segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025

Pensamento do Dia


 

O sentimento que não prescreve

Há sinais de reação popular à tentativa de supostos novos donos do poder de pautar anistia aos golpistas do 8 de Janeiro. Anistia, do latim "amnestia", mesma etimologia de amnésia, implica perdão e esquecimento. A capricho dos algoritmos, o digitalismo esquece, mas a vida histórica pode não ser tão leviana. Indicação é como o ex-presidente foi recebido no estádio Mané Garrincha em Brasília. Bateu em retirada às pressas sob os gritos da multidão de "uh, vai ser preso!".

"Ainda estamos aqui", uma apropriação do filme aclamado, virou lema de recordação proativa dos traumas cívicos infligidos à sociedade. Não apenas lembrar, também manifestar um espírito ainda vivo e resistente, como um invisível do sentimento de existência, que é o modo geral de apreensão da experiência de vida.


Pesquisadores da forma veem na palavra sentimento não algo redutível à emoção nem à representação coletiva, mas um modo de sensibilidade que induz a um conhecimento afetivo de questões globais. Um modo que se reconhece pela diferenciação entre campos distintos da experiência social. Assim, o sentimento dominante no período do regime militar era de que se viviam "anos de chumbo".

Hoje, o que se expressa na memória coletiva funda-se nas evidências tenebrosas de relatos de vítimas, Comissão da Verdade, livros e filmes. Mesmo que as novas gerações não tenham vivenciado o terror, transparece nessas evidências o sentimento de como uma ditadura atinge a dignidade das instituições e o caráter das pessoas.

Inclusive depois do fato. É notório o episódio do deputado que dedicou seu voto na Câmara ao único torturador condenado pela Justiça. Baixíssimo clero, certo, mas prova da persistência do espectro de inferioridade humana legado pela ditadura. A continuidade de uma influência dessas na vida brasileira é um enigma moral.

Sentimento de existência é aquilo que permite vivenciar o interior das coisas, um espaço aberto de compreensão da história. Isso que a poesia filosófica chama de "um puro espaço diante de nós" (Rilke, "Oitava Elegia do Duíno"): além do geométrico, um espaço existencial, de recíproca transitividade entre o subjetivo e o objetivo. É outra forma de relação com o mundo, em que afeto se sobrepõe aos fatos da história. Às vezes, para o mal: o sentimento que fazia tremular a bandeira nazista ao lado da brasileira na sede do governo de Santa Catarina em 1934, ou que ali formou o maior partido nazista fora da Alemanha, foi, coisa triste, mais persistente do que efeitos de mudanças institucionais.

Nesse quadro perceptivo vem de novo a público a palavra anistia. Em 1979, varreu para baixo do tapete as atrocidades da ditadura, reforçada pelo crime de impedimento à verdade. Agora, seus descendentes tentam camuflar o que a nação inteira testemunhou pela TV, destruição e golpe escancarados. Nunca delinquentes produziram tantas provas contra si próprios, talvez embalados pela torta convicção de que amnésia seja sequência natural de crime, e punição um "constrangimento". Até o presidente do Senado objeta: "não é assunto para brasileiros". É que, no espaço aberto pelo sentimento de existência, o espírito nacional adverte que povo e memória ainda estão aqui.

Colonialismo mercantilista e ideologia iliberal guiam movimentos de Trump

Os movimentos de Donald Trump não podem ser entendidos da óptica convencional da geopolítica. As motivações comuns são o colonialismo mercantilista, a ideologia iliberal e nativista.

Trump tentou impor a Volodmir Zelenski pagamento de US$ 500 bilhões e 50% de todas as receitas provenientes de minerais raros, gás, petróleo, portos e o resto da infraestrutura da Ucrânia.

No Tratado de Versalhes, em 1919, os aliados impuseram à Alemanha reparação de guerra equivalente a 200% do PIB alemão. Os US$ 500 bilhões representam 264% do PIB ucraniano. A Alemanha foi a agressora na 1.ª Guerra. A Ucrânia é vítima da agressão russa.

A ajuda americana à Ucrânia somou US$ 175 bilhões, dos quais US$ 75 bilhões, destinados à compra de armas americanas. Como fica claro no confisco de 50% por tempo ilimitado, não é reembolso, mas exploração colonial de um país fragilizado.

Ao dividira Ucrânia entre EUA e Rússia, Trump repete o pacto secreto de 1939 entre Adolf Hitler e Josef Stalin, que dividiu a Polônia. Dois anos depois, Hitler ocupou o restante da Polônia e invadiu a URSS. Trump assume postura colonialista também ante o Canadá, Groenlândia, Panamá e Gaza.

As sanções de Trump remetem à era mercantilista, quando exportar era proveitoso e importar, danoso. Isso é incompatível coma economia globalizada. Os produtos industriais dos EUA e dos outros países se aproveitam das importações de partes e componentes da cadeia de valor.

Depois de eliminar taxa de US$ 9 sobre veículos na região central de Nova York, Trump publicou em sua rede Truth Social: “Longa vida ao rei”. A Casa Branca reproduziu a postagem no Twitter e Instagram, com imagem do presidente usando coroa de rei. Ele cultiva uma autoimagem imperial.

A identificação de Trump com líderes autoritários também explica seus movimentos. Ele tem elogiado Xi Jinping e Vladimir Putin, buscando se aproximar de ambos, como fez em seu primeiro governo.

O vice, J.D. Vance, discursou em Munique que a ameaça não são a China e a Rússia, mas o liberalismo europeu. Trump se recusa a defendera Europa, mas promete manter 10 mil soldados americanos na Polônia, cujo presidente, Andrzej Duda, é um nacionalista conservador.

Depois da 2.ª Guerra, os EUA firmaram alianças com Europa, Japão e Coreia do Sul para não ter de enfrentar os inimigos em território americano.

Ao abandonar aliados e se unira adversários, Trump anula a confiabilidade dos EUA, trai seus interesses e a causa da liberdade.

Como volta de Trump pode levar democracia dos EUA ao colapso

A primeira eleição de Donald Trump à Presidência em 2016 desencadeou uma defesa enérgica da democracia por parte do establishment americano, mas seu retorno ao cargo foi recebido com uma indiferença marcante.

Muitos políticos, comentaristas, figuras da mídia e líderes empresariais que viam Trump como uma ameaça agora tratam essas preocupações como exageradas —afinal, a democracia sobreviveu ao seu primeiro mandato. Em 2025, preocupar-se com o destino da democracia americana tornou-se quase banal.

O momento dessa mudança de humor não poderia ser pior, pois a democracia está em maior perigo hoje do que em qualquer outro momento da história moderna dos EUA. A América tem regredido por uma década: entre 2014 e 2021, o índice anual de liberdade global da Freedom House, que avalia todos os países em uma escala de 0 a 100, rebaixou os Estados Unidos de 92 (empatado com a França) para 83 (abaixo da Argentina e empatado com o Panamá e a Romênia), onde permanece.

Os aclamados controles constitucionais do país estão falhando. Trump violou a regra cardinal da democracia quando tentou reverter os resultados de uma eleição e bloquear uma transferência pacífica de poder.

No entanto, nem o Congresso nem o Judiciário o responsabilizaram, e o Partido Republicano, tentativa de golpe à parte, escolheu-o novamente para disputar a eleição.


Trump conduziu uma campanha abertamente autoritária em 2024, prometendo processar seus rivais, punir a mídia crítica e mobilizar o Exército para reprimir protestos. Ele venceu, e graças a uma decisão extraordinária da Suprema Corte, desfrutará de ampla imunidade presidencial em seu segundo mandato.

A democracia sobreviveu ao primeiro mandato de Trump porque ele não tinha experiência, plano ou equipe. Ele não controlava o Partido Republicano quando assumiu o cargo em 2017, e a maioria dos líderes partidários ainda estava comprometida com as regras democráticas do jogo.

Trump governou com republicanos do establishment e tecnocratas, e eles em grande parte o contiveram. Nada disso é mais verdade. Desta vez, Trump deixou claro que pretende governar com "pessoas leais". Ele agora domina o Partido Republicano, que, purgado de suas forças anti-Trump, consente com seu comportamento autoritário.

A democracia dos EUA provavelmente entrará em colapso durante o segundo governo Trump, no sentido de que deixará de atender aos critérios padrões para uma democracia liberal: sufrágio adulto pleno, eleições livres e justas e ampla proteção das liberdades civis.

O colapso da democracia nos Estados Unidos não dará origem a uma ditadura clássica em que as eleições são uma farsa e a oposição é presa, exilada ou morta. Mesmo no pior cenário, Trump não será capaz de reescrever a Constituição ou derrubar a ordem constitucional.

Ele será contido por juízes independentes, pelo federalismo, pelas Forças Armadas e por altas barreiras à reforma constitucional. Haverá eleições em 2028, e os republicanos poderão perdê-las.

O autoritarismo não requer a destruição da ordem constitucional. O que está por vir não é fascismo ou ditadura de partido único, mas autoritarismo competitivo —um sistema em que os partidos competem nas eleições, mas o abuso de poder do incumbente inclina o campo de jogo contra a oposição.

A maioria das autocracias que surgiram desde o fim da Guerra Fria se enquadra nessa categoria, incluindo o Peru de Alberto Fujimori, a Venezuela de Hugo Chávez e os contemporâneos El Salvador, Hungria, Índia, Tunísia e Turquia. Sob o autoritarismo competitivo, a arquitetura formal da democracia, incluindo eleições multipartidárias, permanece intacta.

As forças de oposição são legais e atuam abertamente, disputam seriamente o poder. As eleições são muitas vezes batalhas ferozmente. E, de vez em quando, os incumbentes perdem, como aconteceu na Malásia em 2018 e na Polônia em 2023.

No entanto, o sistema não é democrático, porque os governantes manipulam o jogo ao usar a máquina do Estado para atacar os oponentes e cooptar críticos. A competição é real, mas injusta.

O autoritarismo competitivo transformará a vida política nos Estados Unidos. Como a enxurrada inicial de ordens executivas de constitucionalidade duvidosa de Trump deixou claro, o custo da oposição pública aumentará consideravelmente: doadores do Partido Democrata podem ser alvos do IRS (Receita Federal dos Estados Unidos), empresas que financiam grupos de direitos civis podem sofrer maior escrutínio fiscal e legal ou ver seus empreendimentos impedidos por reguladores. Veículos de mídia crítica provavelmente enfrentarão processos por difamação ou outras ações legais, bem como políticas retaliatórias contra suas empresas-mãe.

Os americanos ainda poderão se opor ao governo, mas a oposição será mais difícil e arriscada, levando muitos cidadãos a decidirem que a luta não vale a pena. Abandonar a resistência, no entanto, poderia abrir caminho para o enraizamento autoritário, com graves e duradouras consequências para a democracia global.

O Estado como arma

O segundo governo Trump pode violar liberdades civis básicas de maneiras que subvertam inequivocamente a democracia. O presidente, por exemplo, poderia ordenar que o Exército atirasse em manifestantes, como ele supostamente quis fazer durante seu primeiro mandato.

Ele também poderia cumprir sua promessa de campanha de lançar a "maior operação de deportação da história americana", lançando milhões de pessoas em um processo repleto de abusos que inevitavelmente levaria à detenção equivocada de cidadãos americanos.

Todavia, grande parte do autoritarismo que está por vir assumirá uma forma menos visível: a politização e a instrumentalização da burocracia governamental. Estados modernos são entidades poderosas. O governo federal dos EUA emprega mais de 2 milhões de pessoas e tem um orçamento anual de quase US$ 7 trilhões.

Funcionários do governo servem como árbitros importantes da vida política, econômica e social. Eles ajudam a determinar quem é processado por crimes, quando e como regras e regulamentos são aplicados, quais organizações recebem status de isenção fiscal, quais agências privadas obtêm contratos para credenciar universidades e quais empresas obtêm concessões, contratos, subsídios, isenções tarifárias e resgates.

Mesmo em países como os Estados Unidos, com governos relativamente pequenos e livre mercado, essa autoridade cria incontáveis oportunidades para líderes recompensarem aliados e punirem oponentes.

Nenhuma democracia está totalmente livre de tal politização. Todavia, quando os governos transformam o Estado em arma contra seus adversários, usando seu poder para sistematicamente enfraquecer a oposição, eles minam a ordem liberal. A política torna-se uma partida de futebol em que os árbitros e os zeladores do campo trabalham para um time para sabotar seu rival.

É por isso que todas as democracias estabelecidas têm conjuntos elaborados de leis, regras e normas para prevenir a instrumentalização do Estado. Isso inclui judiciários independentes, bancos centrais e autoridades eleitorais e serviços públicos com proteções de emprego. Nos Estados Unidos, o Ato Pendleton de 1883 criou um serviço público profissionalizado em que a contratação é baseada no mérito.

Funcionários federais são proibidos de participar de campanhas eleitorais e não podem ser demitidos ou rebaixados por razões políticas. A grande maioria dos mais de 2 milhões de funcionários federais há muito tempo desfruta de proteção do serviço público. No início do segundo mandato de Trump, apenas cerca de 4.000 deles eram nomeados políticos.

Os Estados Unidos também desenvolveram um extenso conjunto de regras e normas para prevenir a politização de instituições estatais. Isso inclui a confirmação pelo Senado de nomeados presidenciais, mandato vitalício para juízes da Suprema Corte, segurança de mandato para o presidente do Federal Reserve (o Banco Central do país), mandatos de dez anos para diretores do FBI e de cinco anos para diretores do IRS.

As Forças Armadas são protegidas da politização por aquilo que o estudioso jurídico Zachary Price descreve como "uma sobreposição incomumente espessa de estatutos" que governam a nomeação, promoção e remoção de oficiais militares. Embora o Departamento de Justiça, o FBI e o IRS tenham permanecido um tanto politizados até a década de 1970, uma série de reformas pós-Watergate efetivamente encerrou a instrumentalização partidária dessas instituições.

Servidores públicos profissionais muitas vezes desempenham um papel crítico em resistir aos esforços do governo para instrumentalizar agências estatais. Eles têm servido como a linha de frente de defesa da democracia nos últimos anos em países como Brasil, Índia, Israel, México e Polônia, bem como nos Estados Unidos durante o primeiro governo Trump.

Por essa razão, um dos primeiros movimentos realizados por autocratas eleitos —como Nayib Bukele em El Salvador, Chávez na Venezuela, Viktor Orbán na Hungria, Narendra Modi na Índia e Recep Tayyip Erdogan na Turquia— tem sido purgar servidores de agências públicas responsáveis por coisas como investigar e processar irregularidades, regular a mídia e a economia e supervisionar eleições. Eles são substituídos por parceiros leais ao mandatário.

Depois que Orbán se tornou primeiro-ministro em 2010, seu governo retirou dos funcionários públicos proteções essenciais, demitiu milhares e os substituiu por membros leais do partido governante Fidesz. Da mesma forma, o partido Lei e Justiça da Polônia enfraqueceu as leis ao eliminar o processo de contratação competitiva e preencher a burocracia, o Judiciário e as Forças Armadas com aliados partidários.

Trump e seus aliados têm planos semelhantes. Por exemplo, americano reviveu seu esforço do primeiro mandato para enfraquecer o serviço público ao reinstaurar o Schedule F, uma ordem executiva que permite ao presidente retirar de dezenas de milhares de funcionários do governo proteções legais em cargos considerados "de caráter confidencial, determinante de políticas, formulador de políticas ou defensor de políticas."

Caso implementado, o decreto possibilitará que esses servidores públicos sejam facilmente trocados por nomes políticos. O número de nomeações partidárias, já mais alto no governo dos EUA do que na maioria das democracias estabelecidas, poderia aumentar mais de dez vezes.

A Heritage Foundation e outros grupos de direita gastaram milhões de dólares recrutando e avaliando um exército de até 54 mil pessoas leais a Trump para ocupar cargos no governo. Essas mudanças poderiam ter um efeito mais amplo de intimidação, desencorajando críticas ao presidente.

Finalmente, a declaração de Trump de que demitiria o diretor do FBI, Christopher Wray, e o diretor do IRS, Danny Werfel, antes do fim de seus mandatos levou ambos a renunciar, abrindo caminho para trumpistas com pouca experiência assumirem o comando.

Trocas assim no Departamento de Justiça, no FBI e no IRS podem levar o governo a usar essas agências para três fins antidemocráticos: investigar e processar rivais, cooptar a sociedade civil e livrar aliados de processos.

Choque e lei

O meio mais visível de transformar o Estado em arma é através de processos direcionados. Praticamente todos os governos autocráticos eleitos utilizam ministérios da Justiça, escritórios de promotores públicos e agências fiscais e de inteligência para investigar e processar políticos rivais, empresas de mídia, editores, jornalistas, líderes empresariais, universidades e outros críticos.

Em ditaduras tradicionais, críticos são frequentemente acusados de crimes como sedição, traição ou conspiração para insurreição, mas autocratas contemporâneos tendem a processá-los por ofensas mais mundanas, como corrupção, evasão fiscal, difamação e até mesmo violações menores de regras obscuras.

Se os investigadores procurarem o suficiente, geralmente podem encontrar infrações pequenas, como renda não declarada ou descumprimento de regulamentos raramente aplicados.

Trump declarou repetidamente sua intenção de processar seus rivais, incluindo a ex-representante republicana Liz Cheney e outros legisladores que serviram no comitê da Câmara que investigou o ataque de 6 de janeiro de 2021 ao Capitólio dos EUA. Em dezembro de 2024, republicanos da Câmara pediram uma investigação do FBI sobre Cheney.

Os esforços da primeira administração Trump para usar o Departamento de Justiça como arma foram em grande parte frustrados internamente, então desta vez ele buscou nomear pessoas que compartilhassem seu objetivo de perseguir adversários.

Sua indicada para procuradora-geral, Pam Bondi, declarou que os promotores que investigaram Trump serão processados, e sua escolha para diretor do FBI, Kash Patel, repetidamente pediu que rivais fossem investigados. Em 2023, Patel até publicou um livro com uma lista de funcionários públicos "inimigos" a serem alvos.

Como a administração Trump não controlará os tribunais, a maioria dos alvos de processos seletivos não acabará na prisão, mas o governo não precisa prender seus críticos para causar danos a eles.

Pessoas investigadas serão forçadas a dedicar tempo, energia e recursos consideráveis para se defender; gastarão suas economias com advogados; terão suas carreiras e reputações maculadas. No mínimo, sofrerão meses ou anos de ansiedade e noites sem dormir com suas famílias.

Os esforços para assediar adversários não se limitarão ao Departamento de Justiça e ao FBI. Uma variedade de agências e órgãos pode servir ao mesmo objetivo. Governos autocráticos, por exemplo, rotineiramente usam autoridades fiscais para mirar opositores em investigações politicamente motivadas.

Na Turquia, o governo Erdogan destruiu o grupo de mídia Dogan Yayin, cujos jornais e redes de TV estavam relatando corrupção governamental, acusando-o de evasão fiscal e impondo uma multa esmagadora de US$ 2,5 bilhões, o que forçou a família Dogan a vender seu império a aliados do governo. Erdogan também usou auditorias fiscais para pressionar o Grupo Koc, o maior conglomerado industrial do país, a abandonar seu apoio a partidos de oposição.

Trump poderia agir de forma semelhante. Um influxo de nomeações políticas potencialmente deixaria doadores democratas na mira. Como todas as doações de campanha individuais são divulgadas publicamente, seria fácil identificar essas pessoas; de fato, o medo de tal direcionamento poderia dissuadir indivíduos de contribuir para políticos de oposição em primeiro lugar.

O status de isenção fiscal também pode ser politizado. Em seu governo, Richard Nixon trabalhou para negar ou atrasar essa classificação para organizações e think tanks consideradas politicamente hostis.

Sob Trump, tais esforços seriam facilitados por uma legislação antiterrorismo aprovada em novembro de 2024 pela Câmara dos Representantes, o que autoriza o Departamento do Tesouro a retirar o status de isenção fiscal de qualquer organização suspeita de apoiar o terrorismo, sem a necessidade de divulgar evidências para justificar tal ato.

Como "apoio ao terrorismo" pode ser definido de forma muito ampla, Trump poderia, nas palavras do representante democrata Lloyd Doggett, "usá-lo como uma espada contra aqueles que vê como seus inimigos políticos."

Da mesma maneira, quase certamente o Departamento de Educação servirá de munição contra universidades, que, por serem centros de ativismo de oposição, despertam a ira de governos autoritários competitivos.

O Departamento de Educação distribui bilhões de dólares em financiamento federal para universidades, supervisiona as agências responsáveis pela avaliação de faculdades e aplica o cumprimento dos Títulos 6º e 9º, leis que proíbem instituições educacionais de discriminar com base em raça, cor, origem nacional ou sexo. Essas capacidades raramente foram politizadas no passado, mas líderes republicanos pediram seu uso contra escolas de elite.

Autocratas eleitos também rotineiramente usam processos por difamação e outras formas de ação legal para silenciar seus críticos na mídia. No Equador, em 2011, o então presidente Rafael Correa ganhou um processo de US$ 40 milhões contra um colunista e três executivos de um jornal que publicou um editorial chamando-o de "ditador."

Embora figuras públicas raramente ganhem tais processos nos Estados Unidos, Trump fez amplo uso de uma variedade de ações legais para desgastar meios de comunicação, mirando ABC News, CBS News, The Des Moines Register e Simon & Schuster. A estratégia já deu frutos.

Em dezembro de 2024, a ABC tomou a chocante decisão de chegar a um acordo em um processo por difamação movido por Trump, pagando-lhe US$ 15 milhões para evitar um julgamento que provavelmente teria vencido. Os proprietários da CBS também estão supostamente considerando fazer o mesmo, exemplo de como ações legais espúrias podem se mostrar politicamente eficazes.

A administração não precisa atacar diretamente todos os seus críticos para silenciar a maioria das dissidências. Lançar alguns ataques de alto perfil pode servir como um dissuasor eficaz. Uma ação legal contra Cheney seria observada de perto por outros políticos; um processo contra o New York Times ou Harvard teria um efeito intimidante em dezenas de outros meios de comunicação ou universidades.

Armadilha do mel

Um Estado transformado em arma não é apenas uma ferramenta para punir oponentes. Também pode servir para construir apoio. Governos em regimes autoritários competitivos rotineiramente se valem de políticas econômicas e decisões regulatórias para recompensar indivíduos, empresas e organizações politicamente amigáveis.

Líderes empresariais, empresas de mídia, universidades e outras organizações têm tanto a ganhar quanto a perder com decisões antitruste do governo, a emissão de licenças e permissões, a concessão de contratos governamentais, a dispensa de regulamentos ou tarifas e a isenção fiscal. Se acreditarem que essas decisões são tomadas com base política em vez de técnica, têm um forte incentivo para se alinhar com os incumbentes.

O potencial de cooptação é mais claro no setor empresarial. Em 2023, o governo americano gastou mais de US$ 750 bilhões, ou quase 3% do PIB, na concessão de contratos.

Para autocratas aspirantes, decisões políticas e regulatórias são poderosas cenouras e bastões para atrair apoio empresarial. Esse tipo de lógica patrimonial ajudou autocratas na Hungria, Rússia e Turquia a garantir a cooperação do setor privado.

Se Trump enviar sinais de que se comportará de maneira semelhante, as consequências políticas serão de longo alcance. Se líderes empresariais se convencerem de que é mais lucrativo evitar financiar candidatos de oposição ou investir em mídia independente, eles mudarão seu comportamento.

De fato, o comportamento deles já começou a mudar. No que a colunista do New York Times Michelle Goldberg chamou de "a Grande Capitulação", poderosos CEOs que antes criticavam o comportamento autoritário de Trump agora estão correndo para se encontrar com ele, elogiá-lo e dar-lhe dinheiro. Amazon, Google, Meta, Microsoft e Toyota doaram cada uma US$ 1 milhão para financiar a posse presidencial, mais do que o dobro de suas doações inaugurais anteriores.

No início de janeiro, a Meta, dona do Facebook, Instagram e WhatsApp, anunciou que estava abandonando suas operações de checagem de fatos —uma medida que Trump se gabou de "provavelmente" ter resultado de suas ameaças de tomar medidas legais contra o CEO da empresa, Mark Zuckerberg. O próprio Trump reconheceu que em seu primeiro mandato "todos estavam lutando contra mim", mas agora "todos querem ser meus amigos".

Um padrão semelhante está surgindo no setor de mídia. Quase todos os principais veículos dos EUA —ABC, CBS, CNN, NBC, The Washington Post— são de propriedade e operados por grandes corporações.

Embora Trump não possa cumprir sua ameaça de reter licenças de redes de televisão nacionais, pode pressionar seus proprietários corporativos.

O Washington Post, por exemplo, é controlado por Jeff Bezos, cuja maior empresa, a Amazon, compete por grandes contratos federais. Da mesma forma, o dono do Los Angeles Times, Patrick Soon-Shiong, vende produtos médicos sujeitos à revisão pela Administração de Alimentos e Medicamentos. Antes das eleições presidenciais de 2024, os dois anularam os endossos planejados de seus jornais à democrata Kamala Harris.

Escudo autoritário

Finalmente, um Estado transformado em arma pode servir como um escudo legal para proteger funcionários do governo ou aliados que tiveram comportamentos antidemocráticos.

Um Departamento de Justiça leal, por exemplo, poderia fechar os olhos para atos de violência política pró-Trump, como ataques ou ameaças contra jornalistas, funcionários eleitorais, manifestantes ou políticos e ativistas da oposição. Também poderia se recusar a investigar casos de intimidação de eleitores ou até mesmo manipular os resultados das eleições.

Isso já aconteceu nos Estados Unidos. Durante e após a Reconstrução, a Ku Klux Klan e outros grupos armados de supremacia branca, com laços com o Partido Democrata, realizaram campanhas de terror violentas em todo o Sul, assassinando políticos negros e republicanos, incendiando casas, empresas e igrejas negras, cometendo fraudes eleitorais e ameaçando, espancando e matando cidadãos negros que tentavam votar.

Essa onda de terror, que ajudou a estabelecer quase um século de governo de partido único em todo o Sul, foi possibilitada pela conivência das autoridades de aplicação de leis estaduais e locais, que rotineiramente fechavam os olhos para a violência e sistematicamente não responsabilizavam seus perpetradores.

Os Estados Unidos experimentaram um aumento acentuado na violência de extrema direita durante o primeiro governo Trump. As ameaças contra membros do Congresso cresceram mais de dez vezes. Uma das consequências: segundo o senador republicano Mitt Romney, o medo da violência dos apoiadores de Trump dissuadiu alguns senadores republicanos de votar pelo seu impeachment após o ataque de 6 de janeiro de 2021.

Por quase todas as medidas, a violência política diminuiu após a invasão ao Capitólio, em parte porque centenas de participantes do ato foram condenados e presos. Mas agora o perdão de Trump a quase todos os insurrecionistas enviou uma mensagem de que atores violentos ou antidemocráticos serão protegidos.

Tais sinais encorajam o extremismo violento. Neste segundo mandato de Trump, críticos do governo e jornalistas independentes quase certamente enfrentarão ameaças mais frequentes e até mesmo ataques diretos.

Nada disso seria inteiramente novo para os Estados Unidos. J. Edgar Hoover, diretor do FBI, usou a agência como arma política para os seis presidentes. A administração Nixon utilizou o Departamento de Justiça e outras agências contra seus inimigos. O período atual, contudo, difere em aspectos importantes.

Os padrões democráticos globais aumentaram consideravelmente. Por qualquer medida contemporânea, os Estados Unidos eram consideravelmente menos democráticos na década de 1950 do que são hoje. Um retorno às práticas de meados do século 20 constituiria, por si só, retrocesso democrático significativo.

Mais importante, o próximo uso do governo como arma provavelmente irá muito além das práticas de meados do século 20. Há 50 anos, ambos os principais partidos dos EUA eram internamente heterogêneos, relativamente moderados e amplamente comprometidos com as regras democráticas do jogo.

Hoje, esses partidos estão muito mais polarizados. O Republicano radicalizado abandonou seu compromisso de longa data com as regras democráticas básicas, incluindo aceitar a derrota eleitoral e rejeitar inequivocamente a violência.

Além disso, grande parte do partido Republicano agora abraça a ideia de que as instituições da América —desde a burocracia federal e escolas públicas até a mídia e universidades privadas— foram corrompidas por ideologias de esquerda.

Pelo mundo, movimentos autoritários também acusam inimigos de subverter as instituições de seu países; líderes autocráticos, incluindo Erdogan, Orbán e Nicolás Maduro, da Venezuela, com frequência promovem tais alegações.

Essa visão de mundo tende a justificar, e até motivar, o tipo de expurgo e loteamento de cargos que Trump promete. Enquanto Nixon trabalhou secretamente para fazer do Estado uma arma e enfrentou oposição republicana quando esse comportamento veio à tona, o Partido Republicano de hoje encoraja abertamente tais abusos.

A transformação do Estado em arma tornou-se estratégia republicana. O partido que uma vez abraçou o ditado de campanha do presidente Ronald Reagan, segundo o qual o governo era a fonte dos problema, agora abraça entusiasticamente o governo como forma de munição política.

Usar o Poder Executivo dessa maneira é o que os republicanos aprenderam com Orbán. O autocrata húngaro ensinou uma geração de conservadores que o Estado não deve ser desmantelado, mas sim usado em busca de causas de direita e contra oponentes.

É por isso que a pequena Hungria se tornou um modelo para tantos apoiadores de Trump. Instrumentalizar o Estado não é uma nova característica da filosofia conservadora —é uma característica antiga do autoritarismo.

Imunidade natural?

A administração Trump pode descarrilar a democracia, mas é improvável que consolide o governo autoritário. Os Estados Unidos possuem várias fontes potenciais de resiliência. As instituições americanas são mais fortes do que as da Hungria, Turquia e de outros países com regimes autoritários competitivos.

O Judiciário independente, o federalismo, o bicameralismo e as eleições de meio de mandato —fatores ausentes na Hungria, por exemplo— provavelmente limitarão o alcance do autoritarismo de Trump.

Trump também é politicamente mais fraco do que muitos autocratas eleitos bem-sucedidos. Líderes autoritários causam mais danos quando desfrutam de amplo apoio público: Bukele, Chávez, Fujimori e Vladimir Putin ostentavam índices de aprovação acima de 80% quando lançaram golpes de poder autoritários.

Tal apoio público esmagador ajuda os líderes a garantir as supermaiorias legislativas ou vitórias plebiscitárias esmagadoras necessárias para impor reformas que consolidam o governo autocrático. Também ajuda a dissuadir rivais intrapartidários, juízes e até mesmo grande parte da oposição.

Líderes menos populares, por outro lado, enfrentam maior resistência de legislaturas, tribunais, sociedade civil e até mesmo de seus próprios aliados. Seus golpes de poder são, portanto, mais propensos a falhar. O peruano Pedro Castillo e o sul-coreano Yoon Suk-yeol tinham índices de aprovação abaixo de 30% quando tentaram tomar o poder de forma extraconstitucional, e ambos falharam.

O índice de aprovação de Jair Bolsonaro estava bem abaixo de 50% quando tentou orquestrar um golpe para reverter a eleição presidencial de 2022. Ele também foi derrotado nas urnas e declarado inelegível por 8 anos.

O índice de aprovação de Trump nunca ultrapassou 50% durante seu primeiro mandato, e uma combinação de incompetência, políticas impopulares e polarização partidária provavelmente limitará seu apoio durante este novo mandato. Um autocrata eleito com índice de aprovação de 45% é perigoso, mas menos do que um com 80% de apoio.

A sociedade civil é outra fonte potencial de resiliência democrática. Uma razão importante pela qual as democracias ricas são mais estáveis é que o desenvolvimento capitalista dispersa recursos humanos, financeiros e organizacionais para longe do Estado, gerando poder de contraposição na sociedade.

A riqueza não liberta completamente o setor privado das pressões impostas por um Estado transformado em arma. No entanto, quanto maior e mais rico for um setor privado, mais difícil será capturá-lo totalmente ou intimidá-lo à submissão.

Além disso, cidadãos mais ricos possuem mais tempo, habilidades e recursos para se juntar ou criar organizações cívicas ou de oposição —e como dependem menos do Estado para seu sustento do que cidadãos pobres, estão em melhor posição para protestar ou votar contra o governo.

Comparadas às de outros regimes autoritários competitivos, as forças de oposição nos Estados Unidos são bem organizadas, bem financiadas e eleitoralmente viáveis, o que as torna mais difíceis de cooptar, reprimir e derrotar nas urnas.

Falhas na armadura

Ainda assim, mesmo uma inclinação modesta do campo de jogo poderia prejudicar a democracia americana. As democracias exigem uma oposição robusta, e oposições robustas devem ser capazes de contar com um grande e renovável pool de políticos, ativistas, advogados, especialistas, doadores e jornalistas.

Um Estado transformado em arma põe em perigo tal oposição. Embora os críticos de Trump não sejam presos, exilados ou banidos da política, o custo elevado da oposição pública levará muitos deles a se retirarem para as margens políticas.

Diante de investigações do FBI, de auditorias fiscais, audiências no Congresso, processos judiciais, assédio online ou a perspectiva de perder oportunidades de negócios, muitas pessoas que normalmente se oporiam ao governo podem concluir que simplesmente não vale o risco ou o esforço. Esse processo de autoexclusão talvez não atraia muita atenção pública, mas teria graves consequências.

Diante de investigações iminentes, políticos promissores, tanto republicanos quanto democratas, deixam a vida pública. CEOs em busca de contratos governamentais, isenções tarifárias ou decisões antitruste favoráveis param de contribuir com candidatos democratas, de financiar iniciativas de direitos civis ou democracia, e de investir em mídia independente.

Veículos de notícias cujos proprietários se preocupam com processos judiciais ou assédio governamental restringem suas equipes investigativas e seus repórteres mais agressivos. Editores praticam autocensura, suavizando manchetes e optando por não publicar matérias críticas ao governo.

E líderes universitários, temendo investigações governamentais, cortes de financiamento ou impostos punitivos sobre doações, reprimem protestos no campus, removem ou rebaixam professores mais combativos e permanecem em silêncio diante do crescente autoritarismo.

Estados usados como arma criam um problema difícil de ação coletiva para as elites do establishment que, em teoria, prefeririam a democracia ao autoritarismo competitivo.

Os políticos, CEOs, proprietários de mídia e reitores de universidades que modificam seu comportamento diante de ameaças autoritárias estão agindo racionalmente, fazendo o que consideram melhor para suas organizações. Tais atos de autopreservação, contudo, têm um custo coletivo.

À medida que atores individuais se retiram para as margens ou se autocensuram, a oposição social enfraquece. O ambiente midiático torna-se menos crítico. E a pressão sobre o governo autoritário diminui.

A retração da oposição social pode ser pior do que parece. Observamos isso quando atores relevantes se autoexcluem, quando políticos se aposentam, reitores de universidades renunciam ou veículos de mídia mudam sua programação e pessoal.

Mais difícil é ter a percepção de uma oposição que poderia ter se materializado em um ambiente menos ameaçador —os jovens advogados que decidem não se candidatar a cargos públicos; os jovens escritores aspirantes que decidem não se tornar jornalistas; os potenciais denunciantes que decidem não se manifestar; os inúmeros cidadãos que decidem não participar de um protesto ou se voluntariar para uma campanha.

Mantenha a linha

A América está à beira do autoritarismo competitivo. A administração Trump já começou a cooptar instituições estatais e a usá-las contra os oponentes. A Constituição sozinha não pode salvar a democracia dos EUA. Mesmo as constituições mais bem elaboradas têm ambiguidades e lacunas que podem ser exploradas para fins antidemocráticos.

Afinal, a mesma ordem constitucional que sustenta a democracia liberal contemporânea dos Estados Unidos permitiu quase um século de autoritarismo e segregação racial no sul do país, a "internação" em massa de nipo-americanos durante a Segunda Guerra e o macarthismo nos anos 1950.

Em 2025, os Estados Unidos são governados nacionalmente por um partido com maior vontade e poder de explorar ambiguidades constitucionais e legais para fins autoritários do que em qualquer outro momento nos últimos dois séculos.

Trump será vulnerável. O apoio público limitado da administração e os erros inevitáveis criarão oportunidades para forças democráticas —no Congresso, nos tribunais e nas urnas.

A oposição, contudo, só pode vencer se permanecer no jogo. Sob autoritarismo competitivo, ela se torna extenuante. Desgastados por assédio e ameaças, muitos críticos de Trump serão tentados a se retirar para as margens.

Tal retirada seria perigosa. Quando o medo, o cansaço ou a resignação suprimem o compromisso dos cidadãos com a democracia, o autoritarismo emergente começa a criar raízes.

O meio ambiente entrou pelo cano

O presidente dos EUA cumpre não somente as promessas de campanha. Vai além. E usa o método “inundando a área” com centenas de decretos (ordens executivas e similares) que ocupam os espaços midiáticos e inquietam as pessoas. Ao Presidente importa mais “causar” e tensionar a conjuntura internacional a adotar decisões eficazes.

Na questão ambiental, o negacionismo se manifestou na imediata retirada dos EUA do Acordo de Paris, na ratificação de força dos combustíveis fósseis e na ordem, aparentemente ridícula, de incentivar o governo americano e os consumidores a comprarem canudos de plásticos. A medida está alinhada com a política de incentivos à indústria de petróleo da qual o “canudinho” é um produto derivado.


Evidências revelam que milhões de toneladas de plásticos descartáveis poluem o meio ambiente, os oceanos, intoxicam a cadeia alimentar e o processo de decomposição leva séculos para eliminar o poluente. No plano global, agrava a ocorrência de eventos que oscilam entre o calor extremo, frio intenso, secas, enchentes e incêndios devastadoras. Ou seja, a expressão “emergência climática” não é fruto do alarmismo ativista. É a constatação do Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima – IPCC segundo a qual a temperatura média global do planeta em 2024 ultrapassou pela primeira vez a marca de 1,5º C, comparado aos níveis pré-industriais, ao longo de 11 meses. O futuro chegou arrombando as nossas portas e ameaçando nossas vidas.

Se o Presidente dos EUA respeitasse alguns dos seus antepassados a exemplo da obra do notável anarcoambientalista Henry David Thoreau (1817-1862), escutaria as vozes de Gifford Pinchot (1865-1946) figura central do conservacionismo, movimento político e ambiental em defesa da proteção da natureza; e de John Muir (1838-1914) que atribuía um valor intrínseco à natureza, tornando-se, assim, fundador do preservacionismo.

De fato, ambos influenciaram a agenda governamental ao incluir um olhar de respeito à natureza na esteira dos impactos do modo de produção capitalista. Em 1872, o Presidente Ulysses Grant (1822-1885) criou o primeiro parque nacional no Estados Unidos e, no mundo, o Yellowstone. Na linhagem naturalista e conservacionista cabe destacar, também, o Presidente Theodore Roosevelt (1858-1919) que assumiu o mandato (1901-1909) em decorrência do assassinato do Presidente eleito William McKinley (1843-1901)

No século atual, o Vice-Presidente Al Gore, em 2000, derrotado por George Bush, em polêmica eleição, ganhou destaque internacional como pensador e ativista da causa ambiental, com o documentário “Uma Verdade Inconveniente”, premiado com o Oscar em 2007 e, junto com Painel Intergovernamental Sobre Mudanças Climáticas da ONU, com foco no aquecimento global, recebeu o Nobel da Paz.

Com Trump, o significado do Parque Nacional de Yellowstone, o exemplo de Al Gore e os compromissos formalmente assumidos nas diversas conferências internacionais sobre sustentabilidade entraram pelo cano, um cano de plástico, reconhecidamente, uma praga ambiental.

Para os negacionistas, de nada vale a recorrência severa dos desastres ambientais. Zero de compromisso ético com gerações vindouras. Neste ponto, O Brasil, apesar de lamentáveis retrocessos, segue, diante do mundo, como uma potência ambiental de valor estratégico.

Devido à referência a um tipo consagrado pelo Sistema de Unidades de Conservação (SNUC – Lei 9985/2000), o Parque Nacional, cabe ressaltar que o Brasil acolhe e protege a maior biodiversidade do mundo em 75 áreas com base na relevância ecológica, na beleza cênica em paisagens deslumbrantes, criadas por leis e administradas pelo Instituto Chico Mendes – ICMBio, por iniciativa da respeitável da Ministra Marina Silva (Lei 11.512/07).

Na minha passagem pelo Ministério (1995-1998), tive a oportunidade, de ver e viver o encantamento de vários deles e, graças a uma equipe multidisciplinar, competente e comprometida com uma relação amorável com Natureza e respeitosa com a Humanidade, foi possível deixar uma belíssima edição com 36 áreas (Parque Nacionais: SP: Empresas das Artes, 1998), descritiva e fotográfica que encanta e emociona.

Difícil não foi tomar a decisão de realizar o trabalho, mas cumprir com a tarefa que me foi dada pela equipe de escrever a apresentação da obra maravilhosa.

PARQUES NACIONAIS: FRAGMENTOS DA VIDA

Cartola que me perdoe, mas as rosas falam
Falam do encontro

Da chegada
Da paixão
Falam do desencontro

Da partida
Da saudade
Da beleza
Do desespero
Do amor
Falam e… exalam

A Natureza é assim. Fala, exala e ensina.
Ensina que tudo deve estar em ordem
Ordem orgânica
Simétrica
Harmônica

Ensina que a vida é uma totalidade
Ordem inteira
Articulada
Rítmica

Ensina que tudo funciona em equilíbrio permanente
Ordem rompida
Restaurada
(Re)Unida
Em caminhada

Os Parques Nacionais são assim. Fragmentos da totalidade da vida
Fruto da vontade humana
Sob a proteção da lei
Oferta

Uns são recatados
Outros, voluptuosos
Alguns, horizontais
Outros, sinuosos.
Todos místicos
Uma lindeza
Úteis
Úteros

Neles, estão inscritos raios de sol
Rastros de lua
Jornada dos ventos
A inocência dos bichos
Neles, o tempo faz morada
Em séculos de construção
Ou em minutos de destruição
Sempre, o desafio da conservação

Combate à corrupção não interessa mais a ninguém no Brasil

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez 465 discursos nos primeiros dois anos de seu terceiro mandato. A ONG Transparência Internacional (TI) contou neles 15 menções à palavra corrupção.

A TI é uma organização não governamental independente e de atuação global que se dedica a combater a corrupção e a promover, em todo o mundo, a transparência, a integridade e a obrigação de autoridades de prestarem contas de seus atos.

Para a Transparência Internacional, a falta de interesse de Lula por temas como corrupção e nepotismo é sintomática da atual abordagem que se dá ao assunto no Brasil. Se o assunto continuar sendo visto como secundário, isso pode ter consequências dramáticas para a sociedade brasileira, alerta.

Por um lado, a questão da corrupção desapareceu do debate público brasileiro, e isso mais de dez anos após o início das investigações da Operação Lava Jato, que pareciam um ponto de virada na luta contra a corrupção no Brasil.


E a corrupção voltou a aumentar: no mais recente relatório da TI, o Brasil tem um desempenho historicamente ruim no que diz respeito à disseminação da corrupção no Estado, na economia e na vida cotidiana. Dez anos atrás, quando o Brasil obteve sua melhor posição no ranking, o país estava no mesmo nível da Itália ou da Grécia.

Hoje, o Brasil está numa posição muito pior entre as principais economias emergentes do que, por exemplo, a Índia ou a China, que são internacionalmente considerados países com níveis notoriamente altos de corrupção. Que a corrupção seja ainda maior na Rússia do que no Brasil não é exatamente um consolo.

O Brasil não conseguiu interromper e reverter a tendência de queda no combate à corrupção nos últimos anos, após o fim das investigações da Lava Jato, observa a TI. Ao invés disso, a corrupção continuou a se espalhar no Estado. Isso é particularmente evidente na crescente presença do crime organizado nas instituições estatais.

A TI observa retrocessos significativos no combate à corrupção. Por exemplo, empresários, políticos e funcionários públicos corruptos já condenados foram posteriormente absolvidos pelo Judiciário, mesmo tendo confessado e admitido seus crimes. E o Judiciário ainda cancelou bilhões de reais em multas.

A situação não é diferente no Poder Legislativo: as emendas parlamentares, que restringem severamente o controle e a transparência do orçamento público, se consolidaram no Congresso.

O mais surpreendente é que esse relatório catastrófico sobre a corrupção no Brasil recebeu pouca atenção: a única reação do governo veio da Controladoria-Geral da União (CGU), que criticou o Índice de Percepção da Corrupção (IPC) da Transparência Internacional como pouco confiável. "O índice se baseia em pesquisas com grupos específicos, como empresários, e não representa a percepção geral da população", afirmou a CGU. Em resumo: conversa de botequim. "O uso do IPC para embasar debates públicos pode levar a distorções, alimentando narrativas que minam a confiança nas instituições democráticas", acrescenta.

As perspectivas de que o combate à corrupção no Brasil seja retomado num futuro próximo são pequenas. O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, acaba de suspender a aplicação da Lei de Práticas de Corrupção no Exterior (FCPA, na sigla em inglês), que proíbe as empresas dos Estados Unidos de subornar autoridades estrangeiras. Trump argumentou que a lei prejudica a competitividade das empresas americanas e mina a segurança nacional.

Antes de Trump, eram sobretudo os Estados Unidos que pressionavam pela punição criminal da corrupção no setor econômico. Se o "novo xerife" em Washington não estiver mais interessado em combater a corrupção, muitos governos pelo mundo seguirão o exemplo de bom grado.

Isso é preocupante, pois a corrupção é um importante amplificador da desigualdade social: ela desvia recursos públicos, destrói a igualdade de oportunidades e promove um sistema no qual as elites podem garantir seu poder e privilégios.

Assim, não é de se espantar que o Brasil, segundo pesquisa do Banco Mundial, ocupe o sétimo lugar na lista dos países com maior desigualdade de renda – entre 195 países.