Em primeiro lugar, a postura revela o traço inerente ao fascista: intolerância ao diferente; convicções dogmáticas e absolutas sobre temas políticos e religiosos; a justificação da violência; o ódio gratuito e ilimitado; a censura e interdição da opinião alheia e da liberdade de cada um e a crítica violenta contra qualquer objeção ou discordância trazida. Cada um desses traços revela um complexo de superioridade que se assemelha a de um ser onipotente e onisciente, todavia pautado numa má formação da própria consciência de si. O fascista, por si, reproduz um sinal de emergência de sua escassez existencial, fazendo da subjetividade do outro um motivo para ele agir violentamente, reproduzindo esse movimento como autodefesa de suas fraquezas e más formações. Por isso, costumamos dizer repetidamente: o intolerante reproduz no outro aquilo que mais incomoda a si mesmo. Não deixa de ser uma verdade quase dogmática.
Tendemos a esse modus operandi, sobretudo, quando deixamos de observar a realidade total da vida e das coisas para focar nos impulsos mais radicais que passam pela nossa cabeça, encontrando forças no respaldo de outros que legitimam tais selvagerias. Por conta disso, os movimentos que mais ganham adeptos são os mais radicais. A cultura do patrulhamento mina o surgimento de ideias e correntes que lutam por um mundo mais igualitário, livre e fraterno, sendo por conta disso um mal que, aos poucos, galga terreno para além dos muros do extremismo autoritário: ela permeia nosso modo de observar o diferente.
A tentação de reprimir o outro, nas palavras de Massimo Recalcati, se fundamenta internamente no próprio ser humano, constituído naturalmente por sua inclinação à censura do diferente como autodefesa: “Por isso Deleuze nos convidava a presidir nosso fórum interno de forma verdadeiramente antifascista. Nunca é uma tarefa fácil porque, como recordava Umberto Eco, o fascismo não é apenas um produto histórico-ideológico da política, mas também uma tentação que anima eternamente a vida humana”. O próprio filósofo Umberto Eco apontava o poder do avanço das redes sociais como motor que dissemina e dá força às ideologias perniciosas, quando estas permitem que um sujeito qualquer, outrora sem importância e que não deveria ter crédito em suas palavras, obtém respaldo e adeptos em seus devaneios mitológicos.
O psicanalista italiano recorda que “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio são claramente estranhos ao espírito da democracia”. Evidentemente, grupos que defendem uma sociedade engessada ou paralisada em concepções arcaicas ou fundamentalistas são mais propícios a aderirem tais prerrogativas, entretanto o psicanalista nos alerta que nem sempre são eles seus únicos reprodutores. Em outras palavras, não se deve combater fazendo uso dos mesmos instrumentos utilizados por movimentos que portam a bandeira da intolerância e do autoritarismo: “Em um estado democrático, nunca se deveria legitimar um uso antifascista da violência - nem mesmo aquela violência verbal que, como ensina a psicanálise, nunca é apenas verbal – pois toda forma política de violência permanece sempre fascista em si mesma, pois vai contra a lei democrática da palavra”.
Não utilizar dos mesmos recursos violentos, em primeiro momento, parece contraditório ou até mesmo sinal de fraqueza. Alguns justificariam o mesmo princípio de autodefesa fundamentado, por exemplo, no “paradoxo da tolerância”, que permeia uma ideia de tolerância que, se levada ao uso irrestrito, levaria ao desaparecimento da mesma. O filósofo Karl Popper nos alertou que “A tolerância ilimitada leva ao desaparecimento da tolerância. Se estendermos a tolerância ilimitada até mesmo àqueles que são intolerantes, se não estivermos preparados para defender uma sociedade tolerante contra a investida dos intolerantes, então os tolerantes serão destruídos, e com eles a própria tolerância.”. Todavia, o psicanalista italiano nos alerta o fato de que ao revidar através dos mesmos instrumentos utilizados pelos agressores, impulsionamos uma tendência diversa do espírito democrático, ou seja, contribuímos na contaminação totalitária, mesmo que a intenção seja totalmente diferente. Revidar a violência, em suma, nos torna semelhantes, segundo o psicanalista italiano, aos nossos algozes ideológicos e políticos, mas a primeira tentação surge na utilização desse meio, isso é evidente. O perigo reside, sobretudo, na propensão e tentação em nos tornarmos os algozes dos nossos algozes, ou parafraseando o filósofo brasileiro Paulo Freire, da posição de oprimido passar ao posto de opressor.
Os sinais que evidenciam o espírito fascista estão por toda parte, são fáceis de serem identificadas. Quais são esses sinais? Recalcati afirma: “a agressão organizada, o uso ideológico da violência, os vandalismos e a exibição de símbolos de ódio”. Encontramos, então, a partir dessas palavras, um paradoxo interessante para analisarmos: mesmo engajados num espírito antifascista estão determinados movimentos ou sujeitos, ainda existe a probabilidade em reproduzir o totalitarismo extremista. É uma tentação fascista. E isso não se reduz aos espectros políticos. Por isso, diante da realidade atual, onde a democracia liberal se conquistou terrenos em quase todo o mundo, até mesmo em sua terra natal, o psicanalista italiano nos indaga: “em tempos de democracia já consolidada em nosso país há quase 80 anos, podemos tentar ser mais intransigentes com nosso fascismo interno? Podemos tentar rejeitar a tentação autoritária que atravessa cada um de nós e muitas vezes encontrou justamente numa determinada cultura de esquerda considerada antifascista o seu terreno fértil?”
Como Wilhelm Reich descreve no início de sua obra Psicologia de Massas do Fascismo, o verdadeiro problema não reside no motivo pela qual as massas suportam passivamente a opressão do fascismo, mas na tendência em desejá-lo ardentemente. Esse desejo pode desvelar uma profunda crise de identidade na nossa sociedade contemporânea, a de tentamos combater o mal nos utilizando das mesmas armas e artifícios ou, em outras palavras, combatermos o fascismo incorporando elementos fascistas, só mudando a roupagem e o perfume.
Assim, Massimo Recalcati procura expor uma tentação de uma pequena parcela da própria esquerda: incorporar um protótipo fascista no intuito de combater o mesmo. No final das contas, apenas saberemos quem vencerá no quesito “quem é mais fascista?”, sem uma solução profícua nas verdadeiras demandas de nossa democracia. Em outras palavras, não se combate o extremismo com mais extremismo, da mesma forma que não se deve combater a violência com mais violência. Esse desejo, afirma o psicanalista italiano, “expressa uma tendência própria da realidade humana: livrar-se da ansiedade da liberdade, preferir a consistência das correntes e da ditadura em vez da aleatoriedade da vida, buscar refúgio na ‘cimentificação’ da própria identidade em vez de se arriscar à abertura”. O novo amedronta. Somos medrosos em arriscar, em ouvir aquilo que diverge de nossas opiniões, em estabelecer nossos limites. Por isso maquiamos todos esses medos e nos tornamos seus “extremos”, inclusive na política, reproduzindo a ameaça daquilo que nos ameaça. Apenas um mecanismo de autodefesa, creio eu.
Por fim, faço memória ao ex-deputado socialista italiano Giacomo Matteotti, nascido em maio, morto por Mussolini após proferir um longo e histórico discurso no Parlamento Italiano em 1924, que não silenciou diante do avanço fascista. Escolheu as vias democráticas para fazer oposição à ascensão fascista, sem medo das suas ameaças. Entrou para história e ficou marcado como importante líder antifascista. Dentre suas contribuições na tribuna, expôs a inércia de alguns grupos de esquerda, que acabavam colaborando indiretamente para o fascismo ganhar força, por não agir adequadamente, ou seja, pensando mais em seus projetos particulares do que lutando contra uma ameaça em comum. A desunião das esquerdas, naquele momento, colaborava indiretamente para a proliferação do extremismo fascista.
É importante não confundir tendências revolucionárias com reacionárias. Se a sociedade se tornar cada vez mais reativa, sem dúvida o terreno ficará mais propício em desvelar o fascista que habita em nós.
Railson Barboza

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