domingo, 18 de junho de 2017

Apesar de vocês

A recusa pelo TSE a cassar a chapa Dilma-Temer pode ter sido a gota d’água que transbordou o pote de mágoas dos brasileiros. Nas redes sociais, recorrente, uma indignação sofrida.

Apesar das caras e bocas que com lábios frouxos pronunciam com desprezo a palavra povo; da frieza com que provocam a repulsa da sociedade; da vaidade tragicômica que atinge píncaros do ridículo; apesar de vocês, juízes que comprometem a Justiça, há no país um genuíno desejo de decência.

O novo Brasil que está nascendo falou, no julgamento do TSE, pela voz do ministro Herman Benjamin, que se recusou a ser coveiro da verdade. A verdade ficou ali, gritante, reiterada por dois ministros do STF, Luiz Fux e Rosa Weber.

Justiça, povo (Foto: Marcelo / O Globo)

Apesar de vocês, políticos canastrões no papel de estadistas, com seus peitos estufados, suas gravatas espaventosas, apesar dos seus porões noturnos, seus sussurros e maquinações escabrosas, suas mesadas milionárias, seus empresários tão amigos, apesar da venda do país e de nós todos ao longo de décadas, todos rindo muito, trocando de cúmplices como de sapatos, nessa omertà insultuosa aos brasileiros que lhes sustentam com seu trabalho. Apesar de vocês, contra vocês e mais forte do que vocês, um outro Brasil já existe como querer coletivo.

À decisão do TSE, à profunda revolta que provocou, veio se somar, dias depois, o suicídio político do PSDB. O partido que se demarcara do PMDB em nome da ética, contra todas as evidências de corrupção no governo decide continuar a apoiá-lo e protege seu próprio presidente enredado em gravações espantosas. O que põe a nu uma nova clivagem que não se pode chamar de política, já que os partidos esvaziaram o sentido dessa palavra. Uma clivagem que não é sequer ideológica, é moral.

A verdadeira clivagem é entre corrupção e honestidade. De um lado, a corrupção que contamina todos os grandes partidos em um gigantesco esquema de cumplicidade, entre si e com empresas bandidas; do outro, a população, ofendida, para quem honestidade na vida pública é meio e fim de um Brasil refundado. Que quer ver desaparecer da vida pública esses homens e mulheres que já não representam posição política alguma, apenas os seus próprios interesses de poder ou de dinheiro.

O desprezo é um sentimento quase sempre recíproco. A população despreza quem a despreza, o que em si já é parte do novo Brasil. Os partidos sabem disso. Daí quererem impedir candidaturas independentes, restringindo a escolha do eleitorado ao seu círculo incestuoso, onde jogam o jogo do toma lá dá cá, um abraço de afogados. Fingem não saber que o problema não é mais de política, e sim de polícia. Inútil, mais cedo ou mais tarde as sentenças virão.

A trama criminosa que se instalou no Brasil e que não tem paralelo no mundo continua viva e atuante, tentando a todo custo neutralizar a Lava-Jato e, se possível fosse, destruí-la. Esta persistência no crime fere a democracia e deixa uma cicatriz. E ainda nos expõe ao risco real e iminente de enfunar as velas de uma abominável extrema-direita pronta para aproveitar-se do vazio de poder aberto pela derrocada do sistema político.

Para além da luta contra a corrupção, da afirmação do fato moral, é urgente vertebrar a sociedade que queremos. Novas lideranças conquistarão o seu lugar na medida em que apresentem ideias e propostas para reconstruir o país, refundando a política e a democracia sobre os escombros que herdamos.

Ponto nevrálgico desse legado maldito avulta, entre outras misérias, a violência. A tragédia de jovens pobres e negros que se matam entre si, sem saber quem são nem por que vivem, a quem foi negada mínima chance de uma verdadeira escola, capacidades e valores, jogados no colo dos traficantes. Os que não morrem adolescentes vão agonizar em prisões concentracionárias, as mãos entre as grades em gestos de pedintes ou loucos. Políticos desonestos, que lhes roubaram a possibilidade de outro destino, também são culpados de seus crimes, da guerra nas ruas que está levando tanta gente a abandonar o Brasil. Também roubaram o futuro dessas crianças transformadas em exilados. E continuam dando a todos os jovens o pior dos exemplos, o da insensibilidade moral.

Vocês são hoje fantasmas, sentados em suas nobres cadeiras. Seu tempo acabou. Porque se o poder vem de cima, e se negocias nos porões, a confiança vem de baixo, e essa confiança vocês perderam.

Rosiska Darcy de Oliveira

O Brasil é país sem comando

 A “Justiça eleitoral” (despropósito de fabricação 100% nacional; deveria dar ao Brasil as eleições mais limpas do planeta, mas jamais conseguiu impedir que a política brasileira seja controlada por essa massa de escroques que está sempre aí) julgou em seu Tribunal Superior Eleitoral, a mais alta de suas instâncias, a seguinte questão: houve irregularidades, especialmente na parte financeira da campanha do PT e de Dilma Rousseff, nas eleições presidenciais de 2014?

Por exemplo: correu tudo direitinho, conforme a lei, com a recepção e o dispêndio dos 300 milhões de reais que a candidata vencedora declarou ter gasto para ser eleita? A dúvida colocada em julgamento jamais teve a mais remota semelhança com uma dúvida. Há quase três anos há certeza praticamente científica de que a campanha eleitoral que levou Dilma à Presidência da República foi um dos mais prodigiosos episódios de roubalheira jamais vistos na história universal da política.

Ainda assim, nossos juristas e demais guardiães da majestade das leis brasileiras passaram esse tempo todo meditando sobre o caso — será que alguém realmente meteu a mão em alguma coisa? — e só agora conseguiram levar o caso a julgamento. A infração era gravíssima: a pena prevista consistia na perda do mandato para a presidente eleita em 2014 caso tivesse acontecido alguma coisa de errado com aquele oceano de dinheiro mencionado acima. Dá para levar a sério? Além do mais, Dilma, deposta pelo impeachment, já perdeu o mandato há mais de um ano; não era possível tirar-lhe a mesma Presidência pela segunda vez. É óbvio, em tais condições, que a esta altura chegamos ao avesso do avesso do avesso em matéria de disparate.


Se não há mais Dilma Rousseff, é preciso se contentar com Michel Temer. O processo contra ela, por essa sequência de aberrações, passou a ser o processo contra ele. É sensacional. O autor da ação contra a eleição de Dilma é o PSDB, na época o partido de oposição mais indignado com a ex e com o PT — mas hoje, desgraçadamente, enfiado até o talo no governo de Temer, seu sucessor constitucional.

O PT e o ex-presidente Lula, de seu lado, gritam e mandam gritar todo santo dia “Fora Temer”. Mas seus advogados no processo do TSE, agindo em defesa de Dilma e da perfeita lisura da campanha de 2014, ficaram obrigatoriamente contra a cassação da chapa — e, por via de consequência, como diria o falecido vice-presidente Aureliano Chaves, a favor de Temer e de sua permanência no cargo. Ficamos, então, diante de um xeque-mate que diz tudo sobre como o Brasil é governado hoje: o TSE conseguiu o feito de condenar-se a escolher entre duas decisões erradas.

A história toda é acompanhada de algum lugar seguro, provavelmente às gargalhadas e com champanhe, pelos irmãos Wesley e Joesley Batista — possivelmente os maiores corruptores confessos que já apareceram no Brasil nos últimos 500 anos. Receberam, em troca de suas confissões, um inédito perdão da Procuradoria-Geral da República e de um ministro do Supremo Tribunal Federal. Não uma redução de pena ou algum benefício compreensível; foi uma absolvição sem julgamento. Talvez aguardem, agora, a medalha da Ordem do Rio Branco.

O quadro se completa, até agora, com a constatação de que ninguém governa. Na verdade, desde que a maioria dos eleitores brasileiros tomou a funesta decisão de dar um segundo mandato à ex-presidente Dilma, o país vive sem governo. Dilma não governou de 2014 para cá, e Temer não governa desde seu primeiro dia no Palácio do Planalto, ou governa apenas um bazar de trocas.

Além disso, saiu de uma costela do PT e só chegou aonde está porque serviu em tudo a Lula e aos companheiros. Não poderia ser diferente do que está sendo, pois não apagou seu passado quando subiu de cargo; ninguém consegue. Toma, agora, o mesmo remédio que viu Lula e o PT aplicar em todos os adversários.

Gente fora do mapa

Resultado de imagem para national geographic photography people

Joesley soa como virgem de Sodoma e Gomorra

De passagem pelo Brasil, o corruptor confesso Joesley Batista falou à revista Época. Apresentou-se na conversa como uma vítima de políticos achacadores. Nessa versão, se não distribuísse mimos e propinas os interesses do seu grupo empresarial seriam prejudicados. A tese da extorsão é cansativa e ofensiva. Ela cansa porque já foi usada à exaustão pelas empreiteiras pilhadas na Lava Jato. Ofende porque supõe que a plateia é feita de imbecis.

Na definição do dono da JBS, “Temer é o chefe de uma organização criminosa” que inclui Eduardo Cunha, Geddel Vieira Lima, Henrique Eduardo Alves, Eliseu Padilha e Moreira Franco. “Essa turma é muita perigosa. Não pode brigar com eles. Nunca tive coragem de brigar com eles.” Por quê? “Para não armarem alguma coisa contra mim.” Há, hã… O problema dessa formulação é que, guiando-se por autocritérios, Joesley participa do enredo da rapinagem no papel de um anjo cercado de demônios.

Charge Super Notícia 18/06/2017

As asas angelicais do entrevistado abriram-se com maior entusiasmo no instante em que ele explicou por que pagava pelo silêncio de Eduardo Cunha e Lúcio Funaro, que estão atrás das grades. “Virei refém de dois presidiários. Combinei quando já estava claro que eles seriam presos, no ano passado. O Eduardo me pediu R$ 5 milhões. Disse que eu devia a ele. Não devia, mas como ia brigar com ele? Dez dias depois ele foi preso.”

O anjo prosseguiu: “Eu tinha perguntado para ele: ‘Se você for preso, quem é a pessoa que posso considerar seu mensageiro?’. Ele disse: ‘O Altair procura vocês. Qualquer outra pessoa não atenda’. Passou um mês, veio o Altair. Meu Deus, como vou dar esse dinheiro para o cara que está preso? Aí o Altair disse que a família do Eduardo precisava e que ele estaria solto logo, logo. E que o dinheiro duraria até março deste ano. Fui pagando, em dinheiro vivo, ao longo de 2016. E eu sabia que, quando ele não saísse da cadeia, ia mandar recados.”

Que a política virou apenas mais um ramo do crime organizado, ninguém ignora. Nessa matéria, a Lava Jato eliminou até o benefício da dúvida. Mas Joesley só está solto para dar entrevistas porque sua delação foi superpremiada pela Procuradoria-Geral da República. O delator faria um favor aos brasileiros se não exagerasse na pose.

O que há de novo no país que a força-tarefa de Curitiba desencavou é que, pela primeira vez desde as caravelas, a polícia, a Procuradoria e a Justiça invadiram os salões do clube dos corruptores, do qual Joesley Batista é sócio-atleta. O barão da carne ainda não se deu conta da aversão que sua despudorada figura passou a despertar.

Hoje, só há dois tipos de brasileiros: os desinformados e os que torcem para que os lucros que a JBS obteve no mercado financeiro manipulando a própria delação resultem em nova ação judicial. Coisa séria o bastante para levar gente como Joesley à cadeia sem prejuízo da utilização de tudo o que foi delatado para fins criminais.

Até lá, convém a Joesley não diminuir sua importância como corruptor no maior esquema de rapinagem sob investigação no planeta. Do contrário, sua voz soará nos depoimentos e nas entrevistas como ladainha de uma virgem de Sodoma e Gomorra.

Organização revelada


Em Brasília perderam-se de vista o interesse nacional, o sentimento de respeito e de decência, o compromisso com o desenvolvimento, a necessidade de eliminar a miséria assombrosa. Mais que estadistas e representantes populares, o Brasil parece ter sido dominado por aves de rapina, psicopatas que se arrogam o poder de fazer e desfazer em benefício próprio, completamente dissociados do dever com a nação

O Partido da Boiada Feliz

A semana começou tranquila no Brasil, com os irmãos Freeboys desejando a todos boas compras na 5a Avenida e muita diversão na Broadway. Como se sabe, o Papai Noel antecipado do companheiro Janot deu aos fenomenais donos da JBS o presente de suas vidas (Nova York é linda na primavera) – e olhem que o bom velhinho de São Bernardo já tinha dado uma lembrancinha bilionária aos meninos. Eles ainda tiveram a sorte (que garotos venturosos!) de encontrar pelo caminho o companheiro Edson Fachin, um homem bom, que não economiza seus poderes para ajudar a quem precisa.

Agora segure a emoção para o final feliz: um grupo de artistas resolveu dar apoio político a essa conexão dourada de brasileiros que não desistem nunca (de ficar com o que é seu).
Resultado de imagem para temer e friboi charge
A estratégia é a seguinte: fazer campanha pública – aquelas com camisetinhas, videozinhos, caras e bocas bem ensaiadas – para inventar uma prorrogação do mandato de Rodrigo Janot na Procuradoria-Geral da República. Uma coisa natural, democrática, tipo o Sarney quando resolveu dar a si mesmo mais um ano na Presidência, ou seus antecessores de farda, que também resolveram dar uma prorrogada no governo deles, tipo assim, para sempre.

A ideia é muito boa – como todas as que vêm desse grupinho iluminado, que inventou o remake das “Diretas já” (na praia, que ninguém é de ferro) com o cuidado de não convidar para a festa o companheiro Maduro, amigo de fé e irmão camarada dos democratas de Copacabana. Foram esses mesmos visionários que marcharam corajosamente em defesa da quadrilha progressista e revolucionária de Dilma Rousseff. Como se vê, eles sabem o que fazem.

E agora querem Janot forever. Mais um lema matador. Como se sabe, um procurador que era braço direito do procurador-geral assessorou o grupo JBS no acordo providencial que salvou a pele dos irmãos Batista. É uma turma muito bem relacionada, que sabe cultivar as amizades certas. Havia outro procurador contratado pelos maiores contratantes do país para lhes vazar informações da Lava Jato, mas por um infortúnio este foi preso. Deve estar especialmente chateado, sabendo que não estava sozinho nos esforços da vazadoria-geral em prol dos pobres bilionários. A carne é fraca.

Janot é o novo herói desse grupinho de iluminados, e olhando o quadro completo você só pode constatar que a carne é, reiterada e conclusivamente, fraca. Claro que o mote é apoiar o “comandante da Lava Jato”. Temos de admitir que a importância de Rodrigo Janot para as conquistas éticas da Lava Jato só é comparável à de Dilma Rousseff para as conquistas intelectuais da mulher.

Pensando bem, o Brasil deveria se livrar dessa confusa profusão de partidos díspares e desconexos e consolidar o que é bom num partido único – o que tiver as maiores boiadas. Essa consolidação, inclusive, já foi feita pela alma mais honesta dos dois Hemisférios, num trabalho árduo de mais de década com o brilhantismo do BNDES e o suor do seu rosto, caro leitor. Janot, o herói dos artistas, sabe o que é bom para o país – e é por isso que os donos do partido único ganharam a chance de ir para Manhattan refletir sobre os destinos dos brasileiros.

É hora de tirar esse partido único da clandestinidade. Chega de intermediários, basta de amadorismo. Os artistas de passeata têm razão. O Brasil nunca mais vai precisar de reforma da Previdência, reforma trabalhista, orçamento equilibrado, juros, impostos, leis, nada. Basta dar o poder a quem realmente tem dinheiro, e aí não é nem mais o caso de perguntar de onde esse dinheiro veio – porque, como já vimos, ele será distribuído de graça entre aqueles que querem a revolução do bem e facilitam as coisas para os líderes dessa revolução não irem para o xadrez.

Você nem se lembra mais da delação-bomba de João Santana. Talvez se lembre de quem foi João Santana – e isto é bom você não esquecer: foi um dos mentores intelectuais da transformação do Brasil num vasto e pródigo pasto ideológico, onde tudo se resolve mediante um modesto pedágio ao rei. A literatura sobre a formação épica da república do pixuleco está toda na internet, a seu alcance. Releia uma hora destas, se quiser entender o que foi a Revolução de Maio de 2017.

Guilherme Fiuza

Paisagem brasileira

Andradas Mg Bairro Boa Esperança
Andradas (MG)

Siameses retrô

Começam com T e têm cinco letras, não é charada. São os nomes dos dois únicos presidentes que estão sob investigação no mundo, que apesar de díspares comungam o retrocesso político. Trump e Temer são os siameses de outros tempos.

No discurso para os cubanos radiados em Miami, o presidente americano acenou com o discurso democrata de J.F. Kennedy. A imposição à Cuba de uma democracia à americana de eleições livres, liberdade de partidos, fedeu ao autoritarismo daquele tempo de uma América senhora do mundo. Trump errou de época, achando-se um novo Ted Roosevelt, capaz de impor sanções a torto e à direita em defesa dos famigerados interesses americanos, danando-se a soberania do país que for. Um joguinho de cena para aparecer bem na fita, mas não é nenhum John Wayne, que dirá o velho Ted.




Temer, burocrata de partido, também é de outro mundo. Ganhou a chance única de deixar uma biografia respeitável. Mas com o cacoete de anos convivendo nos corredores políticos, ganhou ares morféticos. Incorporou a fantasia de governante, por necessidade, e saiu anunciando um gabinete de notáveis. Conseguiu apenas reunir notórios pilantras com extensos e e históricos prontuários. Temer e comparsas encarnam o mais sórdido na política brasileira: o coronelismo de colarinho, que reaparece recauchutado.

Espera-se que o mundo esteja mudado o suficiente para mandar às favas esses ventríloquos do passado. Não são lá tão assustadores como parecem, porque como fantasmas vão desaparecer em fumaça. São os zumbis de um passado para dar o que falar no mundo e com isso muita instabilidade.

Luiz Gadelha

Governo recolhe 98 mil exemplares de livro infantil considerado 'impróprio'

O ministro da Educação, Mendonça Filho, ordenou no último dia 8 que o livro de contos infantis Enquanto o Sono Não Vem, do escritor e ator teatral José Mauro Brant, fosse recolhido de todas as escolas do Brasil, apesar de ter sido aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Centro de Alfabetização de Minas Gerais e distribuído pelo Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC) há três anos. Por que agora?
Resultado de imagem para Enquanto o Sono Não Vem livro
O motivo alegado pelo Governo é que professores e pais de alunos protestaram pelo fato de um dos contos, A Triste História da Eredegalda, recolhido por Brant da literatura oral popular brasileira, tratar da questão do incesto. A fábula conta a história de um rei que deseja se casar com uma das suas três filhas, a qual, por se negar, é castigada e morre de sede.

Um novo estudo do livro, solicitado pelo Ministério da Educação do Governo Temer, decidiu que as crianças do ensino primário “não têm maturidade e senso crítico para problematizar certos temas com alta densidade”.

Brant, que há mais de 30 anos pesquisa a literatura infantil, afirma que “o Brasil vive uma crise de inteligência” e que as autoridades do ministério não entenderam que é “muito melhor que as crianças entrem em contato com os temas difíceis através da literatura do que na rua”. Ele acrescenta que “a leitura nunca pode ser uma ameaça”.

No caso concreto do conto dele sobre o rei e sua filha, fica claro, segundo o autor, que as crianças se identificam com a menina castigada e desprezam o pai. E os alunos têm a oportunidade de escrever outros finais para a história.

Perguntado sobre o que sentiu ao ver 98.000 exemplares do seu livro serem retirados das escolas, Brant afirma: “Toda essa polêmica me surpreendeu. Primeiro recebi mensagens de professores incrédulos, e de repente um rio de mensagens de ódio. Por um lado os pentecostais me desejando o fogo dos infernos, e por outro ameaças de morte de grupos de extrema direita”.

Segundo o autor do livro retirado, os responsáveis pela decisão “não sabem que os contos de tradição oral em todos os tempos são palco de assuntos delicados. Existem justamente para alertar sobre os perigos do mundo”.

E, para Brant, que vive em Rio e já trabalhou com alunos de escolas de alto risco, esses perigos não foram inventados pela literatura, e sim pela vida. “Já trabalhei em escolas que, dia sim, dia não, são fechadas pelo narcotráfico. Agora mesmo, enquanto escrevo a você, ouço um tiroteio numa comunidade próxima. A vida expõe essas crianças aos terrores do mundo diariamente. Que espaço pode ser mais seguro para abordar com elas certos temas delicados do que o regaço seguro e afetuoso de um professor inteligente ou de um contador de histórias?” E acrescenta: “O segredo é a mediação, e cada vez nossas políticas de leitura no Brasil se preocupam mais com a compra e venda de livros do que com a capacitação de mediadores de leitura e com a formação de leitores”.

Na opinião dele, “a crise política está mergulhando o país em uma crise moral que deixa cada vez mais à margem a inteligência e o bom senso. Estamos voltando à Idade Média, aos tempos da Inquisição. Mas hoje se queimam livros sem tacar fogo”.

Mas o autor censurado não está só. Tem recebido uma onda de solidariedade, como ele mesmo indica, por parte de muita gente que defende uma educação laica e aberta nas escolas, capaz de abrir a mente e a alma das crianças.

A escritora infanto-juvenil Roseana Murray, autora de quase 100 livros publicados e premiada pela Academia Brasileira de Letras, escreveu no seu Facebook, comentando a polêmica censura do livro de contos de Brant: “Perigosa não é a literatura, e sim a vida. Perigoso é mesclar religião com educação, intolerância com literatura”. Ela acrescenta que “contos populares e de fadas existem desde tempos imemoriais e atravessam fronteiras de boca em boca. Às vezes são tristes, às vezes terríveis, mas ajudam as crianças a resolverem conflitos e abordarem temas difíceis, através da fantasia”.

É verdade, como afirma Brant, que na nova Inquisição de hoje no Brasil “queimam-se livros sem tacar fogo”. O dele acaba de ser queimado assim. Isso me fez lembrar uma frase célebre de um dos maiores poetas russos, o Nobel de Literatura, Joseph Brodsky: “O maior crime não é queimar livros, e sim não lê-los”.

O maior crime que o Ministério da Educação acaba de cometer não foi o de “queimar” o livro de contos de Brant, e sim o de privar as crianças de lerem boa literatura.

Não muito tempo atrás, dizia-se que o Brasil já havia tocado o futuro com as mãos. Hoje, percebemos que, infelizmente, no campo da cultura, da tolerância e da defesa das liberdades o Brasil está despertando novamente num passado que se esperava ter sido esquecido para sempre.

Imagem do Dia

Meteora, Grécia
Monastério de Meteora (Grécia)

Perdão indigesto

Chave-mestra para as investigações da Lava-Jato, o instituto da delação premiada pode ganhar nova interpretação nesta semana, fragilizar a operação e adicionar mais uma guerra às já deflagradas entre os poderes.

Desta vez opondo a Procuradoria-Geral da República ao Supremo Tribunal Federal, caso o plenário da Corte decida rever os termos das colaborações dos irmãos Batista, beneficiados com imunidade absoluta.

Resultado de imagem para corrupção indigesta charge
A questão será analisada na quarta-feira. A hipótese de a tese de revisão ser aprovada reduz o poder de negociação da PGR – uma arapuca para a Lava-Jato, que os investigados pela operação tentam com afinco, mas que acabou armada pela própria Procuradoria.

A PGR pode até espernear, mas se algo mudar será única e exclusivamente pela frouxidão do acordo firmado com os donos da JBS.

Por mais que o Procurador-Geral Rodrigo Janot afirme e reafirme que o teor da delação compensava todas as benesses, nem especialistas, quanto mais o cidadão comum, conseguem compreender como a instituição que comanda o combate à corrupção acabou por fazer valer o dito de que o crime compensa.

Ainda que tenham gravado um diálogo nada republicano com o presidente Michel Temer e outros com Aécio Neves, e combinado ações com a Polícia Federal para efetuar flagrantes que complicam Temer e o senador tucano afastado, os Batista ditaram e obtiveram regalias inexplicáveis. Sem parâmetros no mundo.

Causaram escárnio as imagens do apartamento de luxo de Joesley em Nova York, de seu jato particular e do embarque de seu iate de US$ 10 milhões para os Estados Unidos; a confissão de que corrompera 1.893 políticos. Todos os crimes perdoados – enfiados goela abaixo dos brasileiros pela PGR.

Criada no governo Fernando Henrique Cardoso, em 1999, no bojo da Lei 9.807 sobre Proteção a Testemunhas e Colaboradores, a delação premiada reaparece na Lei 12.850, que define organização criminosa, assinada pela então presidente Dilma Rousseff, em 2013. Uma lei não anulou a outra. E entre uma e outra as mudanças mais significativas se referem ao detalhamento das delegações dadas ao Ministério Público e à Polícia Federal para formalizá-las.

Mas o que chama atenção é o pouco caso que se faz da legislação. O parágrafo 1o da Seção I da lei de 2013 -- “a concessão do benefício levará em conta a personalidade do colaborador, a natureza, as circunstâncias, a gravidade e a repercussão social do fato criminoso e a eficácia da colaboração”— fornece, por exemplo, elementos de sobra para que a PGR negasse os termos exigidos pelos irmãos Batista no pacto. Mais adiante, o parágrafo 3o do Artigo 6º fixa a manutenção do sigilo do acordo até o recebimento da denúncia, preceito inútil para quase a totalidade das delações no âmbito da Lava-Jato.

No Supremo, a tendência é de revisão do acordo dos Batista. Mas em alguns termos, algo bem pontual. Difícil será fazê-lo sem colocar em risco acordos já firmados e outros que estão em negociação. É nesse ponto que a defesa da PGR deve se ater: a segurança jurídica.

O STF avaliará também se a homologação de delações pode ou não ser feita pelo juiz relator do processo ou se é sujeita, obrigatoriamente, a deliberação colegiada. E se o inquérito para investigar Temer e o ex-deputado Rodrigo Loures (PMDB-PA) continuará ou não com o ministro Edson Fachin, relator da Lava-Jato. Na contramão do desejo de Temer, têm-se como favas contadas a vitória de Fachin.

Seja qual for a decisão do STF na quarta-feira, uma coisa é certa: o país não suporta mais a corrupção, mas também não tem estômago para delações que premiam excessivamente criminosos confessos. Cabe à Justiça evitar essa indigestão.

Loucos oficiais

Dia desses, cumprindo minha rotina diária de leitura de alguns jornais do planeta, subitamente atentei para a imensa quantidade de notícias retratando episódios de insensibilidade que somente a loucura mais refinada poderia explicar. O pior: praticamente todos eles envolvendo autoridades de alto nível. Decidi, então, ensejando uma compreensão mais ampla, listá-las, resumidamente. Transcrevo, a seguir, o que encontrei.

Na Malaysia, um dado deputado, comentando uma nova lei que penaliza abusos sexuais de menores, declarou que violadores e vítimas deveriam casar-se e "virar a página". Acrescentou, em seguida, que muitas "raparigas" já estão preparadas física e espiritualmente para o casamento a partir dos 9 anos de idade.

Enquanto isso, na Europa, o presidente da Repúlica Checa foi gravado ao dizer, em recente conferência internacional, que "há demasiados jornalistas, deveríamos liquidá-los". Por falar em "liquidar" pessoas, na África um outro presidente, o da Guiné Equatorial, assim expressou-se: "quando alguém agarra um delinquente, mesmo que o mate, nós não vamos permitir que a justiça detenha essa pessoa, porque o delinquente tem que saber que, quando vai roubar, pode ser morto".

Mas retornemos à Europa, em cujo parlamento um Eurodeputado sustentou, "ao vivo e a cores", que "as mulheres devem ganhar menos do que os homens porque são mais frágeis, mais pequenas e menos inteligentes". Deve ser por isso que, na Itália, absolveu-se um estuprador sob o argumento de que sua vítima "não gritara"!

Na Índia o cenário para as mulheres é outro: um ministro, comandando uma campanha de distribuição de objetos de madeira parecidos com porretes, assim aconselhou-as: "se o seu marido estiver embriagado e ameaçar abusá-la, bata nele".

Nos EUA um congressista, debatendo em plenário a gravíssima questão da saúde, saiu-se com esta "pérola": "ninguém morre por não ter acesso a cuidados de saúde".

Encerro com a Austrália, país no qual parlamentares federais defenderam que traficantes de pessoas fossem pagos para devolverem suas vítimas à Ásia.

Diante destes episódios, todos, repito, protagonizados por autoridades do mais elevado nível - seja lá o que for isso - fiquei a recordar as palavras de William Shakespeare: "é uma infelicidade da época que os doidos guiem os cegos".