domingo, 10 de junho de 2018

Pensamento do Dia


Estranhezas e bizarrices

‘Sétimo dia da greve dos caminhoneiros. O país continua com paralisações em todas as rodovias. Não há mais tiroteios, assaltos, explosão de caixa eletrônico, roubo de cargas, bala perdida. O Brasil que eu quero para o futuro é um Brasil sem gasolina”.

O comentário postado nas redes sociais pretendia ser uma piada. Meio sem graça, talvez. Mas chamou a atenção, com clareza, para uma das inúmeras esquisitices desse movimento que virou um tormento ao paralisar o país e deixar a população refém de um bando de irresponsáveis. Pois é, a sensação geral foi de que a violência urbana diminuiu enquanto durou o protesto dos caminhoneiros. Ou os bandidos dependem diretamente de combustíveis para agir, ou a cobertura do crime ficou em segundo plano porque surgiu um assunto mais interessante como pauta midiática.

Aliás, a mídia não estava mesmo sendo capaz de ver qualquer violência — a não ser na distorção apresentada pelos números trazidos pelo governo. Centenas de repórteres, talvez milhares pelo Brasil afora, estavam num mutirão cobrindo os protestos pelas estradas e só no nono dia foi possível começar a perceber que havia caminhoneiros impedidos à força de trabalhar, embora quisessem, ou sofrendo ameaças de todo tipo. O que houve? Os jornalistas só ouviram porta-vozes parciais? Decidiram amplificar a voz oficial do movimento sem observar por conta própria o que ocorria? Acreditaram piamente que havia unanimidade sem intimidações truculentas? E que não havia brutamontes em cena?


Essa foi só mais uma esquisitice entre tantas estranhezas e bizarrices — a começar pela facilidade em chamar de greve um estranho protesto com fundamentos justos misturados de cambulhada a reivindicações estapafúrdias (tipo intervenção militar), em algo que nem era um movimento de assalariados contra patrões por melhores condições de trabalho, nem tinha interlocutores claros para negociar. Bizarro.

E bizarramente veio a escalada, em total irresponsabilidade, causando prejuízos incalculáveis, sem qualquer limite — já que entre nós não se compreende que o sagrado e democrático direito à greve (fundamental e exigindo respeito) possa existir sem se apoiar na criminosa atuação de piquetes que instauram a lei do mais forte e a imposição da truculência, a substituir e dispensar qualquer argumentação ou tentativa de convencimento racional.

Mas talvez o mais estranho seja constatar como tudo começou de repente e se alastrou como fogo em capinzal seco, sem que os órgãos de segurança tivessem detectado. Tanto assim, que de início o presidente estava participando de solenidade para promover automóvel e dizendo que aquilo era o fato mais importante do dia. A Abin não percebeu o que estava se armando e seu risco? Ou percebeu e não informou? Ou informou e ninguém deu a mínima? Difícil saber o que é mais esquisito e bizarro. Qualquer hipótese é altamente preocupante.

Em seguida, há outro degrau de estranhamento. Não havia nenhum plano para enfrentar uma situação desse tipo? Para o aeroporto de Brasília ter combustível foi preciso um imenso comboio de caminhões-tanques vir escoltado de Minas, devagarzinho, em dias pela estrada. A Latam encontrou uma alternativa mais rápida e usou um avião carregado de querosene para reforçar seu estoque na capital. Em horas.

E o que dizer da bizarra apoteose de Papai Noel? Uma pesquisa constatou que 87% da população apoiava a “greve”, recusava a possibilidade de preços alinhados com custos e concordava com o subsídio mas não sabia que fazia isso nem se dispunha a pagar. Passou na cabeça de alguém perguntar sobre a origem dos recursos que cobrissem a despesa, já que não se consegue que o Bom Velhinho dê conta da situação? Ao menos para, didaticamente, recordar que não há almoço grátis e seria conveniente pensar a respeito. Ainda mais em ano de eleição. De onde deve vir a grana? Vamos suspender pensões de filhas de militares? Atrasar pagamento de aposentadorias ou desvinculá-las do salário mínimo? Deixar de garantir universidade gratuita? Cortar o Fies? Reduzir drasticamente o número de cargos comissionados? Igualar a previdência dos servidores à dos outros? Pedir emprestado? Aumentar impostos? Imprimir cédulas sem lastro?

O jeito é mesmo apelar para Papai Noel — como outra postagem bizarra na internet:

“O Brasil que eu quero para o futuro é um país que terá feito as reformas estruturais necessárias. Com isso terá um desenvolvimento à altura de seu potencial e um Congresso decente. Assim, pode até ser parlamentarista e ter alguém com a competência de um Pedro Parente como primeiro-ministro.”

A vantagem é que, se não der certo, é fácil substituir — sem precisar ficar meses para votar um impeachment ou repetindo “Fora Fulano”.

Bizarro, né? Sabe quando pode acontecer? No dia de São Nunca. Escalar o paredão desde o fundo do abismo para sair dele leva uma eternidade. Tarefa para gerações. Mesmo se 87% forem a favor — claro, desde que não custe nada, não dê trabalho e Papai Noel dê uma mãozinha.
Ana Maria Machado

Temer e Lula sequestraram as próximas eleições

Michel Temer e Luiz Inácio Lula da Silva sequestraram as eleições de outubro próximo. Temer, pelo péssimo governo que faz. Lula, por ter sido condenado, preso e estar impedido de ser candidato. É o que mostra a mais recente pesquisa de opinião e de intenção de votos do Instituto Datafolha.

A grave dos caminhoneiros, a lenta recuperação da economia e as denúncias de corrupção que pesam contra ele promoveram Temer à condição de o mais impopular presidente da República desde o fim da ditadura militar de 64 em 1985. Simplesmente 82% dos brasileiros consideram seu governo ruim ou péssimo.



Sem Lula candidato, mais de um terço dos eleitores se dizem sem opção. Nesse caso, o deputado Jair Bolsonaro (PSL-RJ) lidera com 19% das intenções de voto, seguido de perto por Marina Silva (REDE) com 15%, Ciro Gomes (PDT) com 11% e Geraldo Alckmin (PSDB) com 7%.

A impopularidade de Temer respinga no grau de confiança dos brasileiros nas instituições. Em abril último, 43% afirmaram confiar muito nos militares. Agora, 37%. Não confiam nos partidos políticos 68%, no Congresso 67%, na presidência 64%, no Supremo Tribunal Federal 39% e na imprensa 37%.

Mais de 40% dos eleitores de Lula dizem que não sabem em quem votar. Quando testados, Fernando Haddad e Jaques Wagner que poderão substituir Lula como candidato do PT alcançam apenas 1% das intenções de voto. Continua recorde o percentual dos que pretendem anular o voto ou não votar.

A abstenção, o voto nulo ou em branco, têm tudo para configurar um fenômeno nas próximas eleições. Deram forte sinal disso nas eleições municipais de 2016. Repetiram nas eleições extraordinárias para os governos do Amazonas e do Tocantins e para a prefeitura de algumas cidades.

Compreensível. O sistema político brasileiro apodreceu pelas razões conhecidas – corrupção, distanciamento crescente das aspirações populares e incapacidade de oferecer soluções para os principais problemas do país. E, pior: resiste a mudanças. Teima em sobreviver na contramão da História.

A misteriosa relação entre globalização, tecnologia e trabalho

Uma das principais características da economia contemporânea reside no pressuposto de que a robótica e a automação, bem como outras tecnologias de ponta, ameaçam a existência de profissões e postos de trabalho como os conhecemos até agora.

A hipótese é verdadeira. “Desenhista remoto em 3D”, “administrador de dados em nuvem”, “curador de inteligência artificial (IA) aplicada à logística” são algumas das novas profissões. Elas fazem com que algumas ocupações — gestão de imagem em rede social ou webdesigner — há pouco novidades, já pareçam pouco inovadoras.

Pepper, lançado em 2014 pela japonesa Softbank, é testado como vendedor de uma loja, depois de já ter conseguido trabalho como enfermeiro em 300 hospitais, realizando diagnósticos mais simples, e como recepcionista em diversos estabelecimentos (Yoshikazu Tsuno/AFP)


O poder de transformação da tecnologia sobre o mundo do trabalho é imenso. Assim, é um erro creditar à globalização o papel de principal culpada pela obsolescência de regiões e setores manufatureiros nas principais economias do Ocidente.

Quando determinadas atividades industriais se transferem a outros países seja por razão de maior produtividade, especialidade ou menor custo, os ganhos de eficiência podem ser utilizados no reinvestimento em áreas de maior valor agregado (como marketing, design ou pesquisa & desenvolvimento).

Ao observarmos esses fenômenos, estamos diante da fundamental transição da “manufatura” para a “mentefatura” (em inglês, diríamos from manufacturing to mindfacturing).

Na mesma linha, é equivocado colocar na conta da influência da imigração o deslocamento da empregabilidade de setores em economias avançadas, como a maioria das que compõem a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico).

No caso dos EUA, pesquisas recentes já registram que os norte-americanos temem mais pelo impacto da IA sobre seus empregos do que aquele causado pela imigração ou pela mudança de elos da cadeia produtiva a outros países. Aliás, essa mesma pesquisa aponta que 73% acham que a IA mais atua na destruição do que na criação de oportunidades de trabalho.

A propósito, a relação imigrantes-tecnologia-emprego no mais das vezes parece percorrer o caminho inverso. Com o estabelecimento de restrições à imigração, mudam-se os fluxos de investimento de empresas estrangeiras intensivas em tecnologia.

O Canadá, por exemplo, com menos restrições à imigração de pessoal qualificado em setores de alta tecnologia, está ganhando dos EUA na corrida global por talento — e atraindo grande volume de startups tecnológicas.

Como sabemos, a preocupação com o efeito da introdução de novas tecnologias sobre o trabalho não é nova. No começo do século 19, com a Revolução Industrial em pleno vapor, arregimentou-se o ludismo — um movimento na Inglaterra em que artesãos invadiam fábricas de tecelagem e destruíam as máquinas que aparentemente lhes estavam roubando o ganha-pão.

Embora alguns historiadores argumentem que o movimento em si nada tinha contras as máquinas, mas tudo em favor de melhores condições de trabalho, o ludismo ficou marcado como esforço estéril perante a imperiosa dinâmica de inovação.

O quão esse debate sobre tecnologia e trabalho é envolto em sutilezas analíticas pode ser esclarecido com o exame contemporâneo de economias como as de EUA, China, Japão e Alemanha. Trata-se aqui, respectivamente, dos países que detêm os quatro maiores PIBs (produto interno bruto) do mundo.

São, da mesma forma, as quatro nações que mais depositam patentes, uma boa medida do ritmo e volume de inovação, na OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual).

Ora, se o avanço da tecnologia põe em risco os postos de trabalho, e esse processo obviamente é algo que não começou agora, era de supor que o desemprego relacionado à tecnologia crescesse progressiva e estruturalmente nessas economias, certo?

Bem, o que então dizer das últimas estatísticas sobre o nível de desemprego nesses quatro países? Impressiona notar que ele se encontra em patamar espetacularmente baixo: EUA (3,8%, maio de 2018), China (3,89%, março de 2018), Japão (2,5%, abril de 2018) e Alemanha (3,4%, abril de 2018). Só para lembrar, o desemprego no Brasil — que não é exatamente um portento tecnológico — é de 12,9% (abril de 2018).

Além de seu elevado índice de inovação tecnológica, esses países apresentam em comum a grande escala comparativa de suas economias; o perfil, no agregado, como as quatro maiores nações comerciantes (medido pelo fluxo nominal combinado de exportações e importações); boa governança macroeconômica e instituições que incentivam e asseguram a inovação.

Em síntese, economias mais competitivas — ao contrário do que por vezes pregam seus líderes atuais — permitem a transformação do mundo do trabalho e da empresa. Em vez de os evitar, preparam-se para o desafio de novos tempos. É bem melhor estar ciente disso do que travar batalhas imaginárias contra inimigos camuflados na globalização, na imigração ou na tecnologia.

Imagem do Dia

Miradouro Achaches, Vale da Lua (Chile)  

As lições de Barcelona, Havana e Tianjin para as cidades brasileiras

Ao bloquear carregamentos nas estradas e impedir o reabastecimento de postos, a recente greve dos caminhoneiros deixou várias cidades brasileiras à beira do colapso. Em muitas delas, serviços de ônibus e de coleta de lixo foram reduzidos, mercados ficaram com prateleiras vazias e hospitais cancelaram cirurgias.

Os efeitos da greve poderiam ter sido menores caso as cidades brasileiras seguissem políticas adotadas por Barcelona, Havana e Tianjin – três metrópoles que, por razões distintas, buscaram ampliar a autossuficiência e reduzir a dependência de combustíveis fósseis.

Entre as iniciativas desenvolvidas estão hortas urbanas em áreas ociosas, redes de trocas de objetos, fábricas comunitárias e túneis subterrâneos para coleta de lixo.

Barcelona

Em 2011, a segunda cidade mais populosa da Espanha, com 1,6 milhão de habitantes, iniciou um plano para se tornar em 50 anos "uma cidade autossuficiente e produtiva formada por bairros com escala humana, dentro de uma metrópole hiperconectada e com zero emissões (de gases causadores do efeito estufa)".

Arquiteto-chefe do programa até 2015, o urbanista Vicente Guallart diz que em cada vizinhança os moradores estão sendo convidados a ocupar prédios e espaços públicos com hortas e centros comunitários.

'Super-ilhas' desestimularam o uso de automóveis em
 Barcelona e ampliaram espaços públicos
Cada distrito também deverá ganhar uma estrutura que servirá como centro de pesquisa, educação e produção. Segundo Guallart, os centros vão operar com tecnologia aberta, elaborando protótipos para uso na arquitetura, construção e design industrial. A ideia é que os próprios centros sejam capazes de fabricar os itens projetados e ajudem a saciar as necessidades da cidade.

"Acabou a era em que objetos com design de Barcelona eram fabricados na China. Precisamos trazer as fábricas de volta e tornar nossa cidade produtiva", ele afirmou durante uma palestra recente.

Barcelona também está estimulando a criação de redes de trocas entre os moradores, gerenciadas por aplicativos online. "Há centenas de coisas nas nossas casas que não usamos. O mundo digital nos permite interagir não só com quem está na Índia, mas com as pessoas que moram na nossa frente."

Guallart diz ainda que, para ampliar as áreas públicas da cidade, reduzir a poluição e encorajar o uso do transporte coletivo, 25% das superfícies destinadas aos carros serão eliminadas, dando lugar a parques, palcos para eventos culturais e quadras esportivas. Automóveis só poderão circular pelas vias principais.

A política, batizada de "superilha", já foi adotada em umconjunto de nove quarteirões, e até o fim deste ano outras cinco devem ser concluídas. No futuro, a iniciativa se estenderá por toda a cidade.

Havana

O colapso da União Soviética nos anos 1990 fez com que Cuba deixasse de receber petróleo e alimentos de sua principal parceira, mergulhando numa grave crise econômica conhecida como Período Especial.

Sem combustível para o transporte, o governo cubano importou mais de um milhão de bicicletas chinesas e as distribuiu para a população. Mais complicado era levar comida às mesas das famílias, com tratores e caminhões encalhados e fertilizantes em falta nos mercados.

Segundo a FAO, 90 mil moradores
 de Havana se dedicam à agricultura
Enquanto no campo o tradicional cultivo de cana-de-açúcar e a criação de rebanhos se tornavam quase inviáveis, levando muitos cubanos a virar quase vegetarianos na prática, o governo incentivou a produção de alimentos em áreas ociosas das cidades.

Em Havana, que abrigava um quinto da população cubana, técnicos australianos foram contratados para ensinar métodos de permacultura – sistema que busca ampliar a produção com o uso inteligente do espaço e de padrões naturais.

Cooperativas foram criadas para recolher o material orgânico gerado na cidade, transformá-lo em adubo e redistribuí-lo aos agricultores.

Segundo Paulo Rogério Lopes, pesquisador da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz da Universidade de São Paulo (Esalq-USP), esses grupos também ajudaram a sanar problemas sanitários, como a contaminação de lençóis freáticos pelo lixo.

Surgiram ainda centros responsáveis pela criação e distribuição de agentes naturais de controle de pragas. "Essas iniciativas permitiram a eliminação do uso dos agrotóxicos e das adubações químicas, contribuindo assim para a produção de alimentos saudáveis à população", diz Lopes em artigo na revista Agriculturas, de 2012.

Segundo a FAO, agência da ONU para agricultura e segurança alimentar, Havana é hoje a cidade "mais verde" da América Latina e do Caribe.

O órgão diz que 90 mil moradores da capital cubana se dedicam a alguma forma de agricultura, cultivando hortas domésticas ou trabalhando em fazendas e granjas comerciais na cidade. Na maioria delas, os alimentos são vendidos no próprio local.

Em 2013, um estudo liderado pelo médico Manuel Franco, professor da Universidade Johns Hopkins (EUA), revelou que as mudanças de hábitos alimentares e de atividade física durante o Período Especial fizeram cair as mortes por diabetes e doenças cardiovasculares em Cuba.

Por outro lado, houve um aumento nos casos de mortalidade materno-infantil e de neurite óptica, doença causada pela falta de vitaminas do complexo B.

Após a ascensão de Hugo Chávez na Venezuela, em 1999, Cuba voltou a ter uma fonte de petróleo barato, e algumas políticas adotadas no Período Especial foram flexibilizadas. Desde então, segundo Franco, os índices de diabetes voltaram a subir.

O Porto, o médico e o monsto

Nenhuma capital brasileira fez o que o Rio de Janeiro realizou nos anos recentes ao colocar o desejo por nova urbanidade no seu centro histórico. Deste modo, estabeleceu um possível modelo mais sustentável para o desenvolvimento urbano, coerente com as necessidades atuais de um planeta em aquecimento e que exige conservação ambiental, evitando consumir natureza para urbanizar; que implica o uso inteligente e compartilhado de infraestrutura, historicamente presente no Centro e que determina a constituição de territórios mais inclusivos, forjando um contrato social amparado na diversidade, imperioso para taxas demográficas estáveis e até decrescentes.

A esses três princípios, ambientais, econômicos e sociais, une-se um quarto, o cultural, pois a reciclagem do Centro reafirma a ancestralidade comum, os lugares originais e seus símbolos, inspirando para desafios vindouros.

Estes são os valores estratégicos do Porto Maravilha, cujo arcabouço legal é de final de 2009, e cujas primeiras obras, ainda feitas com recursos diretos do Tesouro municipal, foram inauguradas em 2012, como a urbanização das ruas Sacadura Cabral, Venezuela e o Largo São Francisco da Prainha; a restauração do Jardim Suspenso do Valongo, com o acesso ao Morro da Conceição, e o agenciamento urbano do entorno do Cais do Valongo. Ou seja, a transformação da região começou apenas, efetivamente, há cerca de seis anos. Antes, haviam planos.

Contudo não faltam detratores ao Porto, já julgando-o natimorto. Ainda estão em processo de reabilitação, medidas em décadas, as áreas portuárias de Buenos Aires, de Marselha, de Toronto, de Hamburgo. Do mesmo modo, não faltam opositores da participação privada, nostálgicos que são por Brasílias feitas em cinco anos com recursos públicos de caráter nacional-desenvolvimentista.

Por isso, para gerir ao longo do tempo, incrementando qualidades e lidando com adversidades, o Porto Maravilha conta com a gestão territorial dedicada da Companhia de Desenvolvimento Urbano da Região Portuária, a Cdurp. Repito, desenvolvimento urbano, não desenvolvimento imobiliário. O primeiro deve conter o segundo. Nunca o contrário. Neste sentido, errou-se na origem ao não evidenciar ao máximo a política habitacional para a área, que poderia ter destinado 3% do valor das Cepacs para produção habitacional, semelhante do que foi feito para o patrimônio cultural. Gerir implica negociar, e isso é positivo, mas errou-se também ao se dar poder discricionário excessivo à Caixa Econômica Federal sobre os rumos urbanísticos.

Se a Caixa é um stakeholder fundamental para a reabilitação de áreas urbanas centrais por causa da sua missão institucional de fomentar habitação e infraestrutura urbana, ela vem se comportando recentemente como uma criatura pública esquizofrênica. Ora médico, ora monstro.

Como agente financeiro, fomenta a “antitese” do reúso urbano e do retrofit, por meio do opiáceo do Minha Casa Minha Vida, viciando o mercado, a parte socialmente vulnerável dos brasileiros e os políticos num projeto habitacional equivocadíssimo que teremos que trabalhar muito para corrigir nos próximos 30 anos. Não inventou a droga, mas age como traficante ao distribuir e financiar esse tóxico urbanístico no país inteiro. Um modelo consumidor de natureza, catalisador de periferias insolúveis e anabolizante de empreiteiros e políticos medíocres. Pouco ajudou, por exemplo, até hoje, os movimentos de luta pela moradia.

No Porto, faz papel de médico ao incentivar o tratamento para a revitalização, por meio do remédio que são os títulos de potencial construtivo, as Cepacs. É a venda desse papel ao mercado imobiliário que financia as obras e que paga os serviços públicos feitos pela concessionária Porto Novo.

Entretanto, novo impasse entre Caixa e Cdurp ameaça o futuro da área por alegada falta de liquidez do fundo imobiliário que sustenta a operação, por causa da baixa venda de títulos. Ocorre que a Caixa, desde o início, tem optado em não vendê-los, e sim usá-los como meio para converter-se em sócia dos empreendimentos, comprando participação nos ativos. Mirando lucros futuros, sujeita-se às intempéries das depressões econômicas momentâneas. Essa política assustou o mercado desde o começo, receoso em ter que aceitar um banco público como cotista nos negócios, atrasando lançamentos e resultando agora em riscos altos por causa da vacância de prédios. Se não vende Cepacs, não obtém receita. Virando sócia, corre riscos. Perdendo resultado, o fundo vazio corrói o futuro do Porto. Ciclo estéril.

Há conflitos de missão institucional na Caixa. Ou é parceira da sociedade brasileira na inauguração de um modo tipo de urbanidade, como a requalificação do Centro do Rio, inspirando outras cidades, ou é exclusivamente financista, ou é fomentadora do espraiamento urbano por meio do MCMV, onde já foram alocados R$ 340 bilhões, transformando médias construtoras em grandes players imobiliários nacionais.

Não faltam recursos ao Brasil, falta visão urbana que priorize a reconquista do bem público, a cidade histórica, para todos, num ciclo fértil.

O d. Sebastião de Curitiba

O PT anunciou o lançamento da pré-candidatura presidencial de Lula da Silva, como se fosse a volta de d. Sebastião – o rei português que desapareceu numa batalha em 1578 e cujo retorno era esperado para salvar o reino da crise que se estabeleceu após sua partida, “quer ele venha, quer não”. Mas o sebastianismo petista é uma deliberada tapeação. Enquanto o corpo de d. Sebastião nunca reapareceu, todo mundo sabe muito bem onde está Lula: numa cela em Curitiba, cumprindo pena por corrupção e lavagem de dinheiro.

A anunciada “candidatura” de Lula, portanto, precisa de aspas. A Lei da Ficha Limpa impede que o ex-presidente tenha sua postulação deferida pela Justiça Eleitoral. O PT insiste que seu chefão é preso político, pois nada teria sido provado contra ele, razão pela qual a defesa de Lula acredita que, no momento do registro, sua candidatura terá de ser aceita, ainda que em caráter liminar. O partido não esconde que pretende causar o máximo possível de confusão legal até a eleição para que o nome de Lula esteja na urna eletrônica, com consequências imprevisíveis para o resultado formal do pleito.

Enquanto isso, o PT preparou material de campanha no qual, além de insistir na libertação de Lula, explora a crise atual para dizer que somente com a eleição do ex-presidente “o Brasil vai ser feliz de novo”. Há até uma imagem em que alguém recoloca o retrato de Lula na parede, com faixa presidencial e tudo, lembrando a marchinha de 1950 cujo refrão “bota o retrato do velho outra vez” embalou a volta de Getúlio Vargas, o “pai dos pobres”, ao poder naquele ano.

No jingle lulopetista, o refrão é “chama que o homem dá jeito”, depois de imagens que retratam o desemprego e a greve dos caminhoneiros, embaladas por uma letra que diz: “Meu querido Brasil, o que fizeram com você?”. Nos “braços do povo”, Lula então se apresenta como o único capaz de enfrentar os “poderosos” e fazer “chegar a primavera”.

É evidente que, em campanhas eleitorais, não se deve esperar que partidos deixem de exaltar qualidades de seus candidatos, mas no caso da campanha de Lula o que há é pura e simples fraude.

A crise que os petistas dizem que Lula irá resolver foi causada pelo próprio Lula e por sua desengonçada criatura, Dilma Rousseff. Foram dois anos de uma recessão brutal, resultante de uma série de erros de política econômica causados por uma visão antediluviana do papel do Estado. O primeiro mandato de Lula na Presidência, entre 2003 e 2006, deu a falsa ilusão de que o ex-metalúrgico bravateiro havia aderido aos bons fundamentos da administração e da economia. No entanto, a partir do segundo mandato, decerto premido pela necessidade de se manter no poder em face do escândalo do mensalão, Lula adernou à esquerda populista, mandando às favas o compromisso com o equilíbrio das contas públicas e o controle da inflação. A gastança estatal resultou em crescimento tão exuberante quanto insustentável – mas suficiente para eleger o “poste” Dilma em 2010.

Com Dilma dobrando a aposta de Lula, as contas públicas foram destroçadas – mas o País demoraria a conhecer o tamanho do desastre graças à contabilidade criativa e às pedaladas. Felizmente, o impeachment de Dilma interrompeu a trajetória rumo ao abismo. Aos poucos, restabeleceu-se um mínimo de racionalidade na administração, e algumas medidas cruciais, como o teto dos gastos, indicavam que o País havia recobrado a sanidade.

Ainda falta muito a fazer, mas o principal obstáculo hoje nem é a dura conjuntura econômica, e sim uma nostalgia populista que embala uma parte considerável dos eleitores, convencida de que é possível “ser feliz de novo” se a Presidência for ocupada por Lula – ou, quem sabe, por alguém indicado por ele. E essa atmosfera passadista, que ignora totalmente o que foi a trevosa era lulopetista, é fruto direto da ruína da política em meio a uma campanha de descrédito poucas vezes vista na história nacional. Se esses são os políticos que temos, é o que devem pensar esses eleitores, melhor esperar mesmo pela volta do d. Sebastião de araque.