O ministro da Educação, Mendonça Filho, ordenou no último dia 8 que o livro de contos infantis Enquanto o Sono Não Vem, do escritor e ator teatral José Mauro Brant, fosse recolhido de todas as escolas do Brasil, apesar de ter sido aprovado pelo Plano Nacional do Livro Didático (PNLD) do Centro de Alfabetização de Minas Gerais e distribuído pelo Programa Nacional de Alfabetização e Cidadania (PNAC) há três anos. Por que agora?
O motivo alegado pelo Governo é que professores e pais de alunos protestaram pelo fato de um dos contos, A Triste História da Eredegalda, recolhido por Brant da literatura oral popular brasileira, tratar da questão do incesto. A fábula conta a história de um rei que deseja se casar com uma das suas três filhas, a qual, por se negar, é castigada e morre de sede.
Um novo estudo do livro, solicitado pelo Ministério da Educação do Governo Temer, decidiu que as crianças do ensino primário “não têm maturidade e senso crítico para problematizar certos temas com alta densidade”.
Brant, que há mais de 30 anos pesquisa a literatura infantil, afirma que “o Brasil vive uma crise de inteligência” e que as autoridades do ministério não entenderam que é “muito melhor que as crianças entrem em contato com os temas difíceis através da literatura do que na rua”. Ele acrescenta que “a leitura nunca pode ser uma ameaça”.
No caso concreto do conto dele sobre o rei e sua filha, fica claro, segundo o autor, que as crianças se identificam com a menina castigada e desprezam o pai. E os alunos têm a oportunidade de escrever outros finais para a história.
Perguntado sobre o que sentiu ao ver 98.000 exemplares do seu livro serem retirados das escolas, Brant afirma: “Toda essa polêmica me surpreendeu. Primeiro recebi mensagens de professores incrédulos, e de repente um rio de mensagens de ódio. Por um lado os pentecostais me desejando o fogo dos infernos, e por outro ameaças de morte de grupos de extrema direita”.
Segundo o autor do livro retirado, os responsáveis pela decisão “não sabem que os contos de tradição oral em todos os tempos são palco de assuntos delicados. Existem justamente para alertar sobre os perigos do mundo”.
E, para Brant, que vive em Rio e já trabalhou com alunos de escolas de alto risco, esses perigos não foram inventados pela literatura, e sim pela vida. “Já trabalhei em escolas que, dia sim, dia não, são fechadas pelo narcotráfico. Agora mesmo, enquanto escrevo a você, ouço um tiroteio numa comunidade próxima. A vida expõe essas crianças aos terrores do mundo diariamente. Que espaço pode ser mais seguro para abordar com elas certos temas delicados do que o regaço seguro e afetuoso de um professor inteligente ou de um contador de histórias?” E acrescenta: “O segredo é a mediação, e cada vez nossas políticas de leitura no Brasil se preocupam mais com a compra e venda de livros do que com a capacitação de mediadores de leitura e com a formação de leitores”.
Na opinião dele, “a crise política está mergulhando o país em uma crise moral que deixa cada vez mais à margem a inteligência e o bom senso. Estamos voltando à Idade Média, aos tempos da Inquisição. Mas hoje se queimam livros sem tacar fogo”.
Mas o autor censurado não está só. Tem recebido uma onda de solidariedade, como ele mesmo indica, por parte de muita gente que defende uma educação laica e aberta nas escolas, capaz de abrir a mente e a alma das crianças.
A escritora infanto-juvenil Roseana Murray, autora de quase 100 livros publicados e premiada pela Academia Brasileira de Letras, escreveu no seu Facebook, comentando a polêmica censura do livro de contos de Brant: “Perigosa não é a literatura, e sim a vida. Perigoso é mesclar religião com educação, intolerância com literatura”. Ela acrescenta que “contos populares e de fadas existem desde tempos imemoriais e atravessam fronteiras de boca em boca. Às vezes são tristes, às vezes terríveis, mas ajudam as crianças a resolverem conflitos e abordarem temas difíceis, através da fantasia”.
É verdade, como afirma Brant, que na nova Inquisição de hoje no Brasil “queimam-se livros sem tacar fogo”. O dele acaba de ser queimado assim. Isso me fez lembrar uma frase célebre de um dos maiores poetas russos, o Nobel de Literatura, Joseph Brodsky: “O maior crime não é queimar livros, e sim não lê-los”.
O maior crime que o Ministério da Educação acaba de cometer não foi o de “queimar” o livro de contos de Brant, e sim o de privar as crianças de lerem boa literatura.
Não muito tempo atrás, dizia-se que o Brasil já havia tocado o futuro com as mãos. Hoje, percebemos que, infelizmente, no campo da cultura, da tolerância e da defesa das liberdades o Brasil está despertando novamente num passado que se esperava ter sido esquecido para sempre.
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