quinta-feira, 29 de agosto de 2024
Ressentidos querem ir à forra contra o mundo
Na pena de Shakespeare, Ricardo III era maldade pura, ambicioso sem limites, capaz de qualquer coisa pelo poder. De feiura profunda, assustava quem lhe aparecesse pela frente. Julgava-se um injustiçado e, como tal, autorizado a cometer o mal. A matança por ele promovida era o exercício de uma espécie de direito à reparação, a que, possesso, ele julgava fazer jus: uma rasteira na crueldade do destino, que lhe condenara à feiura chocante e brutal.
“Ricardo III”, de Shakespeare — peça analisada por Freud em ensaio conhecido —, põe em evidência o direito a ser vilão em contexto de supostas injustiças. O mundo passa a ser devedor, culpado, de modo que uma pessoa pretensamente injustiçada pelo destino se sente como que autorizada a ser injusta, transformando a vida dos outros na tragédia que é sua própria vida.
Trazendo a ideia para o século XXI, a mesma atitude de Ricardo III perante a vida, de cobrança intransigente, pode ser encontrada no discurso da extrema direita, que vem assolando o mundo. O mundo — o que, evidente, inclui coisas tão importantes como democracia ou meio ambiente — deve ser implodido, numa atitude de vingança, na medida em que o próprio mundo não teria dado voz e vez a toda uma classe, que sempre vivera nas sombras. É a desforra dos ressentidos — o momento de glória dos “cobradores”, daqueles que se guiam pelo sentimento de vingança, cobrando do mundo, dia e noite, reparação a que julgam ter direito.
Interessante pensar nisso como resultado, em parte, da dissociação, cada vez maior, entre política e ideologia. Política pressupõe necessariamente antagonismo, conflito de ideias. A política democrática precisa ter ascendência real sobre desejos e fantasias. Como identifica Chantal Mouffe, quando a divisão social não pode se manifestar em razão da pouca clareza da linha divisória entre esquerda e direita, as paixões não podem ser mobilizadas na direção dos objetivos democráticos, e os antagonismos assumem formas que podem pôr em risco as instituições democráticas.
O que se vê hoje é a substituição da divisão entre esquerda e direita pelo antagonismo baseado na divisão do povo contra o “establishment”. O debate político descambou para o campo moral, onde, na medida em que o “bem” se contrapõe ao “mal”, não há adversário, mas inimigo a ser eliminado. O desafio, portanto, é a construção de um espaço onde o pluralismo seja respeitado e onde, sobretudo, haja visões conflituosas de mundo, capazes de gerar identificação e mobilização.
Se a construção desse espaço é um projeto de longo prazo, o que temos de imediato são as instituições, que exercem papel relevantíssimo, já que contribuem para frear o ânimo destrutivo dos seres humanos. No Brasil, é preciso ressaltar — e louvar — a atuação do STF na manutenção da nossa democracia. É ele quem, em última instância, vem dizendo “não”. Acontece que, para continuar exercendo sua função, o Supremo precisará cada vez mais de capital político, o que depende, em grande parte, da sua capacidade de se fazer respeitar. Do contrário, se não restar nem mesmo o STF, estarão dadas as condições para os “cobradores” fazerem a festa.
“Ricardo III”, de Shakespeare — peça analisada por Freud em ensaio conhecido —, põe em evidência o direito a ser vilão em contexto de supostas injustiças. O mundo passa a ser devedor, culpado, de modo que uma pessoa pretensamente injustiçada pelo destino se sente como que autorizada a ser injusta, transformando a vida dos outros na tragédia que é sua própria vida.
Trazendo a ideia para o século XXI, a mesma atitude de Ricardo III perante a vida, de cobrança intransigente, pode ser encontrada no discurso da extrema direita, que vem assolando o mundo. O mundo — o que, evidente, inclui coisas tão importantes como democracia ou meio ambiente — deve ser implodido, numa atitude de vingança, na medida em que o próprio mundo não teria dado voz e vez a toda uma classe, que sempre vivera nas sombras. É a desforra dos ressentidos — o momento de glória dos “cobradores”, daqueles que se guiam pelo sentimento de vingança, cobrando do mundo, dia e noite, reparação a que julgam ter direito.
Interessante pensar nisso como resultado, em parte, da dissociação, cada vez maior, entre política e ideologia. Política pressupõe necessariamente antagonismo, conflito de ideias. A política democrática precisa ter ascendência real sobre desejos e fantasias. Como identifica Chantal Mouffe, quando a divisão social não pode se manifestar em razão da pouca clareza da linha divisória entre esquerda e direita, as paixões não podem ser mobilizadas na direção dos objetivos democráticos, e os antagonismos assumem formas que podem pôr em risco as instituições democráticas.
O que se vê hoje é a substituição da divisão entre esquerda e direita pelo antagonismo baseado na divisão do povo contra o “establishment”. O debate político descambou para o campo moral, onde, na medida em que o “bem” se contrapõe ao “mal”, não há adversário, mas inimigo a ser eliminado. O desafio, portanto, é a construção de um espaço onde o pluralismo seja respeitado e onde, sobretudo, haja visões conflituosas de mundo, capazes de gerar identificação e mobilização.
Se a construção desse espaço é um projeto de longo prazo, o que temos de imediato são as instituições, que exercem papel relevantíssimo, já que contribuem para frear o ânimo destrutivo dos seres humanos. No Brasil, é preciso ressaltar — e louvar — a atuação do STF na manutenção da nossa democracia. É ele quem, em última instância, vem dizendo “não”. Acontece que, para continuar exercendo sua função, o Supremo precisará cada vez mais de capital político, o que depende, em grande parte, da sua capacidade de se fazer respeitar. Do contrário, se não restar nem mesmo o STF, estarão dadas as condições para os “cobradores” fazerem a festa.
'Somos neutros'
Os banqueiros da grande bancaria do mundo, que praticam o terrorismo do dinheiro, podem mais que os reis e os marechais e mais que o próprio Papa de Roma. Eles jamais sujam as mãos. Não matam ninguém: se limitam a aplaudir o espetáculo.
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:
— Somos neutros — dizem.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"
Seus funcionários, os tecnocratas internacionais, mandam em nossos países: eles não são presidentes, nem ministros, nem foram eleitos em nenhuma eleição, mas decidem o nível dos salários e do gasto público, os investimentos e desinvestimentos, os preços, os impostos, os lucros, os subsídios, a hora do nascer do sol e a frequência das chuvas.
Não cuidam, em troca, dos cárceres, nem das câmaras de tormento, nem dos campos de concentração, nem dos centros de extermínio, embora nesses lugares ocorram as inevitáveis consequências de seus atos.
Os tecnocratas reivindicam o privilégio da irresponsabilidade:
— Somos neutros — dizem.
Eduardo Galeano, "O livro dos abraços"
Empresários entre o horror e o inevitável em São Paulo
Sondado por um amigo comum para uma conversa com Pablo Marçal, um banqueiro despistou. “Cê tá louco? Ele vai sair por aí dizendo que falou comigo”. Um grande investidor paulistano, com negócios imobiliários em Goiás, de onde Marçal foi exportado para São Paulo, recebeu a mesma sondagem e caiu fora.
No meio empresarial e financeiro, este tem sido o comportamento padrão em relação ao candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo. Pelo menos até 6 de outubro. Num segundo turno contra Guilherme Boulos (Psol), cenário no qual a pesquisa Quaest desta quarta sugere um rigoroso empate, a coisa muda de figura.
O horror cede lugar ao inevitável. Com PCC, com tudo. Em dois grupos diferentes de WhatsApp de investidores, a vitória do candidato do Psol aparece como a única situação que os levaria a optar por Marçal, como um dia o fizeram, de maneira menos titubeante, por Jair Bolsonaro contra o lulismo.
Entre aqueles 11 homens brancos, regados a Rosso di Montalcino 2019 - Biondi Santi, havia um de fora da bolha, José Janguiê Diniz, fundador do Ser Educacional. Um dos grupos que mais se expandiram com o Fies e o Prouni dos governos petistas, abriu capital na B3. Janguiê joga em todas as posições.
Estreitou relações com administrações de centro-esquerda, como a Prefeitura do Recife, com a qual tem parceria de formação profissional, e comprou, por R$ 27,5 milhões, no leilão da massa falida do Banco Santos, a mansão do Morumbi, zona sul de São Paulo, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira. Com os cotovelos sobre a mesa, Janguiê gravou mensagem de apoio a Marçal, assim como os demais comensais, em vídeo que circula nas redes sociais em que todos fazem o “M” com os dedos apontados para baixo.
Não é o único de fora da bolha. Na lista de doadores oficiais da campanha de Marçal, está Helio Seibel, da HS Investimentos, com participações em grandes empresas do país, como a Dexco (Duratex, Deca, Hydra), Leo Madeiras, Loggi e Apolo Energia.
No registro oficial, Seibel doou R$ 100 mil, o mesmo que o empresário goiano Helvio Paulo Ferro Filho. Cada um deles doou tanto para Marçal quanto Arminio Fraga o fez para a candidata do PSB, Tabata Amaral. Marçal arrecadou, até o momento, R$ 944 mil, quatro vezes mais que Tabata. Dos cinco primeiros colocados nas pesquisas, são os únicos com registro de doações no TSE.
A lista de mais de 1 mil doadores de Marçal, com valores de R$ 500 a R$ 1 mil, é um cartão de visita para o discurso do empreendedorismo que entusiasma dois simpatizantes, Rafael Ferri e Tallis Gomes.
Ferri ganhou fama ao colocar uma escultura de Paulo Guedes na entrada da empresa da qual era sócio, a TC, na avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo. Depois de vender sua participação nesta empresa, abriu uma assessoria de investimentos, a GTF Capital, que presta consultoria patrimonial a clientes da corretora Genial. Já Gomes, fundador da Easy Taxi e da Singu, empresa de beleza que vendeu para a Natura, hoje dirige a G4 Educação.
Não foram esses empresários que levaram à sua arrancada. Mais importante foi o impulsionamento cruzado de cortes de seus vídeos, desrespeitando a lei eleitoral, como denunciado - e acatado - pela Justiça Eleitoral. E, ainda, trapaças como aquela contada por Ana Luiza Albuquerque, Eduardo Escolese e Flávio Ferreira, da “Folha de S.Paulo”, em que Marçal se valeu de um homônimo de Guilherme Boulos para disseminar a associação que fez entre o candidato e a cocaína.
O que esta rede de pequenos doadores mostra é que Marçal tem nadado de braçada no empreendedorismo sem ser acossado por concorrentes. Um empresário que colaborou com Boulos chegou a sugerir uma incubadora de startups, com apoio da prefeitura, que negociaria convênio com universidades, forneceria água, luz, internet e isentaria os impostos municipais. Até uma parceria com o pé-de-meia, programa federal de bolsas para o ensino médio, poderia rolar. A proposta ficou no ar.
Além da ausência de concorrentes no tema, joga a favor de Marçal o discurso de que as ações contra sua candidatura podem vir a prejudicar o mercado digital para além de sua treta eleitoral. Duas gigantes do mercado, Google e X, entraram com embargos de declaração contra a decisão que suspendeu os perfis de Marçal pelo medo do efeito cascata.
É no TSE que esta batalha deve findar. É nisso que aposta o prefeito Ricardo Nunes, que, em entrevista ao Valor publicada nesta edição, insistiu no papel da Justiça Eleitoral a despeito de não tê-la acionado.
Como Marçal tem avançado nas pesquisas de maneira mais célere do que as ações, o mais provável é que uma decisão desfavorável à sua permanência no jogo, se acontecer, venha apenas no fim da campanha.
Tirar um candidato emergente da disputa tem um custo menor do que arrancar o líder que ele arrisca se transformar. A reação dessa rede de apoiadores, impulsionadores e influenciadores do marketing do empreendedorismo, dentro e fora da lei, abrirá uma frente de batalha que renovará a guerra entre justiça e política até 2026.
No meio empresarial e financeiro, este tem sido o comportamento padrão em relação ao candidato do PRTB à Prefeitura de São Paulo. Pelo menos até 6 de outubro. Num segundo turno contra Guilherme Boulos (Psol), cenário no qual a pesquisa Quaest desta quarta sugere um rigoroso empate, a coisa muda de figura.
O horror cede lugar ao inevitável. Com PCC, com tudo. Em dois grupos diferentes de WhatsApp de investidores, a vitória do candidato do Psol aparece como a única situação que os levaria a optar por Marçal, como um dia o fizeram, de maneira menos titubeante, por Jair Bolsonaro contra o lulismo.
Os empresários que orbitam em torno de Marçal ainda são predominantemente do marketing digital e startups financeiras, mas essas bolhas já começam a se expandir. Na noite do sábado, Samuel Pereira, um empresário do marketing digital, reuniu em sua casa em Alphaville um grupo de amigos em torno do candidato do PRTB.
Entre aqueles 11 homens brancos, regados a Rosso di Montalcino 2019 - Biondi Santi, havia um de fora da bolha, José Janguiê Diniz, fundador do Ser Educacional. Um dos grupos que mais se expandiram com o Fies e o Prouni dos governos petistas, abriu capital na B3. Janguiê joga em todas as posições.
Estreitou relações com administrações de centro-esquerda, como a Prefeitura do Recife, com a qual tem parceria de formação profissional, e comprou, por R$ 27,5 milhões, no leilão da massa falida do Banco Santos, a mansão do Morumbi, zona sul de São Paulo, do ex-banqueiro Edemar Cid Ferreira. Com os cotovelos sobre a mesa, Janguiê gravou mensagem de apoio a Marçal, assim como os demais comensais, em vídeo que circula nas redes sociais em que todos fazem o “M” com os dedos apontados para baixo.
Não é o único de fora da bolha. Na lista de doadores oficiais da campanha de Marçal, está Helio Seibel, da HS Investimentos, com participações em grandes empresas do país, como a Dexco (Duratex, Deca, Hydra), Leo Madeiras, Loggi e Apolo Energia.
No registro oficial, Seibel doou R$ 100 mil, o mesmo que o empresário goiano Helvio Paulo Ferro Filho. Cada um deles doou tanto para Marçal quanto Arminio Fraga o fez para a candidata do PSB, Tabata Amaral. Marçal arrecadou, até o momento, R$ 944 mil, quatro vezes mais que Tabata. Dos cinco primeiros colocados nas pesquisas, são os únicos com registro de doações no TSE.
A lista de mais de 1 mil doadores de Marçal, com valores de R$ 500 a R$ 1 mil, é um cartão de visita para o discurso do empreendedorismo que entusiasma dois simpatizantes, Rafael Ferri e Tallis Gomes.
Ferri ganhou fama ao colocar uma escultura de Paulo Guedes na entrada da empresa da qual era sócio, a TC, na avenida Faria Lima, centro financeiro de São Paulo. Depois de vender sua participação nesta empresa, abriu uma assessoria de investimentos, a GTF Capital, que presta consultoria patrimonial a clientes da corretora Genial. Já Gomes, fundador da Easy Taxi e da Singu, empresa de beleza que vendeu para a Natura, hoje dirige a G4 Educação.
Não foram esses empresários que levaram à sua arrancada. Mais importante foi o impulsionamento cruzado de cortes de seus vídeos, desrespeitando a lei eleitoral, como denunciado - e acatado - pela Justiça Eleitoral. E, ainda, trapaças como aquela contada por Ana Luiza Albuquerque, Eduardo Escolese e Flávio Ferreira, da “Folha de S.Paulo”, em que Marçal se valeu de um homônimo de Guilherme Boulos para disseminar a associação que fez entre o candidato e a cocaína.
O que esta rede de pequenos doadores mostra é que Marçal tem nadado de braçada no empreendedorismo sem ser acossado por concorrentes. Um empresário que colaborou com Boulos chegou a sugerir uma incubadora de startups, com apoio da prefeitura, que negociaria convênio com universidades, forneceria água, luz, internet e isentaria os impostos municipais. Até uma parceria com o pé-de-meia, programa federal de bolsas para o ensino médio, poderia rolar. A proposta ficou no ar.
Além da ausência de concorrentes no tema, joga a favor de Marçal o discurso de que as ações contra sua candidatura podem vir a prejudicar o mercado digital para além de sua treta eleitoral. Duas gigantes do mercado, Google e X, entraram com embargos de declaração contra a decisão que suspendeu os perfis de Marçal pelo medo do efeito cascata.
É no TSE que esta batalha deve findar. É nisso que aposta o prefeito Ricardo Nunes, que, em entrevista ao Valor publicada nesta edição, insistiu no papel da Justiça Eleitoral a despeito de não tê-la acionado.
Como Marçal tem avançado nas pesquisas de maneira mais célere do que as ações, o mais provável é que uma decisão desfavorável à sua permanência no jogo, se acontecer, venha apenas no fim da campanha.
Tirar um candidato emergente da disputa tem um custo menor do que arrancar o líder que ele arrisca se transformar. A reação dessa rede de apoiadores, impulsionadores e influenciadores do marketing do empreendedorismo, dentro e fora da lei, abrirá uma frente de batalha que renovará a guerra entre justiça e política até 2026.
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