade de ler. Uma, a experiência, ilumina a outra, a cultura; a segunda dá substância à primeira. Nesse entrelaçamento feliz, a vida e a cultura florescem em beleza.

Não se deixe enganar pela forma breve deste livro: são páginas muito densas, para serem lidas e relidas. Das reflexões de Angelo Scola, colho algumas passagens que ressoam particularmente com aquilo que a minha própria experiência me levou a compreender.

Angelo Scola nos fala da velhice, da sua velhice, que – ele escreve com um toque de desconcertante sinceridade – 'caiu sobre mim com uma aceleração repentina e, em muitos aspectos, inesperada'.

Já na escolha da palavra com que se autoidentifica, 'velho', encontro uma afinidade com o autor. Sim, não devemos ter medo da velhice, não devemos temer abraçar o envelhecer, porque a vida é a vida, e adoçar a realidade significa trair a verdade das coisas. Restituir orgulho a um termo muitas vezes visto como pejorativo é um gesto pelo qual devemos ser gratos ao cardeal Scola. Porque dizer 'velho' não significa 'descartável', como às vezes uma cultura degradada do descarte nos faz pensar. Dizer velho, ao contrário, é dizer experiência, sabedoria, discernimento, ponderação, escuta, lentidão... Valores dos quais precisamos urgentemente!

É verdade, envelhecemos, mas esse não é o problema: o problema é como envelhecemos. Se vivemos essa etapa da vida como uma graça, e não com ressentimento; se acolhemos esse tempo (ainda que longo) em que experimentamos forças reduzidas, o cansaço físico crescente, os reflexos já não iguais aos da juventude, com um senso de gratidão e reconhecimento, então, a velhice também se torna uma etapa da vida, como nos ensinou Romano Guardini, realmente fecunda e capaz de irradiar o bem.

Angelo Scola destaca o valor humano e social dos avós. Já ressaltei várias vezes como o papel dos avós é fundamental para o desenvolvimento equilibrado dos jovens e, em última análise, para uma sociedade mais pacífica. Porque seu exemplo, suas palavras, sua sabedoria podem inspirar nos mais jovens um olhar mais amplo, a memória do passado e o apego a valores duradouros. Em meio à correria das nossas sociedades, muitas vezes voltadas para o efêmero e para o gosto doentio pela aparência, a sabedoria dos avós torna-se um farol que brilha, ilumina a incerteza e dá direção aos netos, que podem tirar da experiência deles um 'algo a mais' para sua vida cotidiana.

As palavras que Angelo Scola dedica ao tema do sofrimento, que muitas vezes se instala com o envelhecer, e consequentemente à morte, são joias preciosas de fé e esperança. Na argumentação deste irmão bispo, ouço ressoar a teologia de Hans Urs von Balthasar e de Joseph Ratzinger, uma teologia 'feita de joelhos', imersa em oração e diálogo com o Senhor. Por isso, disse há pouco que estas são páginas nascidas do 'pensamento e do afeto' do cardeal Scola: não apenas do pensamento, mas também da dimensão afetiva, aquela à qual a fé cristã remete, pois o cristianismo não é tanto uma ação intelectual ou uma escolha moral, mas, sim, o afeto por uma pessoa, aquele Cristo que veio ao nosso encontro e decidiu nos chamar de amigos.

É justamente a conclusão destas páginas de Angelo Scola, que são uma confissão de coração aberto de como ele está se preparando para o encontro final com Jesus, que nos devolve uma certeza consoladora: a morte não é o fim de tudo, mas o começo de algo. É um novo começo, como sabiamente destaca o título, porque a vida eterna – que quem ama já experimenta aqui na terra em meio às ocupações do dia a dia – é o começo de algo que não terá fim. E é exatamente por isso que é um começo 'novo': porque viveremos algo que nunca vivemos plenamente – a eternidade.

Com estas páginas nas mãos, gostaria idealmente de repetir o mesmo gesto que fiz assim que vesti o hábito branco de Papa, na Capela Sistina: abraçar com grande estima e afeto o irmão Angelo, agora ambos mais velhos do que naquele dia de março de 2013. Mas sempre unidos pela gratidão a esse Deus amoroso que nos oferece vida e esperança em qualquer idade da nossa existência.

Cidade do Vaticano, 7 de fevereiro de 2025".

Papa Francisco em prefácio para o livro do cardeal Angelo Sola, arcebispo emérito de Milão, “Na espera de um novo começo. Reflexões sobre a velhice”.

Trump e os perigos para o mundo

Uma das leituras mais impressionantes dos últimos dias foi ado artigo que Martin Wolf publicou no jornal britânico Financial Times, do qualé o principal comentarista econômico. O título causa impacto: “The economic consequences of a mad king ”( o jornal Valor Econômico reproduziu o artigo em português ). O “rei louco” é referência direta ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.

Wolf relembra trechos do artigo que escreveu em junho do ano passado, sobre os então candidatos à Presidência dos Estados Unidos, Joe Biden (que só no mês seguinte desistiria da candidatura em favor de Kamala Harris) e Donald Trump. “Biden pode ser velho. Mas Trump é louco e, infelizmente, não é um louco divertido. É um louco perigoso. Os instintos de Trump são também os de um ditador”, escreveu no ano passado. Agora na Presidência da nação econômica e militarmente mais poderosa do mundo, Trump age como o rei louco do título.


Na opinião de Wolf, “o que está acontecendo hoje nos Esta dos Unido sé dei mportância histórica e também de importância global, porque está em jogo a sobrevivência dos limites ao exercício arbitrário do poder”. Para o comentarista britânico, as guerras comerciais que Trump iniciou (guerras, porque é uma contra cada um dos demais países do mundo) mostram os perigos envolvidos nessa decisão. Em poucos dias, Trump anunciou sobretaxas para as importações originárias de todos os demais países, alguns com alíquota de mais de 30%, voltou atrás e reduziu temporariamente a alíquota para 10%, masa elevo upara a China, que respondeu com igual medida. Até agora, as tarifas praticamente impedem o comércio entre as duas maiores economias do mundo.

O objetivo declarado de T rum pé fazer crescera indústria de seu país, que vem perdendo espaço para a produção de manufaturados de outras partes do mundo. “Ninguém em sã consciência pode acreditar que isso levará à industrialização dos Estados Unidos”, advertiu Martin Wolf. “Na verdade, o resultado será uma paralisação dos negócios, o aumento dos preços e a desaceleração da economia.”

É claro, como bem observou Celso Ming em sua coluna Ora, o declínio da globalização... ( Estadão, 18/04, B2), que são apressadas as interpretações segundo as quais a globalização “está em inexorável retração”. Não está. Mas também é claro, como mostraram relatórios recentes da Conferência das Nações Unidas para Comércio e Desenvolvimento (Unctad) e da Organização Mundial do Comércio (OMC), que a guerra de tarifas deflagrada por Trump afeta as trocas comerciais.

Trump abriu muitas outras guerras. Em nome de “fazer a América grande novamente”, ele quer destruir todas as organizações multilaterais criadas no fim da Segunda Guerra Mundial e que, nas últimas oito décadas, vêm assegurando a relativa paz no planeta, a expansão do comércio mundial, a redução da pobreza e o crescimento. Todas, segundo ele, estão a serviço de inimigos dos Estados Unidos. E Trump está enfraquecendo os acordos militares que Washington conclui nos últimos anos, especialmente na Europa.

Com a colaboração essencial do bilionário Elon Musk, Trump vem desativando algumas das principais organizações norte-americanas com atuação mundial. São elas que, desde o fim da Segunda Guerra, asseguram a presença dos Estados Unidos em grande número de países, com ações de ajuda econômica e social, apoio ao desenvolvimento de países pobres e outras iniciativas. O poder político norte-americano dependeu em boa parte dessas ações.

Nas ú l t i mas s e manas, Trump concentrou sua fúria demolidora contra universidades norte-americanas, exigindo delas ações que agradem à Casa Branca em questões como o tratamento de questões ligadas a escolhas sexuais e as ações militares de Israel na Faixa de Gaza. A Casa Branca vem tentando impor às universidades exigências que implicam danos à liberdade acadêmica e à independência indispensável para a pesquisa e a produção do conhecimento. A resistência da Universidade Harvard a suas imposições talvez o tenha surpreendido. E pode levar outras universidades a rejeitar as intromissões do governo em sua liberdade acadêmica.

Nos últimos dias, Trump decidiu atacar o Federal Reserve Board (Fed), o banco central americano, e vem procurando meios para destituir seu presidente, que tem mandato fixado por lei. Não se trata de criticar decisões da autoridade monetária do país, mas de intervir com mão forte em sua direção.

“Déspotas imprevisíveis geram desperdício, medo e incerteza generalizada”, observou Martin Wolf. “As guerras comerciais voláteis de Trump e a demolição do sistema comercial global estão mostrando isso em tempo real.”

O poder absoluto não pode ser confiado a ninguém, menos ainda a demagogos, diz o articulista do Financial Times. “As pessoas que apoiaram Trump deveriam saber que, totalmente liberado, ele inevitavelmente semearia o caos.” E suas políticas prenunciam esse caos.

Como discordar?

A vontade dos homens e a vontade das leis

Num tempo distante em que políticos de Minas eram admirados pela virtude e a sabedoria, o governador Milton Campos, pressionado por seu partido para instrumentalizar o governo em seu benefício político, resistiu dizendo que ao governo dos homens preferia sempre o governo das leis. Na linguagem da política moderna estava dizendo que a força das instituições deveria prevalecer sobre a vontade dos homens.

A democracia e a economia de livre mercado combinadas produziram o período de maior progresso e maior liberdade em toda a história da humanidade. Não foi um tempo em que grandes homens faziam a história apenas com a sua vontade. Foi um tempo em que instituições políticas e econômicas impessoais asseguraram um ambiente de segurança jurídica e previsibilidade econômica, no qual empresas e pessoas puderam prosperar e cooperar.

Um dos grandes pensadores de nosso tempo, o filósofo austríaco Karl Popper, afirmava que a democracia não tinha o poder de garantir que só os melhores e os mais capazes seriam escolhidos para governar, mas para sobreviver a democracia teria que ter os meios e os instrumentos para impedir que maus governantes pudessem fazer ao país males irremediáveis. Nos Estados Unidos e na Europa esta regra prevaleceu por muito tempo. Aqui na América Latina e também na Ásia as instituições não se desenvolveram com a mesma potência e a maldição dos salvadores da pátria e dos “pais dos pobres” com frequência arruinaram a economia, mataram a liberdade e chegaram a alimentar uma cultura populista que envenenou para sempre alguns países. Isto talvez explique um pouco porque nossos países ficaram para trás.


Por razões que variam de país a país, o prestígio da democracia liberal em todo o mundo está em recessão. Numa volta a um passado que julgávamos sepultado estamos assistindo ao crescimento das democracias iliberais, não fossem os dois termos tão contraditórios entre si. Estas chamadas democracias tem eleições regulares, mas não há separação dos poderes, nem garantia dos direitos individuais e a lei que prevalece é a vontade do governo. Podem muito bem ser chamadas de ditaduras disfarçadas.

O avanço desses arranjos iliberais parece irrefreável. O caso da vez é nada menos que os Estados Unidos, o grande modelo de democracia resistente ao tempo, na verdade a mais antiga das modernas democracias, que parecia a todos constituída para durar sempre. De repente, sem nenhuma pactuação institucional com o Parlamento ou a Justiça, o Presidente converteu-se por iniciativa própria em um verdadeiro monarca absoluto. Governa por ordens executivas, sem consulta ao Congresso ou submissão ao Judiciário, sem nenhuma oposição dos demais Poderes e com a aparente concordância de parcela importante da população. Na contramão da advertência de Popper, está tomando decisões que afetarão irremediavelmente o destino futuro do seu país. As instituições cederam à vontade dos homens e a democracia americana está sendo derrubada sem resistência, tal como foi um dia derrubado o Muro de Berlim, numa suprema ironia da história.

Entre nós no Brasil as instituições e as leis nunca tiveram o prestígio que necessitam para serem efetivas. Sofremos da tentação irresistível dos personalismos. Nunca tivemos partidos de verdade, sempre tivemos personalidades. Ainda agora nossa vida política se resume ao confronto entre dois homens praticamente sem ideias, a cujos caprichos todos se curvam. Em um campo está nosso Presidente, exercendo seu terceiro mandato e aspirando a um quarto, apesar da idade e do vazio de seu governo, que anunciou candidamente na última terça feira que o ano de 2027 será o de um desastre fiscal.

No outro campo, Bolsonaro, embora inelegível, mantem paralisados todas as demais possibilidades eleitorais, pela submissão dos possíveis candidatos a uma liderança sem ideias ou projetos de mudanças.

Em todos os campos de atividade nosso país tem homens e mulheres de alto nível, capazes de competir em qualquer lugar do mundo. Por que só na política falta talento, virtude e mentes criativas?

O desafio aponta o caminho

Foi o tema da semana nas manchetes, posts e editoriais: a trágica morte de uma menina de 8 anos no DF, por um desafio de internet. Ela aspirou o aerossol de um desodorante. Há um mês, em Pernambuco, outra menina de 11 anos já tinha perdido a vida da mesma forma.

Segundo o Instituto DimiCuida, ao menos 56 crianças e adolescentes morreram ou se feriram nos últimos dez anos por causa de jogos e desafios como sufocamento, asfixia, ingestão de detergente, atear fogo ao corpo, automutilação e outros.

Crianças e adolescentes não têm discernimento suficiente para entender os riscos desses procedimentos. Mas o ódio nas redes é tanto que o comentário mais comum é “seleção natural”. Culpam também os que mais sofrem pela tragédia: pais e avós. Existe, sim, negligência, mas muitas famílias desconhecem os riscos, acham que Tiktok pode ser brinquedo de criança. Por isso é tão importante disseminar o conhecimento sobre os perigos do ambiente digital.


Albert Einstein disse: “A ciência nos deu meios terríveis de destruir uns aos outros, mas não a sabedoria e a ética para impedir que os utilizássemos”. A humanidade enfrenta esse paradoxo em cada salto tecnológico — e a internet talvez seja o maior deles.

Ela se tornou em grande parte um território perigoso. Máquinas viciantes que priorizam lucros sobre direitos e bem-estar, as redes sociais minam o tecido democrático, disseminam conteúdos tóxicos, fake news, ódio e todo tipo de crimes. A mesma tecnologia que permite a uma criança acessar o conhecimento humano também pode levá-la ao sofrimento ou ao perigo extremo.

O problema é coletivo, e as soluções também serão. Já é quase consenso no Brasil que o excesso de vida digital está fazendo mal a todos nós. A reação já começou e está se acelerando nos últimos meses. O banimento do celular nas escolas foi um grande passo.

Educação midiática é fundamental. As famílias precisam saber da importância de postergar a entrega do celular e a entrada nas redes sociais, ao menos até o fim do ensino fundamental. Precisam supervisionar, garantir o respeito ao estudo, sono, leitura, esporte e convívio com pares. Educadores e familiares precisam ajudar os jovens a entender os riscos do algoritmo, a respeitar o próximo, a desenvolver pensamento crítico sobre o conteúdo tóxico.

Para isso temos o Guia sobre Uso de Dispositivos Digitais, recém lançado pelo governo federal, e iniciativas do MEC para capacitar professores e inserir a educação midiática no currículo.

Precisamos também de cidades amigáveis, que estimulem todas as famílias a levar os filhos para a praças e parques, para a cultura, o esporte e o livre brincar.

É urgente a regulamentação do ambiente digital. Não podemos mais aceitar que plataformas lucrem com a disseminação de crimes e conteúdos perigosos. Como escreve Maria Mello, do Instituto Alana, “precisamos de modelos que respeitem os direitos humanos, que priorizem a vida... e que se comprometam, de forma concreta, com a construção de uma internet justa, segura e democrática.”

Só podemos alcançar isso pela lei. O PL 2628 visa proteger crianças e adolescentes no ambiente digital, responsabilizando plataformas pelo dever de cuidado, por retirar conteúdos nocivos, exigir verificação etária e dar limites a publicidade infantil. Para aprová-lo, será preciso superar o discurso mentiroso de “censura e ameaça a liberdade de expressão” da extrema direita.

O Ministério da Justiça trabalha para adaptar a classificação indicativa ao mundo digital, e anunciou a criação de um aplicativo para impedir acesso a plataformas que produzem conteúdo impróprio.

São nossas escolhas que vão determinar o impacto da tecnologia digital. Cabe a nós enfrentarmos os interesses poderosos e lutar pela vida de nossos filhos. Podemos ser um exemplo para o mundo.

Harvard resistirá

Nasci numa família amazonense que “se mudou” para Niterói. Cresci ouvindo exclusivamente português. Na varanda da casa do Ingá, em Niterói, meus tios discutiam política debaixo de um cauteloso silêncio de vovô, que foi desembargador, e de meu pai. Eram funcionários públicos e getulistas. Meus pais choraram muito quando Vargas cometeu seu suicídio de honra.

O mundo era grande. Na nossa casa de classe média não havia livros; havia, contudo, a música do piano da mamãe. Um cunhado do meu querido tio Mário visitou os Estados Unidos e, nessa varanda, deu uma entrevista confirmando muitas coisas que víamos no cinema.

Fui o primeiro de três gerações a viajar para o exterior, graças a minha entrada no universo democrático das pesquisas em antropologia do Museu Nacional. Lá encontrei a acolhida, a energia e o profissionalismo de Roberto Cardoso de Oliveira, que me ensinou a escrever e perseverar, como fazem os mestres verdadeiros. Seu objetivo não era nos tornar militantes, mas conhecedores das origens e correntes da pesquisa antropológica.


Harvard entrou na minha vida quando um de seus docentes, David Maybury-Lewis, se associou a meu mentor numa pesquisa cujo objetivo era estudar comparativamente sociedades tribais de língua jê, duas das quais haviam sido descritas pelo pesquisador alemão Curt Nimuendajú. Maybury-Lewis foi o primeiro e estudar a organização social dos xavantes e havia escrito um importante artigo teórico sobre os apinajés, que eu havia visitado em 1962.

Esse é o encadeamento que explica como um caipira niteroiense — cuja imensa curiosidade só era emparelhada a sua ignorância — foi parar em Harvard em 1963-64 e em 1967-72, quando finalizou seu doutorado. Ali viveu uma visão cosmopolita da antropologia por meio de professores e colegas que estudavam sociedades tribais em todo o planeta. Ali também entendeu que, em Harvard, era normal ler dois ou três livros por semana para discuti-los em seminários a que ninguém chegava atrasado.

Uma lembrança marcante de Harvard é meu nome. Ninguém me chamava de Roberto. Virei “Mr. DaMatta”. Como sou mais do mato do que da morte, adotei feliz o DaMatta.

Percebi o imenso prestígio de Harvard no contexto do competitivo sistema universitário e intelectual americano quando um colega me informou que um ph.D. harvardiano garantia um emprego. De fato, recebi e recusei uma oferta. Devia minha carreira ao Museu Nacional e ao Conselho Nacional de Pesquisas. No museu, permaneci de 1959 a 1986. Nos infames Anos de Chumbo, sofri preconceito político, mas institucionalizei o Programa de Antropologia Social que lá existe, transformando colegas bolsistas da Fundação Ford em professores da UFRJ. Contra o chumbo, usei o “Veritas” (lema de Harvard) que, bem sei, está nua no fundo de um poço.

Em abril de 1964, um amigo ligou informando que fazíamos nossa revolução cubana. Minutos depois, ouvi que era um golpe militar. Como, se os militares não figuravam na minha politizada lista de atores políticos — exceto no realismo do meu reacionário pai? Apresentei as teorias de um fundador da antropologia. A professora Cora Du Bois, ex-aluna de Franz Boas, comentou:

— Mr. DaMatta, sua exposição foi ótima. Mas o que você acha das ideias desse autor, você concorda com elas?

Não sabia o que dizer.

Na primeira vez que entrei na Biblioteca Widener, na época a maior do mundo, fui avisado:

— Roberto, tenha cuidado com o labirinto de estantes. Um aluno lá se perdeu e foi achado semanas depois, faminto como um náufrago.

Nevava muito, e perguntei se teríamos aula.

— Harvard não para desde 1636!

E não vai parar diante de um presidente mal-educado. Hoje, eu, niteroiense, correria o risco de não entrar em Harvard. Meu conforto é que Donald Trump lá jamais seria aceito.