quarta-feira, 28 de maio de 2025
A esquerda tirou os olhos da bola, e a direita saiu correndo com ela
Quando o presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, ataca diretamente a liberdade acadêmica de uma universidade como Harvard, fica muito claro que ele nunca teve verdadeiramente uma agenda de liberdade. Como tantos autoritários antes dele, a conversa da liberdade foi apenas um meio para chegar a um fim, o poder, a partir do qual passou a esmagar a liberdade dos outros.
A culpa principal é de quem participou nessa perversão ideológica. Há já uma década que duas versões da liberdade têm sido vendidas pela direita radicalizada. Uma delas é conservadora, patriarca e nacionalista: a liberdade de ofender, insultar e degradar, apresentada contra a "ditadura do politicamente correto" ou do wokismo ou, mais frequentemente, apenas para chatear a esquerda. Qualquer observador minimamente atento sabia que esse pessoal nunca quis saber de liberdade.
Uma segunda versão, a dos ultraliberais, era mais genuína: eles acreditavam (e alguns ainda acreditam) em uma versão da liberdade como não interferência por parte do Estado, mas é uma liberdade desidratada. Menos Estado, mais liberdade. Menos impostos, mais liberdade. Não passa disso. É uma liberdade poucochinha, como dizemos aqui em Portugal.
Mas é preciso que a esquerda assuma também as suas culpas nesse sequestro e subversão da liberdade. Só foi assim tão fácil para a direita ocupar o espaço semântico da liberdade porque a esquerda, em boa medida, deixou-o abandonado. Esse jogo foi perdido pela esquerda por falta de comparecimento, ainda antes de começar.
Grande parte da esquerda deixou que se tornasse consensual a ideia de que a direita era pela liberdade como a esquerda seria pela igualdade. Essa ideia não tem qualquer sentido histórico: a esquerda do século 19 e de grande parte do 20 é uma esquerda da luta pela liberdade, que é sempre o primeiro valor na tríade revolucionária, com a igualdade e a tão esquecida e menosprezada fraternidade. Mas sem liberdade, nada vale a pena.
Outra parte da esquerda convenceu-se de que andava ocupada com os outros valores —a justiça, em particular a social, ou a sustentabilidade— sem perceber que a defesa deles só é eficaz se forem enquadrados num entendimento de raiz libertária: a justiça ou a sustentabilidade são princípios que asseguram a equilibrada distribuição da liberdade, numa sociedade ou ao longo do tempo.
Outra esquerda ainda foi incoerente na defesa da liberdade, desculpando ditaduras ou violações de direitos humanos por solidariedade táticas, afinidades históricas ou geopolíticas, ou outras razões espúrias. Mas a liberdade não pode ser descartável, nem instrumental.
Em resumo, a esquerda tirou os olhos da bola. E a direita correu com ela por mais de uma década. E com isso ganhou um eleitorado jovem, urbano, ascendente, proletário, ou simplesmente gente que sonha com uma pequena independência ou prosperidade para si e para os seus. Gente que deveria ser o público da esquerda.
Pode ser que agora, que ficou evidente que o apego de certa direita à liberdade sempre foi fajuto, a esquerda acorde. Só derrotaremos os populistas de extrema direita se for em nome da liberdade.
A culpa principal é de quem participou nessa perversão ideológica. Há já uma década que duas versões da liberdade têm sido vendidas pela direita radicalizada. Uma delas é conservadora, patriarca e nacionalista: a liberdade de ofender, insultar e degradar, apresentada contra a "ditadura do politicamente correto" ou do wokismo ou, mais frequentemente, apenas para chatear a esquerda. Qualquer observador minimamente atento sabia que esse pessoal nunca quis saber de liberdade.
Uma segunda versão, a dos ultraliberais, era mais genuína: eles acreditavam (e alguns ainda acreditam) em uma versão da liberdade como não interferência por parte do Estado, mas é uma liberdade desidratada. Menos Estado, mais liberdade. Menos impostos, mais liberdade. Não passa disso. É uma liberdade poucochinha, como dizemos aqui em Portugal.
Mas é preciso que a esquerda assuma também as suas culpas nesse sequestro e subversão da liberdade. Só foi assim tão fácil para a direita ocupar o espaço semântico da liberdade porque a esquerda, em boa medida, deixou-o abandonado. Esse jogo foi perdido pela esquerda por falta de comparecimento, ainda antes de começar.
Grande parte da esquerda deixou que se tornasse consensual a ideia de que a direita era pela liberdade como a esquerda seria pela igualdade. Essa ideia não tem qualquer sentido histórico: a esquerda do século 19 e de grande parte do 20 é uma esquerda da luta pela liberdade, que é sempre o primeiro valor na tríade revolucionária, com a igualdade e a tão esquecida e menosprezada fraternidade. Mas sem liberdade, nada vale a pena.
Outra parte da esquerda convenceu-se de que andava ocupada com os outros valores —a justiça, em particular a social, ou a sustentabilidade— sem perceber que a defesa deles só é eficaz se forem enquadrados num entendimento de raiz libertária: a justiça ou a sustentabilidade são princípios que asseguram a equilibrada distribuição da liberdade, numa sociedade ou ao longo do tempo.
Outra esquerda ainda foi incoerente na defesa da liberdade, desculpando ditaduras ou violações de direitos humanos por solidariedade táticas, afinidades históricas ou geopolíticas, ou outras razões espúrias. Mas a liberdade não pode ser descartável, nem instrumental.
Em resumo, a esquerda tirou os olhos da bola. E a direita correu com ela por mais de uma década. E com isso ganhou um eleitorado jovem, urbano, ascendente, proletário, ou simplesmente gente que sonha com uma pequena independência ou prosperidade para si e para os seus. Gente que deveria ser o público da esquerda.
Pode ser que agora, que ficou evidente que o apego de certa direita à liberdade sempre foi fajuto, a esquerda acorde. Só derrotaremos os populistas de extrema direita se for em nome da liberdade.
Burlas virtuais, danos reais
A vida em sociedade sempre coexistiu com a burla. Na fábula de Esopo, Prometeu esculpiu Aleteia (a verdade) para que esta fosse capaz de regular o comportamento humano. Tendo de repentinamente ausentar-se, Dolo (o espírito da trapaça), ambicioso, com os dedos sujos moldou uma estátua à semelhança de Aleteia, mas não teve tempo de terminar os pés. Ao retornar à oficina, Prometeu, impressionado com a semelhança, infundiu vida em ambas as esculturas. A imitação de Dolo – Pseudo – era um produto do subterfúgio, que caminhava de forma desordenada.
A mentira tem a perna curta, dizemos, mas na era da vida online, colados ao telemóvel, os “pés” são mais difíceis de visualizar. Partilhamos online informação pessoal, tornando simples, via as novas ferramentas tecnológicas, detetar situações de vulnerabilidade (a morte de um familiar, uma separação, doença…), “cultivar” relações (amorosas ou não) e ludibriar, com promessas de ganhos financeiros. Pseudo chega até nós via redes como o LinkedIn, o Tinder ou WhatsApp. Mas quem é Pseudo no mundo virtual?
Xi Jinping, nomeado, em 2012, secretário-geral do Partido Comunista Chinês, iniciou uma campanha anticorrupção no sistema do Estado, que lhe permitiu não só eliminar opositores políticos, mas também quebrar relações entre os funcionários do Estado e as tríades que dominavam o negócio do jogo em Macau, Hong Kong e Taiwan. Demonstrando enorme resiliência, as tríades transferiram-se para o espaço virtual. Embora inicialmente focadas no mercado chinês, hoje as potenciais vítimas são qualquer pessoa, em qualquer canto do mundo, com um telemóvel.
O negócio sofisticou-se, operando em rede. Existem “empresas” de recrutamento, que fornecem a mão de obra, atraindo para “empregos”, que parecem bem pagos, pessoas do Sudeste Asiático, África e América Latina. Estas pessoas tornam-se os novos escravos, vendidos a “call center”, impedidos de abandonar as instalações e sujeitos a tortura caso a sua performance seja baixa (ou seja, caso se mostrem incapazes de enganar os incautos espalhados pelo mundo). E, finalmente, grupos especializados em branqueamento de capitais.
No século XXI, a par dos narco-Estados, nasceram os Estados cibercrime, como Camboja, Mianmar, Laos. Os recursos dos sindicatos do crime são de tal forma vastos, que capturam o Estado. Pagam a funcionários que facilitam a entrada dos futuros “trabalhadores” e a polícias e agentes do Estado que fecham os olhos aos edifícios, cercados de arame farpado, onde operam dezenas de milhares de pessoas (no Camboja estima-se que 100 mil pessoas trabalhem nestes centros). E se, preferencialmente, estes centros se localizam em regiões remotas da fronteira que separa Mianmar e Laos, a impunidade cresceu e na capital das Filipinas, Manila, a agência anticibercrime opera hoje num complexo de escritórios até há pouco tempo ocupado por uma rede de criminosos. Agentes da autoridade circulam entre a sala de karaoke – onde os chefes se divertiam –, a sala de tortura, o call center e os dormitórios (onde, aliás, ainda permanecem os “trabalhadores” enquanto se tenta distinguir chefes de vítimas de tráfico).
Pseudo multiplicou-se. O combate ao cibercrime tornou-se, por isso, prioritário e exige ação concertada. No entanto, num mundo às avessas, a cooperação internacional tornou-se difícil. As melhores práticas parecem vir de Singapura, onde, nos espaços públicos anúncios advertem para os riscos, nas esquadras os agentes encaminham queixas para um centro, onde autoridades e bancos atuam de forma concertada, para tentar barrar transferências em criptomoedas (o esquema preferencial). O perigo não vem apenas da Ásia, existem esquemas mais simples continuamente a renascer. Os SMS falsos podem ser evitados logo que se imponha um número único e não replicável para entidades críticas (Estado, bancos, fornecedores de energia, correios…) – um processo que se arrasta, mas que em Taiwan já opera, trazendo confiança ao sistema e evitando burlas. E nós, individualmente, devemos abordar o tema com familiares e amigos. São o isolamento e a vergonha que permitem a Pseudo ser tão bem-sucedido.
A mentira tem a perna curta, dizemos, mas na era da vida online, colados ao telemóvel, os “pés” são mais difíceis de visualizar. Partilhamos online informação pessoal, tornando simples, via as novas ferramentas tecnológicas, detetar situações de vulnerabilidade (a morte de um familiar, uma separação, doença…), “cultivar” relações (amorosas ou não) e ludibriar, com promessas de ganhos financeiros. Pseudo chega até nós via redes como o LinkedIn, o Tinder ou WhatsApp. Mas quem é Pseudo no mundo virtual?
Xi Jinping, nomeado, em 2012, secretário-geral do Partido Comunista Chinês, iniciou uma campanha anticorrupção no sistema do Estado, que lhe permitiu não só eliminar opositores políticos, mas também quebrar relações entre os funcionários do Estado e as tríades que dominavam o negócio do jogo em Macau, Hong Kong e Taiwan. Demonstrando enorme resiliência, as tríades transferiram-se para o espaço virtual. Embora inicialmente focadas no mercado chinês, hoje as potenciais vítimas são qualquer pessoa, em qualquer canto do mundo, com um telemóvel.
O negócio sofisticou-se, operando em rede. Existem “empresas” de recrutamento, que fornecem a mão de obra, atraindo para “empregos”, que parecem bem pagos, pessoas do Sudeste Asiático, África e América Latina. Estas pessoas tornam-se os novos escravos, vendidos a “call center”, impedidos de abandonar as instalações e sujeitos a tortura caso a sua performance seja baixa (ou seja, caso se mostrem incapazes de enganar os incautos espalhados pelo mundo). E, finalmente, grupos especializados em branqueamento de capitais.
No século XXI, a par dos narco-Estados, nasceram os Estados cibercrime, como Camboja, Mianmar, Laos. Os recursos dos sindicatos do crime são de tal forma vastos, que capturam o Estado. Pagam a funcionários que facilitam a entrada dos futuros “trabalhadores” e a polícias e agentes do Estado que fecham os olhos aos edifícios, cercados de arame farpado, onde operam dezenas de milhares de pessoas (no Camboja estima-se que 100 mil pessoas trabalhem nestes centros). E se, preferencialmente, estes centros se localizam em regiões remotas da fronteira que separa Mianmar e Laos, a impunidade cresceu e na capital das Filipinas, Manila, a agência anticibercrime opera hoje num complexo de escritórios até há pouco tempo ocupado por uma rede de criminosos. Agentes da autoridade circulam entre a sala de karaoke – onde os chefes se divertiam –, a sala de tortura, o call center e os dormitórios (onde, aliás, ainda permanecem os “trabalhadores” enquanto se tenta distinguir chefes de vítimas de tráfico).
Pseudo multiplicou-se. O combate ao cibercrime tornou-se, por isso, prioritário e exige ação concertada. No entanto, num mundo às avessas, a cooperação internacional tornou-se difícil. As melhores práticas parecem vir de Singapura, onde, nos espaços públicos anúncios advertem para os riscos, nas esquadras os agentes encaminham queixas para um centro, onde autoridades e bancos atuam de forma concertada, para tentar barrar transferências em criptomoedas (o esquema preferencial). O perigo não vem apenas da Ásia, existem esquemas mais simples continuamente a renascer. Os SMS falsos podem ser evitados logo que se imponha um número único e não replicável para entidades críticas (Estado, bancos, fornecedores de energia, correios…) – um processo que se arrasta, mas que em Taiwan já opera, trazendo confiança ao sistema e evitando burlas. E nós, individualmente, devemos abordar o tema com familiares e amigos. São o isolamento e a vergonha que permitem a Pseudo ser tão bem-sucedido.
Chega. Israel está cometendo crimes de guerra
O governo de Israel está atualmente travando uma guerra sem propósito, sem objetivos ou planejamento claro e sem chances de sucesso. Nunca, desde a sua criação, o Estado de Israel travou uma guerra como essa.
Ultradireita avança a agenda da 'nova ordem mundial'
Na ocasião da posse de Donald Trump, em janeiro de 2025, fãs do presidente americano vindos de todas as partes do mundo afluíram a Washington para participar do evento histórico. Entre os presentes, estavam o presidente da Argentina, Javier Milei, e a primeira-ministra da Itália, Giorgia Meloni. Políticos de ultradireita na oposição, como Nigel Farage, do Reino Unido, assim como representantes do partido Alternativa para a Alemanha (AfD), também se vangloriaram por estar entre os convidados.
A direita radical aproveitou o evento para fazer contatos com seus pares pelo mundo todo. Na véspera, figuras como o filho do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o ideólogo-mor de Trump, Steve Bannon, um parlamentar da AfD e vários influenciadores também se encontraram para trocar ideias. Um influenciador de direita da Alemanha inclusive se filmou no encontro enquanto se gabava de ter recebido um convite do embaixador de El Salvador. O movimento tem uma sede de conexões nunca vista antes.
O fato de justamente Donald Trump ter se tornado um ímã para ultranacionalistas de todo o mundo com sua agenda "America First" é um fenômeno por si só – sobretudo porque muitos deles tendem a ser ideólogos antiamericanos. Mas essa aliança global de antiglobalistas é um paradoxo apenas à primeira vista.
Contra a imigração e uma sociedade moderna
"O que une essas redes é a rejeição da migração, o nacionalismo, as imagens da família tradicional e o antiglobalismo", sumariza a professora de sociologia Katrine Fangen, da Universidade de Oslo, na Noruega
"O objetivo dessas redes não é simplesmente lutar por mais influência política. Seu objetivo final é um realinhamento da ordem mundial ideológica global – elas estão lutando pelo nacionalismo e pelo conservadorismo social e contra a democracia liberal."
E a direita radical está aprendendo rapidamente através da troca de experiências. As estratégias e os sucessos num país são logo adotados por outros movimentos, analisa o cientista político Thomas Greven, da Universidade Livre de Berlim. Ele considera que a extensão da rede da direita radical é algo historicamente sem precedentes.
As táticas são descritas em seu livro Das internationale Netz der radikalen Rechten (A rede internacional da direita radical): "Por exemplo, a estratégia de Bannon 'flooding the zone with shit' ["inundar a zona com merda"] é muito bem-sucedida internacionalmente. Nela, o oponente político é constantemente bombardeado com provocações, mentiras, novas ideias e hostilidade", explica Greven. "Essa estratégia de comunicação agora é usada em todos os lugares por atores radicais de direita."
A relação de seus seguidores com a democracia é instrumental: eles precisam dela para chegar ao poder. "O foco é dizer: quem quer que tenha sido eleito deve ser capaz de governar sem barreiras", explica Thomas Greven. Seu termo para isso é "democracia hipermajoritária", ou seja, voltada exclusivamente para supostas maiorias.
"Viktor Orbán, por exemplo, levanta-se e diz: 'Fui eleito com um mandato claro para manter a migração fora da Hungria, e não quero que instituições europeias, tribunais, resistência da sociedade civil ou qualquer mídia financiada por estrangeiros me impeçam de governar'".
Contradições e concessões são anátema para eles. "Os protagonistas da direita radical estão incomodados com o fato de que, devido à crescente legalização, burocratização e supranacionalização, há obstáculos demais essa vontade da maioria. E esta deve se impor numa democracia hipermajoritária."
Em sua luta ideológica, a direita radical também tem muito dinheiro à disposição. Os doadores mais famosos vêm dos EUA: Elon Musk e os irmãos Koch, empresários bilionários que apoiam a luta ideológica. O bilionário da tecnologia Musk, aliás, não se envolve apenas com dinheiro, mas é, ele próprio, um protagonista da direita radical. Em sua plataforma X, ele se entusiasma com a AfD na Alemanha, apoia a direita radical no Reino Unido e critica os partidos liberais.
Mas não são apenas os doadores privados que apoiam as redes de direita. Rússia e China, por exemplo, também são constantemente criticadas por alimentar as redes populistas de direita para desestabilizar as sociedades liberais.
Entretanto o financiamento por parte dos inimigos declarados da direita radical também ganhou importância, como no caso das verbas da própria União Europeia e de democracias liberais. Na Alemanha, por exemplo, o odiado Estado liberal é o doador mais importante da AfD: em 2021, mais de 10 milhões de euros, ou cerca de 45% dos recursos do partido, vieram dos cofres do Estado.
A explicação é que, numa democracia partidária, o Estado apoia o trabalho das diferentes siglas – e o apoio financeiro aumenta conforme o crescimento delas. "Isso permite que os partidos radicais de direita ampliem seu alcance. Além disso, o Parlamento Europeu, por exemplo, lhes oferece um espaço mais ou menos automático para a cooperação internacional, incluindo recursos adicionais que protegem suas redes", observa a socióloga Katrine Fangen.
Neste início de 2025, a estratégia das redes radicais de direita parece estar funcionando: Donald Trump foi reeleito nos EUA, e os partidos populistas de direita continuam a crescer na preferência dos eleitores em países como Alemanha, França, Reino Unido e Áustria.
Sua ascensão é irrefreável? O cientista político Thomas Greven diz que não. Muitos partidos radicais de direita se beneficiariam do fato de nunca terem tido que governar sozinhos, e sua situação de oposicionistas é relativamente confortável. Além disso, seu sucesso encobre as diversas fissuras de movimentos cuja união, muitas vezes, é apenas superficial, explica o acadêmico.
"Se a discordância nas bases quanto aos conteúdos se unir à insatisfação entre o eleitorado em geral, o sucesso da ultradireita pode ser novamente revertido", argumenta Greven. Mas há um pré-requisito, enfatiza o politólogo: "que as instituições democráticas funcionem".
A direita radical aproveitou o evento para fazer contatos com seus pares pelo mundo todo. Na véspera, figuras como o filho do ex-presidente brasileiro Jair Bolsonaro, o ideólogo-mor de Trump, Steve Bannon, um parlamentar da AfD e vários influenciadores também se encontraram para trocar ideias. Um influenciador de direita da Alemanha inclusive se filmou no encontro enquanto se gabava de ter recebido um convite do embaixador de El Salvador. O movimento tem uma sede de conexões nunca vista antes.
O fato de justamente Donald Trump ter se tornado um ímã para ultranacionalistas de todo o mundo com sua agenda "America First" é um fenômeno por si só – sobretudo porque muitos deles tendem a ser ideólogos antiamericanos. Mas essa aliança global de antiglobalistas é um paradoxo apenas à primeira vista.
Contra a imigração e uma sociedade moderna
"O que une essas redes é a rejeição da migração, o nacionalismo, as imagens da família tradicional e o antiglobalismo", sumariza a professora de sociologia Katrine Fangen, da Universidade de Oslo, na Noruega
"O objetivo dessas redes não é simplesmente lutar por mais influência política. Seu objetivo final é um realinhamento da ordem mundial ideológica global – elas estão lutando pelo nacionalismo e pelo conservadorismo social e contra a democracia liberal."
E a direita radical está aprendendo rapidamente através da troca de experiências. As estratégias e os sucessos num país são logo adotados por outros movimentos, analisa o cientista político Thomas Greven, da Universidade Livre de Berlim. Ele considera que a extensão da rede da direita radical é algo historicamente sem precedentes.
As táticas são descritas em seu livro Das internationale Netz der radikalen Rechten (A rede internacional da direita radical): "Por exemplo, a estratégia de Bannon 'flooding the zone with shit' ["inundar a zona com merda"] é muito bem-sucedida internacionalmente. Nela, o oponente político é constantemente bombardeado com provocações, mentiras, novas ideias e hostilidade", explica Greven. "Essa estratégia de comunicação agora é usada em todos os lugares por atores radicais de direita."
A relação de seus seguidores com a democracia é instrumental: eles precisam dela para chegar ao poder. "O foco é dizer: quem quer que tenha sido eleito deve ser capaz de governar sem barreiras", explica Thomas Greven. Seu termo para isso é "democracia hipermajoritária", ou seja, voltada exclusivamente para supostas maiorias.
"Viktor Orbán, por exemplo, levanta-se e diz: 'Fui eleito com um mandato claro para manter a migração fora da Hungria, e não quero que instituições europeias, tribunais, resistência da sociedade civil ou qualquer mídia financiada por estrangeiros me impeçam de governar'".
Contradições e concessões são anátema para eles. "Os protagonistas da direita radical estão incomodados com o fato de que, devido à crescente legalização, burocratização e supranacionalização, há obstáculos demais essa vontade da maioria. E esta deve se impor numa democracia hipermajoritária."
Em sua luta ideológica, a direita radical também tem muito dinheiro à disposição. Os doadores mais famosos vêm dos EUA: Elon Musk e os irmãos Koch, empresários bilionários que apoiam a luta ideológica. O bilionário da tecnologia Musk, aliás, não se envolve apenas com dinheiro, mas é, ele próprio, um protagonista da direita radical. Em sua plataforma X, ele se entusiasma com a AfD na Alemanha, apoia a direita radical no Reino Unido e critica os partidos liberais.
Mas não são apenas os doadores privados que apoiam as redes de direita. Rússia e China, por exemplo, também são constantemente criticadas por alimentar as redes populistas de direita para desestabilizar as sociedades liberais.
Entretanto o financiamento por parte dos inimigos declarados da direita radical também ganhou importância, como no caso das verbas da própria União Europeia e de democracias liberais. Na Alemanha, por exemplo, o odiado Estado liberal é o doador mais importante da AfD: em 2021, mais de 10 milhões de euros, ou cerca de 45% dos recursos do partido, vieram dos cofres do Estado.
A explicação é que, numa democracia partidária, o Estado apoia o trabalho das diferentes siglas – e o apoio financeiro aumenta conforme o crescimento delas. "Isso permite que os partidos radicais de direita ampliem seu alcance. Além disso, o Parlamento Europeu, por exemplo, lhes oferece um espaço mais ou menos automático para a cooperação internacional, incluindo recursos adicionais que protegem suas redes", observa a socióloga Katrine Fangen.
Neste início de 2025, a estratégia das redes radicais de direita parece estar funcionando: Donald Trump foi reeleito nos EUA, e os partidos populistas de direita continuam a crescer na preferência dos eleitores em países como Alemanha, França, Reino Unido e Áustria.
Sua ascensão é irrefreável? O cientista político Thomas Greven diz que não. Muitos partidos radicais de direita se beneficiariam do fato de nunca terem tido que governar sozinhos, e sua situação de oposicionistas é relativamente confortável. Além disso, seu sucesso encobre as diversas fissuras de movimentos cuja união, muitas vezes, é apenas superficial, explica o acadêmico.
"Se a discordância nas bases quanto aos conteúdos se unir à insatisfação entre o eleitorado em geral, o sucesso da ultradireita pode ser novamente revertido", argumenta Greven. Mas há um pré-requisito, enfatiza o politólogo: "que as instituições democráticas funcionem".
O fascista que habita em nós
Em março de 2023, o psicanalista italiano Massimo Recalcati publicou no jornal La Stampa um texto sob o título Aquele homem fascista que vive em nós. Em seu primeiro parágrafo recorda um fato interessante cabível de análise e discussão: “Um grande filósofo como Gilles Deleuze acreditava que a premissa básica da luta antifascista tinha como primeira e imprescindível condição a luta contra o fascista que cada um de nós carrega dentro de si.”. A pergunta que fica: será que carregamos, por mais engajados na causa antifascista, um germe de autoritarismo capaz de reproduzir inconscientemente ideais fascistas?
Em primeiro lugar, a postura revela o traço inerente ao fascista: intolerância ao diferente; convicções dogmáticas e absolutas sobre temas políticos e religiosos; a justificação da violência; o ódio gratuito e ilimitado; a censura e interdição da opinião alheia e da liberdade de cada um e a crítica violenta contra qualquer objeção ou discordância trazida. Cada um desses traços revela um complexo de superioridade que se assemelha a de um ser onipotente e onisciente, todavia pautado numa má formação da própria consciência de si. O fascista, por si, reproduz um sinal de emergência de sua escassez existencial, fazendo da subjetividade do outro um motivo para ele agir violentamente, reproduzindo esse movimento como autodefesa de suas fraquezas e más formações. Por isso, costumamos dizer repetidamente: o intolerante reproduz no outro aquilo que mais incomoda a si mesmo. Não deixa de ser uma verdade quase dogmática.
Tendemos a esse modus operandi, sobretudo, quando deixamos de observar a realidade total da vida e das coisas para focar nos impulsos mais radicais que passam pela nossa cabeça, encontrando forças no respaldo de outros que legitimam tais selvagerias. Por conta disso, os movimentos que mais ganham adeptos são os mais radicais. A cultura do patrulhamento mina o surgimento de ideias e correntes que lutam por um mundo mais igualitário, livre e fraterno, sendo por conta disso um mal que, aos poucos, galga terreno para além dos muros do extremismo autoritário: ela permeia nosso modo de observar o diferente.
A tentação de reprimir o outro, nas palavras de Massimo Recalcati, se fundamenta internamente no próprio ser humano, constituído naturalmente por sua inclinação à censura do diferente como autodefesa: “Por isso Deleuze nos convidava a presidir nosso fórum interno de forma verdadeiramente antifascista. Nunca é uma tarefa fácil porque, como recordava Umberto Eco, o fascismo não é apenas um produto histórico-ideológico da política, mas também uma tentação que anima eternamente a vida humana”. O próprio filósofo Umberto Eco apontava o poder do avanço das redes sociais como motor que dissemina e dá força às ideologias perniciosas, quando estas permitem que um sujeito qualquer, outrora sem importância e que não deveria ter crédito em suas palavras, obtém respaldo e adeptos em seus devaneios mitológicos.
O psicanalista italiano recorda que “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio são claramente estranhos ao espírito da democracia”. Evidentemente, grupos que defendem uma sociedade engessada ou paralisada em concepções arcaicas ou fundamentalistas são mais propícios a aderirem tais prerrogativas, entretanto o psicanalista nos alerta que nem sempre são eles seus únicos reprodutores. Em outras palavras, não se deve combater fazendo uso dos mesmos instrumentos utilizados por movimentos que portam a bandeira da intolerância e do autoritarismo: “Em um estado democrático, nunca se deveria legitimar um uso antifascista da violência - nem mesmo aquela violência verbal que, como ensina a psicanálise, nunca é apenas verbal – pois toda forma política de violência permanece sempre fascista em si mesma, pois vai contra a lei democrática da palavra”.
Não utilizar dos mesmos recursos violentos, em primeiro momento, parece contraditório ou até mesmo sinal de fraqueza. Alguns justificariam o mesmo princípio de autodefesa fundamentado, por exemplo, no “paradoxo da tolerância”, que permeia uma ideia de tolerância que, se levada ao uso irrestrito, levaria ao desaparecimento da mesma. O filósofo Karl Popper nos alertou que “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e com eles a própria tolerância.”. Todavia, o psicanalista italiano nos alerta o fato de que ao revidar através dos mesmos instrumentos utilizados pelos agressores, impulsionamos uma tendência diversa do espírito democrático, ou seja, contribuímos na contaminação totalitária, mesmo que a intenção seja totalmente diferente. Revidar a violência, em suma, nos torna semelhantes, segundo o psicanalista italiano, aos nossos algozes ideológicos e políticos, mas a primeira tentação surge na utilização desse meio, isso é evidente. O perigo reside, sobretudo, na propensão e tentação em nos tornarmos os algozes dos nossos algozes, ou parafraseando o filósofo brasileiro Paulo Freire, da posição de oprimido passar ao posto de opressor.
Os sinais que evidenciam o espírito fascista estão por toda parte, são fáceis de serem identificadas. Quais são esses sinais? Recalcati afirma: “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio”. Encontramos, então, a partir dessas palavras, um paradoxo interessante para analisarmos: mesmo engajados num espírito antifascista estão determinados movimentos ou sujeitos, ainda existe a probabilidade em reproduzir o totalitarismo extremista. É uma tentação fascista. E isso não se reduz aos espectros políticos. Por isso, diante da realidade atual, onde a democracia liberal se conquistou terrenos em quase todo o mundo, até mesmo em sua terra natal, o psicanalista italiano nos indaga: “em tempos de democracia já consolidada em nosso país há quase 80 anos, podemos tentar ser mais intransigentes com nosso fascismo interno? Podemos tentar rejeitar a tentação autoritária que atravessa cada um de nós e muitas vezes encontrou justamente numa determinada cultura de esquerda considerada antifascista o seu terreno fértil?”
Como Wilhelm Reich descreve no início de sua obra Psicologia de Massas do Fascismo, o verdadeiro problema não reside no motivo pela qual as massas suportam passivamente a opressão do fascismo, mas na tendência em desejá-lo ardentemente. Esse desejo pode desvelar uma profunda crise de identidade na nossa sociedade contemporânea, a de tentamos combater o mal nos utilizando das mesmas armas e artifícios ou, em outras palavras, combatermos o fascismo incorporando elementos fascistas, só mudando a roupagem e o perfume.
Assim, Massimo Recalcati procura expor uma tentação de uma pequena parcela da própria esquerda: incorporar um protótipo fascista no intuito de combater o mesmo. No final das contas, apenas saberemos quem vencerá no quesito “quem é mais fascista?”, sem uma solução profícua nas verdadeiras demandas de nossa democracia. Em outras palavras, não se combate o extremismo com mais extremismo, da mesma forma que não se deve combater a violência com mais violência. Esse desejo, afirma o psicanalista italiano, “expressa uma tendência própria da realidade humana: livrar-se da ansiedade da liberdade, preferir a consistência das correntes e da ditadura em vez da aleatoriedade da vida, buscar refúgio na ‘cimentificação’ da própria identidade em vez de se arriscar à abertura”. O novo amedronta. Somos medrosos em arriscar, em ouvir aquilo que diverge de nossas opiniões, em estabelecer nossos limites. Por isso maquiamos todos esses medos e nos tornamos seus “extremos”, inclusive na política, reproduzindo a ameaça daquilo que nos ameaça. Apenas um mecanismo de autodefesa, creio eu.
Por fim, faço memória ao ex-deputado socialista italiano Giacomo Matteotti, nascido em maio, morto por Mussolini após proferir um longo e histórico discurso no Parlamento Italiano em 1924, que não silenciou diante do avanço fascista. Escolheu as vias democráticas para fazer oposição à ascensão fascista, sem medo das suas ameaças. Entrou para história e ficou marcado como importante líder antifascista. Dentre suas contribuições na tribuna, expôs a inércia de alguns grupos de esquerda, que acabavam colaborando indiretamente para o fascismo ganhar força, por não agir adequadamente, ou seja, pensando mais em seus projetos particulares do que lutando contra uma ameaça em comum. A desunião das esquerdas, naquele momento, colaborava indiretamente para a proliferação do extremismo fascista.
É importante não confundir tendências revolucionárias com reacionárias. Se a sociedade se tornar cada vez mais reativa, sem dúvida o terreno ficará mais propício em desvelar o fascista que habita em nós.
Railson Barboza
Em primeiro lugar, a postura revela o traço inerente ao fascista: intolerância ao diferente; convicções dogmáticas e absolutas sobre temas políticos e religiosos; a justificação da violência; o ódio gratuito e ilimitado; a censura e interdição da opinião alheia e da liberdade de cada um e a crítica violenta contra qualquer objeção ou discordância trazida. Cada um desses traços revela um complexo de superioridade que se assemelha a de um ser onipotente e onisciente, todavia pautado numa má formação da própria consciência de si. O fascista, por si, reproduz um sinal de emergência de sua escassez existencial, fazendo da subjetividade do outro um motivo para ele agir violentamente, reproduzindo esse movimento como autodefesa de suas fraquezas e más formações. Por isso, costumamos dizer repetidamente: o intolerante reproduz no outro aquilo que mais incomoda a si mesmo. Não deixa de ser uma verdade quase dogmática.
Tendemos a esse modus operandi, sobretudo, quando deixamos de observar a realidade total da vida e das coisas para focar nos impulsos mais radicais que passam pela nossa cabeça, encontrando forças no respaldo de outros que legitimam tais selvagerias. Por conta disso, os movimentos que mais ganham adeptos são os mais radicais. A cultura do patrulhamento mina o surgimento de ideias e correntes que lutam por um mundo mais igualitário, livre e fraterno, sendo por conta disso um mal que, aos poucos, galga terreno para além dos muros do extremismo autoritário: ela permeia nosso modo de observar o diferente.
A tentação de reprimir o outro, nas palavras de Massimo Recalcati, se fundamenta internamente no próprio ser humano, constituído naturalmente por sua inclinação à censura do diferente como autodefesa: “Por isso Deleuze nos convidava a presidir nosso fórum interno de forma verdadeiramente antifascista. Nunca é uma tarefa fácil porque, como recordava Umberto Eco, o fascismo não é apenas um produto histórico-ideológico da política, mas também uma tentação que anima eternamente a vida humana”. O próprio filósofo Umberto Eco apontava o poder do avanço das redes sociais como motor que dissemina e dá força às ideologias perniciosas, quando estas permitem que um sujeito qualquer, outrora sem importância e que não deveria ter crédito em suas palavras, obtém respaldo e adeptos em seus devaneios mitológicos.
O psicanalista italiano recorda que “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio são claramente estranhos ao espírito da democracia”. Evidentemente, grupos que defendem uma sociedade engessada ou paralisada em concepções arcaicas ou fundamentalistas são mais propícios a aderirem tais prerrogativas, entretanto o psicanalista nos alerta que nem sempre são eles seus únicos reprodutores. Em outras palavras, não se deve combater fazendo uso dos mesmos instrumentos utilizados por movimentos que portam a bandeira da intolerância e do autoritarismo: “Em um estado democrático, nunca se deveria legitimar um uso antifascista da violência - nem mesmo aquela violência verbal que, como ensina a psicanálise, nunca é apenas verbal – pois toda forma política de violência permanece sempre fascista em si mesma, pois vai contra a lei democrática da palavra”.
Não utilizar dos mesmos recursos violentos, em primeiro momento, parece contraditório ou até mesmo sinal de fraqueza. Alguns justificariam o mesmo princípio de autodefesa fundamentado, por exemplo, no “paradoxo da tolerância”, que permeia uma ideia de tolerância que, se levada ao uso irrestrito, levaria ao desaparecimento da mesma. O filósofo Karl Popper nos alertou que “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e com eles a própria tolerância.”. Todavia, o psicanalista italiano nos alerta o fato de que ao revidar através dos mesmos instrumentos utilizados pelos agressores, impulsionamos uma tendência diversa do espírito democrático, ou seja, contribuímos na contaminação totalitária, mesmo que a intenção seja totalmente diferente. Revidar a violência, em suma, nos torna semelhantes, segundo o psicanalista italiano, aos nossos algozes ideológicos e políticos, mas a primeira tentação surge na utilização desse meio, isso é evidente. O perigo reside, sobretudo, na propensão e tentação em nos tornarmos os algozes dos nossos algozes, ou parafraseando o filósofo brasileiro Paulo Freire, da posição de oprimido passar ao posto de opressor.
Os sinais que evidenciam o espírito fascista estão por toda parte, são fáceis de serem identificadas. Quais são esses sinais? Recalcati afirma: “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio”. Encontramos, então, a partir dessas palavras, um paradoxo interessante para analisarmos: mesmo engajados num espírito antifascista estão determinados movimentos ou sujeitos, ainda existe a probabilidade em reproduzir o totalitarismo extremista. É uma tentação fascista. E isso não se reduz aos espectros políticos. Por isso, diante da realidade atual, onde a democracia liberal se conquistou terrenos em quase todo o mundo, até mesmo em sua terra natal, o psicanalista italiano nos indaga: “em tempos de democracia já consolidada em nosso país há quase 80 anos, podemos tentar ser mais intransigentes com nosso fascismo interno? Podemos tentar rejeitar a tentação autoritária que atravessa cada um de nós e muitas vezes encontrou justamente numa determinada cultura de esquerda considerada antifascista o seu terreno fértil?”
Como Wilhelm Reich descreve no início de sua obra Psicologia de Massas do Fascismo, o verdadeiro problema não reside no motivo pela qual as massas suportam passivamente a opressão do fascismo, mas na tendência em desejá-lo ardentemente. Esse desejo pode desvelar uma profunda crise de identidade na nossa sociedade contemporânea, a de tentamos combater o mal nos utilizando das mesmas armas e artifícios ou, em outras palavras, combatermos o fascismo incorporando elementos fascistas, só mudando a roupagem e o perfume.
Assim, Massimo Recalcati procura expor uma tentação de uma pequena parcela da própria esquerda: incorporar um protótipo fascista no intuito de combater o mesmo. No final das contas, apenas saberemos quem vencerá no quesito “quem é mais fascista?”, sem uma solução profícua nas verdadeiras demandas de nossa democracia. Em outras palavras, não se combate o extremismo com mais extremismo, da mesma forma que não se deve combater a violência com mais violência. Esse desejo, afirma o psicanalista italiano, “expressa uma tendência própria da realidade humana: livrar-se da ansiedade da liberdade, preferir a consistência das correntes e da ditadura em vez da aleatoriedade da vida, buscar refúgio na ‘cimentificação’ da própria identidade em vez de se arriscar à abertura”. O novo amedronta. Somos medrosos em arriscar, em ouvir aquilo que diverge de nossas opiniões, em estabelecer nossos limites. Por isso maquiamos todos esses medos e nos tornamos seus “extremos”, inclusive na política, reproduzindo a ameaça daquilo que nos ameaça. Apenas um mecanismo de autodefesa, creio eu.
Por fim, faço memória ao ex-deputado socialista italiano Giacomo Matteotti, nascido em maio, morto por Mussolini após proferir um longo e histórico discurso no Parlamento Italiano em 1924, que não silenciou diante do avanço fascista. Escolheu as vias democráticas para fazer oposição à ascensão fascista, sem medo das suas ameaças. Entrou para história e ficou marcado como importante líder antifascista. Dentre suas contribuições na tribuna, expôs a inércia de alguns grupos de esquerda, que acabavam colaborando indiretamente para o fascismo ganhar força, por não agir adequadamente, ou seja, pensando mais em seus projetos particulares do que lutando contra uma ameaça em comum. A desunião das esquerdas, naquele momento, colaborava indiretamente para a proliferação do extremismo fascista.
É importante não confundir tendências revolucionárias com reacionárias. Se a sociedade se tornar cada vez mais reativa, sem dúvida o terreno ficará mais propício em desvelar o fascista que habita em nós.
Railson Barboza
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